segunda-feira, 24 de dezembro de 2007

À vida, mais que o sonho

Depois de muito tempo, tento voltar a escrever.
Nunca soube lidar com a felicidade e mesmo sentia sempre uma certa vergonha de mostrá-la.
Não sei se por vício ou se pelo fato de que reclamar é sempre mais fácil, habituei-me a escrever sobre a dor, e inclusive usa-la como muleta da criação.
Um dia, em um estacionamento, lá estava ela.
E tirou de mim todas as trevas, e me apresentou á felicidade absoluta e indizível.
Sobre o quê escreverei agora? Sobre minha alegria?
Sobre ela? Sobre nossos planos e sonhos?
Não.
Escrever é sonhar em papel, e agora, minha realidade é melhor.
Por isso, ao menos por enquanto, não escrevo:
Prefiro viver.


Walter Biancardine é jornalista, e às vezes, tem sorte.

sexta-feira, 16 de novembro de 2007

Heei !!

Passei uma vida inteira resmungando, murmurando para mim mesmo; um rabugento de plantão sempre disposto a encontrar um mínimo detalhe que fosse, para que meus breves e raros momentos de felicidade tivessem algo que eu pudesse criticar.
Mesmo na única vez que acreditei ser absolutamente feliz, ao lado de uma mulher, ainda assim eu a via humana demais para que eu me rendesse. Amava, mas com prudência.
O tempo passou, esse amor acabou, e voltei à minha faina de resmungão.
Tantas escrevi, tantos uivos de dor foram publicados, tantas noites sangradas que fui rotulado como o “atormentado”.
Solidão, bebedeiras, promiscuidades, gritos e choros, panteras estapeadas, mulheres absurdas, companhias completamente dispensáveis, arrependimentos abissais compuseram uma rotina árida que nunca me permitiu ver algo de belo na vida.
Todo o cinismo, ceticismo, talvez escondesse apenas um pedido desesperado de ajuda contra minha solidão e desamor. E, principalmente, existia o passado.
O passado, que me perseguia como uma obsessão; símbolo da única felicidade que conheci na vida, de quando eu achava ser cuidado – e o melhor – de quando tive a certeza de ter, ainda tão jovem, encontrado o amor de minha vida.
Mas sempre achei que nada tinha a acrescentar à vida de ninguém, e por me achar absolutamente desinteressante, sem nada a oferecer, me recolhi e deixei que ela passasse. Afinal, eu a amava, mas e ela? Como gostaria de alguém como eu?
Com o coração preso em um passado, a vida seguiu. Todos gostaram, chegaram mesmo a ter amores; casamos, tivemos filhos, rimos, choramos...tudo isso a quilômetros de distância e de um silêncio completo. A vida seguiu seu rumo, um péssimo rumo. A minha, ao menos; sempre aproando tempestades, tormentas, sem porto de chegada.
Mas o destino prega peças e o que está escrito não pode ser mudado: os mesmos textos loucos nos quais eu destilava todo o meu veneno auto-piedoso serviram de ponte para um reencontro; completamente inesperado, improvável, imprevisto. E quase trinta anos represados explodiram como uma barragem que ruísse.
Choramos ao nos abraçarmos. Não de novo, porque nunca nos abraçáramos antes. E choramos pelo platônico de nossas vidas, por tanto amor que foi varrido para baixo do tapete; choramos em cada toque, em cada carinho, em cada beijo, e descobrimos – perplexos – que a vida fizera a ambos, um para o outro. Encaixe.
Foram apenas sete horas. Sete horas da mais absurda felicidade que dois seres humanos tiveram o atrevimento de sentir. Sete horas que recompensaram 30 anos de espera. E 30 anos que amadureceram dois corações o suficiente para saberem que não se deve brincar com o amor.
Agora, finalmente, estou livre do passado. Paguei a minha dívida com a dor, estamos quites, eu e o destino. As poucas sete horas que vivi são apenas as primeiras sete, de setenta e sete séculos que viveremos, porque o amor não morre.
A tormenta acabou, e o sol finalmente voltou a brilhar.
Só agora vejo o céu, sem nuvens, e o mar calmo, amigo. O azul e o verde daqueles olhos que me oferecem a paz, que trouxeram finalmente um sentido à tudo o que me aconteceu. E o amarelo dos cabelos dela, do sol, que enfim brilha de novo.

E será eterno.

Queria gritar ao mundo, mas em respeito, me calo..

"Eu protegí seu nome por amor/Em um codinome Beija-Flor"

domingo, 11 de novembro de 2007

Avançando para o passado

Remexendo em papéis velhos e aqueles montes de anotações que eu, espírito de rato-trocador, fui acumulando ao longo dos anos, encontrei alguns manuscritos. Se eles não são propriamente os do Mar Morto, serão com certeza os do Ex-Morto, eis que foram escritos há muito tempo atrás, em 1979, por um adolescente incapaz de dizer o que sentia para a garota que amava. Este adolescente morreu, fulminado por uma maturidade galopante da qual foi vítima pouco tempo depois, quando descobriu que a estrada seria muito, muito longa, cheia de acidentes de percurso, desencontros e dores.
Recentemente, o correio bateu em sua porta, com cartas tão antigas, novidades tão velhas, e lembranças tão novas.O carteiro gritou: “Levanta, Lázaro!”
E desde então ele, adolescente renascido, tem deixado as luzes de sua casa sempre acesas, na esperança que sua amada as veja e escreva novamente.

(Eventuais erros deverão ser perdoados, afinal o autor era um jovem machucado de 15 anos)

Adeus

Caberia na palma das mãos
Quem já amou tanto assim como eu,
A se perguntar como enfim se perdeu
O amor

Estou vivendo com a calma irreal
Da gente que disso tudo aprendeu
Da gente que também sobreviveu
A dor

Ela se faz doer a cada segundo
Se na sua falta o momento e maior
Mas na sua volta o instante é o melhor
Dos meus

Você é o que me faz sentir enfim
Que o meu corpo tornou-se dois
E tenho medo de logo depois
Adeus

09/01/1979

Nota do arqueólogo: não se sabe ao certo se a palavra “adeus” foi empregada devido a distancia que ele morava de sua amada ou se foi pelo fato do escrito acima ter sido composto nas proximidades do Aeroporto Internacional do Rio de Janeiro.

sábado, 10 de novembro de 2007

Bloco de notas

Solidão é o tamanho do espaço que sobra em sua vida
Irritação é a medida desse mesmo espaço que falta
Pequenez é saber-se sem dono, ninguém que pergunte por você.
E quando todos perguntam, dependem?
Doar sangue ou hemorragia,
Toda hora, todo dia,
Tudo é uma questão de escala.
Quanto sangue pode ser sugado?
Quanto amor pode ser cobrado – e não ser dado?
Quanto talento é preciso para comover uma mulher?
E na falta da rima perfeita, os homens se matam.
Se rasgam, escrevem sandices.
Que o tempo não passa, nunca existiu,
Relógios, distâncias,
Que diriam de mim?
Morram os vizinhos,
Que o inferno é certo
E o céu não é perto.
Quem pede e não toma
Nunca chega a Roma
Felicidade é roubada,
Amor é tomado,
Tanto amor, que até por piedade é aceito.
Tanto amor, que vale o escondido,
Vale o proibido, tudo é permitido.
O coração nunca teve vergonha na cara, mesmo.

Walter Biancardine é jornalista e acha que deve haver algo de doente em uma sociedade cuja moral foi criada por um psicopata sexual canonizado santo.
Saulo, Saulo, por que me persegues?

