Em sinal de protesto, encontrei na porta de casa retratos meus com meias imundas pregadas neles; ou ainda umas arrumações de farofas, galinhas e charutos. Um indício mais positivo foi registrado quando fui à padaria comprar pão e todos os quatro fregueses se retiraram, murmurando e tapando o nariz.
Perguntando a mocinha do caixa o porque de tal comportamento, informou-me que isso se devia a seriedade excessiva de minhas últimas crônicas. Acrescentou também dados utilíssimos, denunciando um espírito observador e analítico: segundo ela, povo não gosta de coisa séria; povo gosta é de rir, sacudir os bundões no pagode e ler mexericos sobre a vida (de preferência, sexual) dos outros. Com uma maldade sutil, incluiu a informação de que as arrumações de farofa, galinha e charutos não vieram acompanhados do marafo por precaução – os maledicentes acreditaram que eu poderia, impiedoso, servi-la com gelo, limão e açúcar. Pura calúnia, embora deva admitir que os charutos eram de boa qualidade.
Diante deste fato tomei a decisão de, ao menos por algumas semanas, restringir meus escritos às amenidades da vida mundana, sem imiscuir-me em análises políticas, sociológicas ou outros assuntos que poderiam render-me o status de intelectual e assim favorecer-me diante de algumas senhoritas, que insistem em não considerar-me apto ao acasalamento devido a falta de atributos financeiros, econômicos, sociais, residenciais, automotivos, intelectuais, musculares, sexuais, métricos, estéticos, familiares e profissionais em minha pessoa. Umas mesquinhas, que se prendem á uns poucos detalhes apenas para me infernizar a vida e fustigar minha já moribunda libido.
A Divina Providência tornou-me imune a baixezas como essas. Sempre que tais argumentações me são atiradas á face (ás vezes, acompanhadas de pratos, pedras, tapas ou animais de estimação), ignoro-as solenemente e volto meus pensamentos para tudo de bom que a vida me deu. Lembro-me, por exemplo, de meu mais chamativo patrimônio: meu Chevette 82. Puxa vida, quando poderia imaginar que um dia teria um desses? Hoje não ando mais a pé, não preciso mais comprar sapatos (aqueles de 19,90) a cada três meses e até consegui engordar quase um quilo! O carrinho é quase zero, só preciso achar um carburador novo no ferro-velho, uma tampa de porta-luvas, refazer a parte elétrica, ver a caixa de marchas que não desengrena da quinta para terceira, ajeitar a suspensão dianteira, ver freios, corrigir uma besteirinha de puxar para a esquerda, lanternar umas bobagenzinhas e pintar tudo. Nem digo instalar um rádio, que ele não tem ainda, porque aí já é luxo e eu sou uma pessoa austera; coisa pouca, o bichinho é um achado!
E não pensem que sou um vil materialista, que só pensa nos bens tangíveis. O que tenho de mais precioso é o meu círculo de amizades, no bom sentido, é claro: Carlos Barangueiro, Ricardo Cachaça, Pantera, Coalhada, Pulga, Jorge Porcão, Dengue, Xexéu, Maria Boca-de-Álcool, Cão Miúdo, Toninho Ereção, Parede, Eiêi, Perfeita Podridão, Overdose, Animal, Heraldo Babuíno, Jairo Cagalhão e tantos outros que apenas a lembrança me emociona e me leva ás lágrimas! Pessoas de bem, reputações ilibadas, com vidas simples, comedidas e, principalmente, fiéis áqueles que pagam-lhes a bebida.
Sob tamanha chuva de bênçãos derramadas sobre minha cabeça, não posso e não devo permitir-me o desânimo apenas pelo fato circunstancial de, há cinco anos, não pegar ninguém. Se hoje noto que as mulheres, a simples menção de meu nome, fogem ás gargalhadas, por outro lado também posso constatar tudo o que ajuntei nesses mesmos cinco anos. Vejo com orgulho meu Chevette 82, meu aparelho de som CCE, com rádio-vitrola, que minha ex-sogra jogou, digo, presenteou-me; meu computador 386 quase novo; minha gata lésbica, Fuinha, que toma conta da casa mordendo, arranhando e matando tudo o que se aproxima de mim; minha TV de 14 polegadas, comprada no brechó, e que já veio com Bom-Bril e tudo na antena, além de tantas outras coisinhas que tenho atulhadas em diversas caixas de papelão, juntamente com minha coleção de chaveiros.
Realmente, não posso reclamar da vida e tenho de dar razão á criaturinha do caixa da padaria, quando diz que tenho estado muito sério.
Alegria! Alegria! É fim de semana, faz um sol de rachar; a cerveja está gelada, meu vizinho botou sua coleção completa de CD’s de “Pagodes & Pagodes”, do volume 1 ao 35, a laje já está quase batida, tenho meu Chevette, meu churrasquinho com os amigos e hoje joga o Mengão!
Diante de tamanha abundância de alegrias, lembro-me de uma passagem do “Eclesiastes” que diz: “Alegrai-vos. Comei, bebei, desfrutai o que a vida vos dá, pois essa é vossa parte no mundo, e o resto é vaidades”. Profundo e reconfortante.
O que mais posso querer?
Walter Biancardine é jornalista, e come, bebe, samba, canta, grita, pula e gargalha desesperadamente; tudo isso pra provar pra todo mundo como ele é feliz e realizado.