10 de novembro - Será eterno, enquanto viver

Se as coincidências não existem, os desencontros também não.

Talvez tudo seja uma questão da hora certa para os que acreditam na mão do destino, a pastorear sua felicidade. E assim, deixamos os anos passarem, dando tempo ao tempo, como diriam nossos avós, e permanecemos numa expectativa de doença crônica, apenas aguardando que os anti-corpos da vida baixem a guarda. Poucas pessoas, poucas mulheres para ser mais exato, acreditam em nada que signifique longo prazo, com relação aos homens. Quantas oportunidades são perdidas, de se saberem amadas, ao longo de uma vida inteira! Nada de bombástico, nada de dramático, cinematográfico. Apenas o acaso absurdo de serem donas e alvo de um amor que se recusa a morrer.

Existem almas que são feitas juntas; Existem amores que se amam porque amam; Amores irracionais, ao sabor do vento; Amores que decidem uma vida e definem quem podemos ser; Existem amores que mostram, para sempre, quem queremos ter; Amores que não se explicam; Porque o amor é inexplicável, e só. Assombrações, fantasmas do passado para uns; Semente que espera nascer, para outros. Amor não se pensa, Amor não se analisa, Amor não se discute, Amor não se contesta, Amor não se recusa, Amor não se guarda, Amor apenas se sente. O resto é desculpa de quem tem medo da vida.

E depois de tantos anos, foi possível olhar para algo além do chão. E vi que fazia sol. E vi, de novo, o dia nascer. Comigo.

Walter Biancardine é jornalista e tem ficado de coração mole. Deve ser porque agora tem dois aniversários: um deles no 10 de novembro.

domingo, 4 de novembro de 2007

Para uma grande mulher

Eu preciso de alguém pra me proteger de mim mesma.
Seu Fulano, Dona Beltrana,
Eu preciso de alguém pra me esquecer de mim mesma,
Meus muros de casa, meus muros da vida.

Estou viva, a mostrar que aprendí;
Nas ruas, as lições de casa,
Em casa, as lições das ruas.

Eu preciso de casa,
Eu preciso de muros;
Pra me proteger de mim mesma.

Eu preciso de gente,
Eu preciso de pressa
Pra me esquecer de mim mesma.

Eu preciso de vida,
Eu preciso de brilho;
Eu preciso do mundo
E um grande amor, que me cure de mim.


Walter Biancardine é jornalista e dedicou estas linhas à uma grande mulher, que há muito tempo atrás quase o fez querer ser um homem melhor.

Toda vez que não tenho assunto, eu vendo minhas neuras

Ultimamente tenho conversado muito. Coincidência ou não, surgiram sucessivas ocasiões de trocas de experiências, reencontros, confidências. E o mais peculiar nisso tudo é que observei alguns pontos que podem quase materializar esse escudo invisível que me cerca e me coloca à parte da vida, criado não sei se por mim ou pelos outros.
Interessante notar que o termo “troca de experiências” é quase um eufemismo, já que tenho escutado muito mais que relatado. Não sei ainda se os outros têm vivências mais numerosas, intensas ou dignas de nota que as minhas ou se ainda não consegui me livrar da velha indiferença com minha própria vida. A verdade é que nunca acho nada que eu tenha vivido como espantoso, incrível ou mesmo terrível. Tudo é morno, catalogado, página virada e esquecida. E para um pretenso escritor como eu, é a sentença de morte de qualquer argumentação literária. Um homem que não se surpreende com a vida todos os dias não escreve, pois nunca considera nada admirável o suficiente para merecer uma página.
No ramo das confidências, sou um amador. Até consegui cometer algumas indiscrições pessoais, mas é nítida a falta de paciência dos interlocutores com minhas pequenas misérias. A princípio pensei que fosse aquele egoísmo comuníssimo de querer que os outros nos ouçam mas sem ter de ouvir de volta, querer soluções evitando solucionar males alheios, mas descobri rapidamente que a culpa é de minha chatice: o mesmo cacoete detalhista que povoa o estilo de alguns escritores emperra qualquer conversa quando utilizado em confidências, e aí a coisa se torna um saco; papo para analistas, mesmo. Assim, é natural que poucos ou nenhuns amigos se permitam mergulhos tão abissais nas almas dos outros.
E quando são confidências amorosas reveladas por criaturas do sexo feminino, a coisa fica tão grave que já foi até objeto de crônica anterior, o tio Walter e seus bons conselhos.
Sobraram os reencontros, que podem ser uma volta ao passado ou armadilhas.
Li uma vez, acho que foi no “Terra dos homens”, Saint Exupéry, que duas árvores que crescem juntas, o fazem na mesma direção. Mas quando afastadas, seguirão cada uma seu caminho. Querer uni-las posteriormente será perda de tempo, pois jamais encaixarão de novo. Por isso Saint-Ex considerava os reencontros um perigo.
Estou inclinado a concordar com ele; não pelos outros, mas por minhas próprias psicopatias, achando que todos dão a mesma importância a pequenos fatos e detalhes com os quais minha memória tem me aprisionado todos estes anos – um território livre, repleto de felicidades – e que eu acreditava piamente que todos compartilhariam estas sensações.
É besteira e rematada infantilidade pretender que um reencontro se faça dentro de um clima de afeto, parceria e amizade anteriormente desfrutado. Seremos dois estranhos nos (re)conhecendo, tateando em busca de assuntos e gostos que permitam uma conversa no clima de alegria que a tal amizade pede, e nem sempre funciona.
Não sei se passo uma impressão um tanto depressiva destes fatos, mas a verdade é que não considero tudo assim em sua totalidade. Existem reencontros que são surpreendentes, renovadores e, ainda que na verdade você esteja mesmo diante de um estranho, este ser desconhecido agrada.
Existem ocasiões em que deixamos para trás um casulo e reencontramos uma borboleta.
E isso justifica todo o atrevimento de procurar.

Walter Biancardine é jornalista e às vezes acha que antigamente era muito melhor. Coisa de velho.

domingo, 28 de outubro de 2007

O vírus do ódio

Epidemia já chegou em Cabo Frio

Após um rápido processo de urbanização, no qual a cidade se alargou, modernizou e respira hoje ares de uma Copacabana dos anos 60 em alguns bairros, uma corrente migratória de classe média iniciou-se trazendo novos habitantes, que sonham estabelecer aqui uma nova chance de felicidade ao erguer uma nova economia e uma nova vida. Descartando o que não deu certo em suas cidades de origem, rejeitando o feio, o brutal, o desumano, Cabo Frio tornou-se, para a classe média recém-chegada, o sonho utópico do novo mundo quinhentista.
Tudo seria um soneto de esperança e felicidade se no rastro de qualquer indício de prosperidade não viessem as hordas de deserdados, as mesmas que esta sonhadora classe média se serve para empregar em seus projetos; as mesmas massacradas em suas favelas de origem, as mesmas inoculadas com o vírus do ódio pelo exibicionismo consumista da comunicação de massa, que substituiu a ideologia pela miçanga e afirma que só tendo algo é que um homem vale alguma coisa. Esse vírus tem sua disseminação garantida pelo desespero de ter, que leva ao assalto, ao crime. O ambiente necessário é estimulado por alguns políticos indecentes – favelas que crescem como cogumelos – que vêem ali o seu Frankenstein eleitoral, burramente seguros de os dominar. E o domínio vem à pau e corda, o tratamento animalesco dispensado pela polícia igualmente embrutecida e contaminada; endossada pela justiça, saúde e educação cuidadosamente planejadas para o extermínio mental e moral do proletariado, tudo isso formando um ambiente propício e vicioso à proliferação e desenvolvimento seguro do mais poderoso vírus social existente: o vírus do ódio.
A espécie que se apresenta entre nós trás para a nossa cidade os mesmos padrões de violência repentina e injustificada de suas cidades. O vírus trabalha com afinco para que aqui se reproduzam o mais breve possível os mesmos cenários de degradação social e caos urbano de um Rio de Janeiro, por exemplo.
O ponto mais temível na contaminação é que esta cepa virótica só é letal justamente para a classe média, ou eventuais processos autofágicos, onde o proletário extermina a si mesmo nas favelas. O vírus é impotente no ataque aos verdadeiros promotores de sua existência, os governantes, que sabiamente estão seguros de que, graças à mídia, o pobre nunca terá um sentido ideológico e nunca se voltará para uma luta de classes. Eles sabem que, graças ao consumo, TV´s, bailes funk, galeras rivais e quadrilhas idem, o pobre contaminado pelo vírus ira atacar seu semelhante, e nunca o responsável pela sua indigência mental.
É curioso ver o contraste entre as aspirações de uma classe média pagadora de impostos – que só quer um mundo novo para realizar seus sonhos – e as ambições incrivelmente coloniais dos governantes, que apodrecem o solo que lhes deu origem, certos de que com os bolsos cheios, viverão em paz, bem longe, em algum lugar que julguem sofisticado o bastante para comportar toda a sua grandeza.
Cabo Frio reflete, em ponto pequeno, a mesma sociopatia da qual o Brasil padece. E no meio disso tudo, feito um joguete, está a massa miserável. Sem horizontes maiores que um crediário, um teto de laje ou o domínio de uma boca de fumo, a depender da índole.
Pobres e eternos instrumentos de chantagem: quando não através de uma demagógica piedade, quase sempre por meio de uma violência irracional – que aprisiona em casas gradeadas os mesmos que sustentam os promotores destas misérias.
Cabo Frio descobriu que tem câncer, mas ainda é operável.
Estaremos nós esperando o quê? A metástase?


Walter Biancardine é jornalista, e só está vendendo o peixe como comprou – podre, direto das ruas.

quinta-feira, 25 de outubro de 2007

Só as desgraças fazem os heróis

Você algum dia parou
Para ver os mendigos sem pêso,
Com suas doenças rifadas
E todo o devido desprêzo?

Você algum dia espiou
Travestís desfilando em calçadas,
Seus suspiros vendendo mentiras
E ilusões de uma vida abortada?

Você algum dia tragou
Bebeu no boteco uma ou duas,
Tentando encontrar em seu copo
O que te negavam nas ruas?

Você algum dia pagou
Luz vermelha, os carinhos da vida,
Transformou suas dores em gozo
Entendeu que seu gozo é ferida?

Você algum dia notou
Que hoje o céu é nenhum,
E o pó que cuspimos pra Deus
Nos cobre, felizes, em vala comum?

Você algum dia falou
Que viu sua terra morrendo,
Sem ligar que canalhas nos comprem
Somos iguais à quem está nos vendendo?

Você algum dia lembrou
De mim e minha vida vazia,
Meu inferno, minha solidão
Minhas noites de falsa alegria?

Você algum dia pensou
Não haver putas, viados, doidões,
Mas então quem seria você
Se nada no mundo fugisse aos padrões?

Você algum dia aceitou
Da TV os heróis de sua praça,
Nem perguntou o porquê disso tudo
Tudo no mundo é uma farsa?

E se não houvessem as vidas devassas?
E se não houvesse o mal feroz?
Só sei que por nossas desgraças
É que fabricam-se heróis.

Walter Biancardine é jornalista. E muito doido, também

Raiva Giratória

Não quero rimas, formas ou beleza;
Quero só gritar meu desespero.
Acordar a indiferença, ensurdecer a solidão.

Enrouquecer, enlouquecer,
Ou esquecer.

Quero espalhar minha dor, cuspir minhas mágoas;
Ferir negros e goianos,
Pra lembrar á todos que o mal é o que existe.

Menos na vida
Que em nossos amores.

Amor é egoísmo em poesia,
Tivesse juízo e jamais sentiria.

Sádico fim dos grandes amores;
Sempre acontece em um, primeiro,
Para o outro minguar, gota á gota,

Seu fim derradeiro.

Walter Biancardine é jornalista, o fim do mês está chegando e o dinheiro acabou.

quarta-feira, 24 de outubro de 2007

Muito bonzinho, mas não conta

Sinceridade? Ando bem de saco cheio de ser gente boa, bom ouvinte, gentil, educado, sempre entendendo os sentimentos dos outros e, às vezes, até mesmo servindo de confidente em relações desmoronadas ou inviáveis.
Pior que isso: quando uma mulher me procura para esse tipo de coisas, embora me sinta feliz por um lado – afinal, devo ser uma pessoa confiável e de bom senso – por outro desaba, feito uma laje em minha cabeça – a certeza de que sou completamente inofensivo.
Tenho a absoluta certeza de que quando uma mulher procura um homem para tentar entender seus sentimentos ou suas relações, e principalmente um homem mais velho, é porque ela nem sequer considera esta pessoa como homem, no sentido macho do termo. Um espécime do sexo masculino, que carrega uma boa bagagem de vida, pode ajudar com idéias, sugestões e dizer coisas agradáveis e animadoras – um livrinho de auto-ajuda interativo. E aí, tenho a consciência exata de minha exclusão do páreo.
Em algum momento de minha vida, deixei de ser excluído por ser feio, e passei a ser “não-considerado”, por ser velho.
Hoje não existe mais aquela rejeição explícita à minha volta, feito quando eu era adolescente e percebia que as meninas só falavam comigo o essencial, para não serem vistas com o feioso. Hoje, percebo que, se não há mais a debandada em torno de mim, existe o consentimento que o tio fique ali, sentadinho, tomando conta das meninas e passando um merthiolate quando necessário.
Confesso que para mim nem é das missões mais difíceis ou ingratas.
Tanto tempo de solidão, isso faz com que você seja grato à quem está próximo, ainda que por respeito aos mais velhos. É bom ver gente em volta de vez em quando, ouvir vozes chamando seu nome, saber que você ocupa um espaço físico na terra e que você não é transparente, as pessoas te vêem!
Mesmo a parte sentimental, depois de tantas portas na cara, pés na bunda e dispensas sumárias, não dói mais como doía antes. A vida e as pancadas foram amortecendo as dores, criando calos e construindo defesas.
Fico pensando se alguma delas cometeria a temeridade de escutar as minhas desventuras sentimentais. Com certeza não, papo de velho, ih!
Aliás, penso mesmo se existirá alguém no mundo que escute alguém – e que não tenha diploma, consultório, não cite Freud e nem cobre por isso.
Hoje posso enfrentar situações surreais, como escutar uma moça pela qual eu poderia estar interessado desfiar todo um rosário de lamentações porque uma cavalgadura imbecil mas com barriga de tanquinho não a trata com um mínimo de educação. E mesmo assim, ela o ama!
A reação mais forte que consigo ter é constatar que ambos se merecem, e reafirmar para mim mesmo a crença de que mulher gosta é de cafajeste – homem bonzinho é só para dar conselhos.
E assim mesmo, depois de velho.



Walter Biancardine é jornalista e jura que por debaixo da cara velha e feia existe um ser humano. E que tudo dói nele igualzinho dói em você.

domingo, 21 de outubro de 2007

Modernidades cibernéticas

Não tendo coragem pra botar um piercing ou dinheiro pra fazer uma tatuagem e com a pressão lá nas alturas – o que contra-indicaria o consumo de energéticos – encontrei como única maneira de me conectar à modernidade a confecção de uma página de orkut para mim. Não que eu seja um pitecantropus, até porque a seu nome se segue o sobrenome “erectus” e, francamente, prefiro nem comentar; mas o caso é que já há algum tempo me utilizo de e-mails e até mesmo consigo conversar pelo MSN.
Foi à duras penas que aprendi este novo dialeto, cuja utilização seria essencial para que eu fosse aceito como um igual. Hj, ta td ok, vlw. Té ki naum foi dfícil, fico tc c/ geral fds intero, mi divirtu, bjaum, fui!!!
Por outro lado, pus-me a pensar como o ser humano repete, onde quer que esteja, os mesmos padrões de comportamento que pratica em seu dia a dia. Um exemplo: ninguém me falou, mas eu acho que deve ser sinal de popularidade ter uns 1.236 amigos. Se não, porque seria estampado o número totalizado na página?
Eu, com minha meia-dúzia, devo ser um sujeito insuportável! E as comunidades? Aí, creio que elas desempenham uma função dupla: ostentar poder (olha, se me irritar muito, eu chamo minha galera!) e dar uma idéia de quem nós somos, tudo aquilo que não soubemos dizer de nós mesmos em nosso perfil – até porque a capacidade dissertativa não é o forte do internauta – e talvez até mesmo o que desejamos ser.
Mas é uma faca de dois gumes. Explico: um sujeito como eu, com a reputação que arrasto, ter em sua lista de comunidades “Eu adoro Jack Daniel´s” é a confirmação de que sou um reles cachaceiro. Por outro lado, cometer a temeridade de filiar-se à “Reflorestamento com Cannabis” é demissão na certa, e após uma curta permanência na mesma, deletei-a de minha lista. Até por que senso de humor é um artigo cada vez mais raro hoje em dia e, sendo um repórter, sei muito bem como, de uma brincadeira, pode ser criada uma verdadeira infâmia.
Tenho aprendido bastante neste novo mundo que agora desembarquei, muito embora meu primeiro contato com os computadores tenha sido no longínquo ano de 1984, ainda os de grande porte, que se utilizavam de uma coisa indizível chamada “Cobol 74”, uma verdadeira linguagem para iniciados.
Divirto-me baixando músicas do e-mule – Creedence, Janis Joplin, Sting, coisas que não se acham mais por aí. E descobri também uma grande maravilha: o blog (desculpe). Blog (desculpe)não é o som de um pequeno arroto, e sim uma pagininha na internet onde a gente pode publicar o que der na telha. Vai daí que imaginei: ora, toda as semanas minha patroa neste portal, dona Keetherine, me concede a gentileza de publicar minhas mal-traçadas. Mas elas são trocadas igualmente todas as semanas. Porque então não fazer um blog (desculpe) onde eu pudesse arquiva-las, todas, para a imortalidade e consulta de meus 12 fiéis leitores?
Foi o que fiz. Criei o meu – permita-me o merchandising, Keetherine – Crônicas e Agudas (http://www.biancardine.blogspot.com/), onde o imprudente leitor poderá ler todas as besteiras que já escrevi para este portal, e que foram generosamente toleradas.
Vai daí, eufórico com a novidade, passei a anuncia-la aos parentes, amigos, conhecidos, animais de estimação, todos! E aconteceu uma coisa estranha, que ainda não consegui definir com exatidão o que foi: eu recebia uma média de 20 e-mails por semana, entre amigos, assuntos de trabalho ou recados diversos. Pois bem, desde que anunciei aos quatro ventos o meu blog (desculpe), nem mesmo UM mísero recado recebi, fugiram todos!!
Pois bem, eu sei que vocês estão aí, posso ouvir a respiração de vocês.
De nada vai adiantar fingir que não me viram ou que não receberam meus e-mails, eu vou continuar publicando minhas crônicas no meu blog (desculpe) e um dia, nem que seja à força, vocês terão de lê-las!
E enquanto o Senhor me der forças e cerveja e a Keetherine não arranjar ninguém normal para escrever em meu lugar, eu estarei aqui!
VOCÊS VÃO TER QUE ME ENGOLIR!!!

Walter Biancardine é jornalista. Isso se o sindicato ainda não cassou o seu registro por insanidade mental.

sábado, 20 de outubro de 2007

O último cavalheiro



A morte do ator Paulo Autran encerrou, em definitivo, uma era de homens forjados sob outra têmpera. A postura cavalheiresca e blasé diante da Velha Senhora, reconhecendo sua derrota e cumprimentando-a com seu último cigarro, é um gesto que a geração atual provavelmente não será capaz de compreender nem de repetir – o último cigarro de um condenado. 

Vivemos hoje, todos, escravizados por um amor desmedido à vida e, principalmente, a tudo de material que ela representa. Agarramo-nos a ela com unhas e dentes, de uma forma às vezes abjeta e indigna; sacrificamos nossa honra, nosso nome e até mesmo os que nos são próximos para não perdermos nossas pequenas vitórias – um carro, um cargo, uma posição. Não há como acreditar que pessoas com este tipo de estofo sejam capazes de reconhecer, cavalheirescamente, uma derrota. Ainda mais uma de tal importância, onde o que está em jogo é o nosso direito de existir sobre a face da terra. 

Paulo Autran sabia que ia morrer. E soube sentir o momento em que isso iria acontecer. 

Tal e qual nos antigos contos romanescos aceitou o xeque-mate na guerra que travava e encerrou sua última batalha convidando a adversária implacável para assinar a honrosa derrota. Quando veremos novamente homens que, ao nascer, estejam rodeados de nobres de espírito que lhes digam “bonne chance” ? 

O cavalheirismo morreu. Descanse em paz. 

“Na última noite de vida, já internado no hospital Sírio Libanês, em São Paulo, o ator Paulo Autran fumou um cigarro depois do jantar, afirmou sua mulher, a atriz Karin Rodrigues. "Ele comeu uma massa e um creme de papaya. Depois que terminou a sobremesa falou 'Agora é a hora do cigarrinho'. Tive que dar", contou Karin. Autran morreu na tarde desta sexta-feira, aos 85 anos, vítima de câncer no pulmão e enfisema pulmonar. Ele passava por um tratamento de rádio e quimioterapia havia um ano.” (Jornal O Dia, 13/10/07) 

Walter Biancardine é jornalista e acredita que, mesmo não existindo mais cavalheiros, ainda haja em algum lugar uma dama à sua espera.

Ais e uis

Lendo uma crônica do inoxidável professor Sepúlveda, resolvi imita-lo e fazer minha própria lista das bem-aventuranças e dos ais. Lá vai:

Bem-aventurados os pobres de espírito, pois que se satisfazem com Funk, Brega, Pagode e Sertanejo;
Bem-aventurados os curtos de horizonte, imunes às verdadeiras ambições;
Bem-aventurados os limítrofes, achando graça em tudo o que vêem;
Bem-aventurados os ignorantes, que crêem saber de tudo;
Bem-aventurados os bonitos, pois ainda que insípidos, não conhecerão a solidão;
Bem-aventurados os que bebem e fumam, eis que não se precipitam nos verdadeiros e grandes vícios da alma;
Bem-aventurados os que não estão sós;
Bem-aventurados os que ainda tem esperanças;
Bem aventurados os idiotas – pois deles é o reino da felicidade.

Ai de ti, homem que pensa: jamais encontrarás a paz;
Ai de ti que não se anula, predestinado à solidão;
Ai de ti que tens uma missão na terra, eis que serás perseguido e invejado;
Ai de ti que tens algum talento, serás um proscrito entre os medíocres demagogos;
Ai de ti que quis aprender, pois que o mundo é uma eterna fonte de absurdos;
Ai de ti que é honesto, sincero, íntegro, leal e trabalhador: jamais serás perdoado;
Ai de ti que só quer a paz, um amor e uma vida digna, eis que é tudo o que ninguém está disposto a aceitar nos outros;
Ai de ti, que insiste em acreditar nos homens e no mundo;
Ai de ti que ainda tenta;
Ai de ti que cria, e desperta os ódios invejosos;
Ai de ti que se sobressai – pois vosso será o tormento enquanto viver.

Walter Biancardine é jornalista e chupim das crônicas dos outros

O desafio do papel em branco

Uma nova semana que se inicia, uma nova segunda-feira e tudo recomeça. Inclusive o trabalhar e padecer, tal como é desde que o mundo é mundo.
Existem trabalhos os quais pesam a brutalidade e o esforço físico, que fazem o homem respirar fundo antes de criar coragem para gastar o corpo em troca de seu sustento. Já outros massacram pela rotina, marasmo e a sensação de improdutividade; os funcionários públicos conhecem esse desaparecimento da vida interior muito bem.
E existem outros ainda, como o ofício de escriba, cuja obrigação primordial é levar aos seus leitores algo digno de nota e, em segundo plano mas não menos importante, escrito de uma forma agradável e criativa. E é aí que a porca torce o rabo.
O que fazer naqueles dias em que nada de excepcional aconteceu? Ou talvez tenha até acontecido, mas o escritor, já cético e descrente, nada mais consegue achar como algo notável? E se, por um feliz acaso, surgem idéias, mas a cabeça emperra; o verbo falha e o bom desenvolvimento do texto murcha, inexorável, em meio ao caminho?
É a pesada obrigação de criar, caros leitores, que já levou muita gente boa ao desatino.
Todos os que vivem da pena já escreveram algum dia algo de excelente; aquele texto o qual volta e meia o resgatamos da gaveta para, incrédulos com nossa própria felicidade, relê-lo orgulhosos, lambendo a cria. E a partir daí definimos esse grau de excelência como nosso padrão, obrigando-nos a produzir diariamente pérolas da literatura.
Essa responsabilidade já me fez rasgar e queimar muita bobagem escrita por mim, do mesmo modo que me impeliu a reescrever o mesmo texto umas vinte e cinco vezes até sair do jeito que eu acreditava ser o melhor.
E assim, aos poucos, sem que a gente se dê conta disso, desenvolvemos hábitos estranhos aos olhos dos outros; tiques e manias compulsivas-obsessivas que, como fossem superstições haveremos de cumpri-las, se almejamos o bom sucesso da empreitada.
Não fica bem eu falar das maluquices dos meus colegas, e nem seria – para usar uma palavra tão em moda que está me enojando – ético faze-lo sem o consentimento de cada um deles. Por isso restrinjo o rol das patologias apenas à minha pessoa, de reputação já tão combalida a esta altura da vida.
O principal motivo pelo qual escrevi toda essa argumentação aí de cima não foi apenas uma vil encheção de lingüiça, cumprindo minha obrigação de preencher o espaço generosamente cedido com algo potável aos leitores. O verdadeiro motivo foi que me dei conta, em definitivo, da pior de minhas manias.
Um fim de semana agradável, amigos ao redor, um belo show de blues no Etílico que vi em companhia de mais amigos, boa comida, boa bebida e até mesmo passeios – eis que ciceroneei um amigo em visita a região – com direito a alegria, despreocupação, pança farta e serpentina molhada. E foi aí que me atolei.
Não é de hoje que sei que a alegria e felicidade são inimigas de minha criação. E após um festival pantagruélico de despreocupação como o deste final de semana, chego à segunda-feira, de volta a minha obrigação de escrever, com a cabeça completamente oca; nenhuma idéia, nenhuma esperança, um deserto.
É impossível ser feliz em meio a tanta felicidade. Pelo amor de Deus, quero meus tormentos de volta! Como escreverei sem uma dor de corno, sem uma angústia abissal, sem um apocalipse na alma e o juízo final no coração?
Mas eu sei que tão certo quanto o dia após a noite, a mediocridade humana me fará presente, como fonte inspiradora, um variado e abundante material depressivo-criativo durante esta mesma semana, sem faltar nenhum detalhe sórdido ou mesquinho, tão usuais na natureza do homem.
Ambição excessiva, exibicionismo, cupidez, ganância, inveja, mesquinharia e vaidade.
É só esperar. A vaidade, pecado predileto do encardido, leva os deslumbrados – pelos seus próprios pés – para o inferno.
Vovó dizia que nem tudo o que brilha, é ouro. Estava certa: pode ser só um caco de vidro.



Walter Biancardine é jornalista e aguarda, ansioso, a irritação e saco cheio da sexta-feira para escrever suas pérolas.

Ainda a pobreza

Com a ajuda de cinco negões amigos, consegui finalmente retirar meu Chevette 82 de dentro da salina, onde foi jogado por uma turba enfurecida de plebeus, conforme relatei em minha crônica da semana passada. Relatei também que a causa de tal desvairio foram comentários meus, considerados desairosos, em relação à pobreza espiritual imposta pela mídia, proferidos em crônica ainda anterior.
Pois bem. No momento em que escrevo estas mal-traçadas, vejo na tela de minha TV Colorado RQ a válvulas o “Fantástico” deste domingo, no qual a atriz e futura Madre Tereza de Calcutá, Regina Casé, empurra por minha goela abaixo todo o seu amor pela periferia, a qual recebeu um quadro só pra ela em tal programa.
Confesso que tal quadro me causa engulhos. E, antes que outros despossuídos comedores de “cocretes” venham a me catar pelas ruas, apresso-me a explicar o porquê: o problema não é ser pobre. O problema é começar a gostar de sê-lo, acreditar que a periferia é uma classe, um estilo de vida com cultura, hábitos, moral e valores próprios e – sentimento sutilmente instilado – provavelmente superiores, mais legais, sinceros e divertidos que os dessa burguesia insípida que os emprega. O nome disso, meus caros pobres, é CONFORMISMO SOCIAL. A partir do momento em que o pobre ri de si mesmo, de seus hábitos, desventuras e até de suas gafes; quando os pobres vêem na televisão favelas em todo o mundo e que possuem os mesmos hábitos e problemas (como se pobreza não fosse uma merda em qualquer lugar do mundo), sempre apresentados como uma coisa fantástica pela madrinha dos pobres, Regina Casé, ele se sente como uma casta – uma estirpe, um personagem – e que, como qualquer personagem, não pode ser mudado.
Deixar de ser pobre pra quê? Ser pobre é tão legal, tão divertido! “A gente ganha pouco, mas se diverte!” É a apologia à imobilidade social, à mansidão das massas; é o mais eficaz amansa-revolução-social já inventado, travestido de “valorização popular” pela emissora responsável pelo que o brasileiro acredita ser ele mesmo. Este antídoto, administrado em conjunto com o carnaval, praias, futebol (explorado ao paroxismo pelas TV’s) e pelas mais suculentas bundas e barrigas-tanquinho do meio artístico produzem o que todos nós estamos cansados de ver: um povo estuprado, mas feliz.
Perguntado qual o melhor conselho que poderia dar aos jovens, o genial Nélson Rodrigues lascou: “– envelheçam!”
Vivo fosse, provavelmente diria aos pobres: “– enriqueçam!”
Desde que o mundo é mundo, a pobreza existe. Não é vergonha nem defeito ser pobre.
Vergonha é gostar de sê-lo e nada fazer contra isso.

Walter Biancardine é jornalista, pobre de marré-marré e está aceitando qualquer trocado pra deixar de sê-lo.

Uma ajudinha

Senhoras e senhores leitores, um minuto da sua atenção: me desculpem incomodar sua leitura, mas eu-podia-estar-roubando,-eu-podia-estar-matando,-me-prostituindo,-me-entregando-ao-tóchico-
mas-estou-aqui,-trabalhando,-escrevendo-essas-mal-traçadas-linhas-e-pedindo-a-sua-colaboração. Qualquer moedinha serve, e em troca os senhores poderão levar a distração da sua viagem.
A vida é dura, caro leitor. Caí na besteira de revelar toda minha quizilia contra a pobreza espiritual imposta pela mídia, em uma crônica feita semana passada, após a desventura de andar de ônibus.
Não sei exatamente como aconteceu nem quem foi o traidor que, além de ler o que escrevi para os malvados iletrados, ainda revelou os locais onde eu poderia ser mais facilmente encontrado. Mas o fato é que fui cercado por uma horda de Wellingtons, Gislaines e Maicons – ameaçadores, segurando espetos de churrasco, isopores de cerveja e outros apetrechos letais – os quais partiram, céleres, para cima de mim com intenções funestas. Não fosse eu um exímio lutador de artes marciais, e estaria em maus lençóis. Devo ter quebrado a mão de uns cinco, com a minha cara.
Foi uma luta selvagem. Todo o boteco ouvia meus gritos bravios de “– Pára, pára!!!” ou mesmo “– Não chuta não, pô!!!”, “– Com o espêto não!!!” ou “– Tira essa gorda de cima de mim!!!”.
As pelancas voavam; cada chute revelava um oceano gelatinoso de celulites e estrias; varizes estouravam tingindo os shortinhos de lycra enfiados no rego; suvacos insofríveis, semelhantes a molho de cachorro-quente, se alastravam qual guerra química em meio a gravatas aplicadas em meu pobre e magro pescoço; tubos de henê e celulares com capa de oncinha eram usados como armas terríveis; guinchos esganiçados denunciavam o clamor por ajuda “– Cráudio, Cróvis, anda, chama a galera!!!”; e em cada mão deles eu contava dois ou três dentes meus cravados lá, feito uma plantação de caninos, incisivos e pré-molares.
Mesmo os Césares temeram a turba romana. Quem sou eu para não temer as hostes da periferia?
O fato é que, em clara situação de desvantagem, divisei como única saída a técnica do “Rala o peito”, e vazei de lá correndo, capengando e gritando (mas com toda a dignidade) em meio a uma chuva de garrafas de cerveja, croquetes, joelhos de presunto e queijo e CD’s do Calypso. Com a agilidade de um gato entrei em meu Chevette 82, com todo mundo correndo atrás de mim.
Mas a bateria arriou.
E é por isso que faço agora este apelo aos senhores leitores: eu-podia-estar-roubando, -eu podia-estar-matando, -mas-estou-aqui-trabalhando-e-pedindo-uma-ajuda, para pagar um reboque que possa tirar o meu carro de dentro da salina.
Os malvados jogaram meu mais precioso patrimônio naquela salmoura, numa clara demonstração de inveja e despeito. Jogaram também garrafas com xixi lá dentro e encheram o tanque de gasolina de cocô. Uns recalcados selvagens.
Qualquer ajuda será bem-vinda, e vocês receberão em dobro tudo o que me derem.
Aceito também dentaduras usadas, vale-transporte e ticket-refeição.
Não quebrem esta corrente. João da Silva, do Morubá, quebrou e no dia seguinte teve de ir morar com a sogra flatulenta; ele, sua mulher com herpes e seus seis filhos catarrentos em uma quitinete sem janelas e com teto de eternite, em pleno verão, em Gramacho, no Rio de Janeiro.

Walter Biancardine é jornalista e insiste em fazer de conta que não perdeu a dignidade.

Pobreza pega

Mantendo promessa que fiz semana passada, na qual eu jurava não escrever mais nada de sério, resolvi que esta semana não vou escrever sobre coisa alguma. Sim, porque, considerando minha situação financeira, sexual, profissional, automotiva, erótica e eleitoral, tudo à minha volta é seriíssimo.
Tomo como base meu elevado status quo social: tenho horror a essa pobreza de churrasquinho na laje, e é só o que vejo à minha volta nos sábados e domingos. Aquelas barangas gordas, enormes, com aqueles maridos igualmente obesos (coisa que eu não consigo entender: todos se dizem uns coitados, que quase não tem o que comer. São gordos de quê, então? Vento?), todos avançando sem o menor pudor para a carne de terceira que tosta nas churrasqueiras feitas de aros de caminhão. E tome cerveja, pagode, shortinhos enfiados nas bundas mais horríveis e flácidas, risos – risos não, gritos de desespero, guinchos para provar como somos alegres! Como podem ser pobres? Se eu gastasse por mês o que essa gente gasta em churrasquinho e cerveja num só fim de semana, eu teria de ter mais uns quatro ou cinco empregos.
E pobre não fala. Pobre berra. Pior que pobre berrando, só a fêmea da espécie guinchando com as crias: “Õ Maicon!!!! Desce desse muro, minino!!!!”, “Michele, Gislaine e Shaiene! Já pra dentro! Pára de galinhage no portão!!!” E tudo com aquela voz fininha, esganiçada, de cantora de ladainha do nordeste, impossível de se distinguir se foi Creuza ou Rousemar quem gritou – são idênticas.
Parece que quanto mais gordas, menores os shorts, as saias ou mais atochadas as calças leg.
É, porque pobre adora calça leg, com um topzinho pra segurar a peitarrama caída em cima de pelo menos três das sete barrigas em sucessão que a maioria delas tem.
Outra coisa incrível: a incapacidade de prever, ou ao menos relembrar a seqüência de desastres do último churrasco e assim evitá-los no presente. Em todos eles o cunhado fica “bebo” e mete o braço na mulher que berra; ela, por vingança, fica dando mole pro Edmílson PM (“quero só ver se ele é homem de se meter com um cabo da PM”); a tia idosa passa mal, que tem”pobrema de nervo, é nervosa e encostada, leva ela pro PU, gente”, alguém tem que chamar o Wellington ou o Washington, que os dois tem carro – ou a Brasília do Washington ou o Opala do Wellington – fora as garrafas que quebram, os cortes no pé e mais gritos por causa disso; as vizinhas discutindo porque uma delas quer ouvir um pancadão e a outra só gosta de axé, o Gilsinho que bebeu, gente, e vomitou tudo lá no banheiro!!
É o inferno na terra. E chamam isso de diversão, chegando felizes e realizados ao fim da peleja.
No extremo oposto, estão a tia e prima evangélicas, que não bebem, não fumam, não riem e não vivem – só condenam e ameaçam com as labaredas do inferno aqueles e aquelas que tem o despudor de ter as partes baixas abrasadas pelo fogo que o caramulhão comanda. Elas não perdem um só churrasco desses, na esperança de, segundo elas, “ganhar umas almas pro Sr.Jesus”. É claro que existem os fiéis sinceros mas, francamente, se o ambiente é tão devasso assim, o que fazem lá?
É por essas e outras que o governo ainda tem muita margem pra nos sacanear. Reclamamos de barriga cheia, porque comer, beber, rebolar e acasalar são as supremas aspirações de 99% do povo brasileiro.
O resto, tipo cultura, politização, postura e dignidade de comportamento – dar-se ao respeito, como diria vovó, é tudo coisa de boiola.
Eu e Caco Antibes temos horror a pobre. Pobres de espírito, pois deles é o domínio da terra.
Eu, heim? Sou pobre, mas sou limpinho.


Walter Biancardine é jornalista, riquíssimo, fino, chique, sofisticado, aristocrático – um sebo, enfim. E é proprietário de um reluzente Chevette 82, invejado pelos seus vizinhos.

Uma pausa na carranca

Em sinal de protesto, encontrei na porta de casa retratos meus com meias imundas pregadas neles; ou ainda umas arrumações de farofas, galinhas e charutos. Um indício mais positivo foi registrado quando fui à padaria comprar pão e todos os quatro fregueses se retiraram, murmurando e tapando o nariz.
Perguntando a mocinha do caixa o porque de tal comportamento, informou-me que isso se devia a seriedade excessiva de minhas últimas crônicas. Acrescentou também dados utilíssimos, denunciando um espírito observador e analítico: segundo ela, povo não gosta de coisa séria; povo gosta é de rir, sacudir os bundões no pagode e ler mexericos sobre a vida (de preferência, sexual) dos outros. Com uma maldade sutil, incluiu a informação de que as arrumações de farofa, galinha e charutos não vieram acompanhados do marafo por precaução – os maledicentes acreditaram que eu poderia, impiedoso, servi-la com gelo, limão e açúcar. Pura calúnia, embora deva admitir que os charutos eram de boa qualidade.
Diante deste fato tomei a decisão de, ao menos por algumas semanas, restringir meus escritos às amenidades da vida mundana, sem imiscuir-me em análises políticas, sociológicas ou outros assuntos que poderiam render-me o status de intelectual e assim favorecer-me diante de algumas senhoritas, que insistem em não considerar-me apto ao acasalamento devido a falta de atributos financeiros, econômicos, sociais, residenciais, automotivos, intelectuais, musculares, sexuais, métricos, estéticos, familiares e profissionais em minha pessoa. Umas mesquinhas, que se prendem á uns poucos detalhes apenas para me infernizar a vida e fustigar minha já moribunda libido.
A Divina Providência tornou-me imune a baixezas como essas. Sempre que tais argumentações me são atiradas á face (ás vezes, acompanhadas de pratos, pedras, tapas ou animais de estimação), ignoro-as solenemente e volto meus pensamentos para tudo de bom que a vida me deu. Lembro-me, por exemplo, de meu mais chamativo patrimônio: meu Chevette 82. Puxa vida, quando poderia imaginar que um dia teria um desses? Hoje não ando mais a pé, não preciso mais comprar sapatos (aqueles de 19,90) a cada três meses e até consegui engordar quase um quilo! O carrinho é quase zero, só preciso achar um carburador novo no ferro-velho, uma tampa de porta-luvas, refazer a parte elétrica, ver a caixa de marchas que não desengrena da quinta para terceira, ajeitar a suspensão dianteira, ver freios, corrigir uma besteirinha de puxar para a esquerda, lanternar umas bobagenzinhas e pintar tudo. Nem digo instalar um rádio, que ele não tem ainda, porque aí já é luxo e eu sou uma pessoa austera; coisa pouca, o bichinho é um achado!
E não pensem que sou um vil materialista, que só pensa nos bens tangíveis. O que tenho de mais precioso é o meu círculo de amizades, no bom sentido, é claro: Carlos Barangueiro, Ricardo Cachaça, Pantera, Coalhada, Pulga, Jorge Porcão, Dengue, Xexéu, Maria Boca-de-Álcool, Cão Miúdo, Toninho Ereção, Parede, Eiêi, Perfeita Podridão, Overdose, Animal, Heraldo Babuíno, Jairo Cagalhão e tantos outros que apenas a lembrança me emociona e me leva ás lágrimas! Pessoas de bem, reputações ilibadas, com vidas simples, comedidas e, principalmente, fiéis áqueles que pagam-lhes a bebida.
Sob tamanha chuva de bênçãos derramadas sobre minha cabeça, não posso e não devo permitir-me o desânimo apenas pelo fato circunstancial de, há cinco anos, não pegar ninguém. Se hoje noto que as mulheres, a simples menção de meu nome, fogem ás gargalhadas, por outro lado também posso constatar tudo o que ajuntei nesses mesmos cinco anos. Vejo com orgulho meu Chevette 82, meu aparelho de som CCE, com rádio-vitrola, que minha ex-sogra jogou, digo, presenteou-me; meu computador 386 quase novo; minha gata lésbica, Fuinha, que toma conta da casa mordendo, arranhando e matando tudo o que se aproxima de mim; minha TV de 14 polegadas, comprada no brechó, e que já veio com Bom-Bril e tudo na antena, além de tantas outras coisinhas que tenho atulhadas em diversas caixas de papelão, juntamente com minha coleção de chaveiros.
Realmente, não posso reclamar da vida e tenho de dar razão á criaturinha do caixa da padaria, quando diz que tenho estado muito sério.
Alegria! Alegria! É fim de semana, faz um sol de rachar; a cerveja está gelada, meu vizinho botou sua coleção completa de CD’s de “Pagodes & Pagodes”, do volume 1 ao 35, a laje já está quase batida, tenho meu Chevette, meu churrasquinho com os amigos e hoje joga o Mengão!
Diante de tamanha abundância de alegrias, lembro-me de uma passagem do “Eclesiastes” que diz: “Alegrai-vos. Comei, bebei, desfrutai o que a vida vos dá, pois essa é vossa parte no mundo, e o resto é vaidades”. Profundo e reconfortante.
O que mais posso querer?


Walter Biancardine é jornalista, e come, bebe, samba, canta, grita, pula e gargalha desesperadamente; tudo isso pra provar pra todo mundo como ele é feliz e realizado.

Eu sou brasileiro e não aprendo nunca

Domingo já é um dia complicado para mim e pior fica quando, por absoluta falta de numerário, quedo-me inerte em casa contemplando, basbaque, os absurdos do “Fantástico”, da TV Globo.
Nele, vejo um SUS que tripudia da saúde do brasileiro; uma justiça que gargalha diante da dor de vítimas de acidentes aéreos – fora todo o resto que já sabemos: não há saúde, não há educação, não há emprego, não há segurança, não há transporte, não há vergonha na cara nem dignidade, não há país. E ouso dizer: a falta de macheza e brios não é apenas dos nossos governantes. Ela é principalmente nossa. Nós é que somos os covardes, omissos, sem-vergonhas, bundões, frouxos e nossos governantes sabem perfeitamente disso. Assistimos encolhidos toda essa miséria, sem um pio, para nos manifestarmos – em altos brados e com palavras sonoras e impetuosas – apenas no noticiário esportivo, que se resume ao futebol, aparentemente o único esporte praticado no Brasil. O pão e circo está mais vivo do que nunca!
Uma criancinha morreu estuprada por um demente, que só vai cumprir um ano de jaula – isso se for pego – e sair, fresco e sorridente, pela progressão do regime? Não tem problema! Afinal, o Flamengo ganhou! Seu filho torrou suas economias estudando cinco anos em uma faculdade caríssima, e não consegue emprego? Não tem problema! Vá pular carnaval, o maior espetáculo da terra! Ele está chegando! Ficou doze horas na fila do SUS para marcar um exame, só conseguiu para fevereiro de 2009 e ainda teve de ouvir uns desaforos de um babaca que é pago com seu dinheiro e acha que está te fazendo um favor? Relaxe! Amanhã é o último capítulo da novela e finalmente saberemos quem matou Odete Roithmann!
Somos um país de hipócritas. Os anúncios de cerveja mostram apenas bundas: beba, e terá uma delas! Os anúncios de banco mais parecem novelas mexicanas e falam de tudo, menos de dinheiro. Sem exceção, a mensagem da casa bancária disfarça a agiotagem em cuidados com os entes queridos.”Abra uma conta no Banco X, e você será um bom pai!” E a mídia pratica, às escâncaras, a velha política do morde-e-assopra: para cada bofetada em nossa dignidade, uma notícia sobre carnaval, praia, futebol, mulheres ou novelas. E nós engolimos caladinhos, afinal, brigar pra quê?
Praia, sol, futebol, samba, cerveja. O país da alegria! Essa combinação só nos trouxe a certeza de que eu, você, todos nós, somos uma nação de bonecas, de covardes que, tivéssemos honra e pudor, já teríamos promovido uma baderna cívica, expulsando á pontapés essa quadrilha que nos governa. Poderíamos talvez nem resolver o problema, mas ao menos nos faríamos mais respeitados pelos próximos servidores públicos que viessem nos governar. Se não o respeito ensinado pelas mães, que essa gente parece não ter, ao menos o respeito gerado pelo medo.
Mas eu sei que nada do que escrevo fará a menor diferença. Nós já perdemos a vergonha, a dignidade, e não temos escrúpulos em sapatear sobre o sangue de uns poucos brasileiros que morreram pelo crime de não ficarem sentados, esperando tudo mudar.
Tenho vergonha de mim, de minha omissão, covardia – o brasileiro típico morre de vergonha de ser líder, tomar atitude, protestar – e o que é pior: morre de vergonha de ser honesto – o tal “Caxias”.
Tenho vergonha de minha tacanhice, de minha baixeza moral, que aceita tudo isso e o máximo que faz é escrever croniquinhas furibundas, ao invés de partir para a ação. Tenho vergonha de ser quem eu sou, de aceitar o que aceito.
E tenho vergonha de você também, leitor, que é igualzinho.

Walter Biancardine é jornalista e está de saco cheio de ser brasileiro. Que atirem a primeira pedra.

Liberdade de expressão e opinião

Dentre as recentes reviravoltas da política cabo-friense, destacou-se na semana passada a proibição do deputado e pré-candidato á prefeitura de Cabo Frio, Alair Corrêa, de falar em uma entrevista já agendada na Rádio Litoral.
Embora não tenha sido sua transmissão cassada pela força de nenhuma lei de exceção, a citada emissora teve de curvar-se ao principal e mais eficaz instrumento de coação das pseudoditaduras modernas: a força do dinheiro. Segundo consta, figuras ligadas à prefeitura de Cabo Frio teriam advertido a direção da rádio que, caso concedessem a palavra ao deputado Alair Corrêa, seriam retiradas todas as cotas de patrocínio que a prefeitura mantém naquele veículo. Além disso, outras fontes informam que a responsável pelo agendamento desta entrevista teria sido demitida dos quadros da empresa, em decorrência de sua decisão de programar tal evento. Alguns jornais noticiaram isto, e o fato é público e notório.
Não se trata aqui de fazer uma defesa da candidatura de alguém, ou mesmo um manifesto de apoio ao candidato, suas idéias ou o que seja. O que está em jogo não é um homem, e sim um dos pilares do regime democrático: a liberdade de expressão, garantida de modo inquestionável pela Constituição Federal e alcançada à custa de sangue, sacrifício, exílio, tortura, perseguição e morte de milhares de idealistas, inconformados com a unanimidade obrigatória das opiniões de um povo.
Não se sabe se tamanha excrescência no exercício do poder originou-se do próprio prefeito. Não se sabe e nem nos interessa agora especular. O que nos diz respeito é que, caso a infeliz idéia tenha partido de outra mente, e com certeza doentia, o responsável por mutilar os direitos e garantias do cidadão deve ser imediata e exemplarmente punido e exposto à execração pública, como o símbolo do cadáver de uma bisonha casta ditatorial que insiste em expelir, ainda, seus últimos e deformados filhotes. Essa resposta a Prefeitura Municipal de Cabo Frio deve à sociedade, que a mantém e concede seu poder. Qualquer que seja o autor, ou autores, o ato medieval mancha todo o quadro executivo, pois tal vergonha como que poreja das paredes do prédio da Av. Assunção. Não apurar responsabilidades, esquivar-se, protelar, será mais que outro desrespeito ao povo – será um escárnio, uma cusparada não só na face dos cabo-frienses como também na Carta Magna.
Deus deu ao homem o livre-arbítrio, a liberdade de pensar e escolher o que fazer e qual caminho seguir. Conseqüentemente, o Criador permitiu que esse mesmo homem, liberto em suas idéias, as propagasse conforme sua vontade e cabendo aos outros homens, igualmente livres em suas escolhas, a aceitação do que escutou ou não.
Quando um simples homem toma para si o papel de Deus e juiz, revogando o que está claramente entendido nas Escrituras e nos dispositivos legais de uma nação, proibindo a livre manifestação de idéias, ele não mata apenas um direito: este homem assassina a democracia e até mesmo o próprio Deus, tomando seu lugar, invalidando Sua lei e impondo um novo código, mais de acordo com suas conveniências. Devemos nos perguntar que tipo de homem ou governo considera legítimo pretender calar um direito líquido, garantido pelas leis humanas e divinas?
Qualquer mossa feita á Constituição e aos nossos direitos produz uma série de efeitos em cascata e um deles é o medo. Diante dos arreganhos dos mais poderosos todos, de uma forma ou de outra, tremem. Não foi apenas a Rádio Litoral quem se curvou ao tridente sinistro de algum Mussolini tropical, é preciso que se diga. Todas as emissoras, no dia do acontecimento, sequer ousaram noticiar o fato. E, se basta o aparecimento de um covarde para que se contamine toda uma geração de homens de bem, basta também que a sociedade aceite calada um abuso, para que outros piores venham a seguir.
O silêncio da grande maioria da imprensa cabo-friense só faz aumentar a certeza de que pressões do governo municipal são uma realidade em nossa cidade. Senão, por quê calar diante de um ato que ameaça a própria razão de ser dos meios de comunicação?
Para cada ação, há uma reação de igual intensidade e em sentido contrário. É preciso, pois, que haja uma reação imediata e cabal de toda a sociedade, expressando total repúdio á uma iniciativa infeliz e arbitrária que nos adverte para os primeiros (e não tão tímidos) passos de uma concepção absolutista de poder e de imposição de idéias.
Repito: não se trata de hipotecar apoio à candidatura ou as idéias de seja lá quem for. Que fique bem claro que, como jornalista, todo meu apoio e todos os meus esforços são no sentido de que cada um de nós tenha assegurado o seu direito de expressar o que pensa, ainda que nos contrarie frontalmente. E que os meios de comunicação tenham, finalmente, o merecido direito de cumprir suas obrigações sem temer retaliações.
A Associação Brasileira de Imprensa, a FENAJ – Federação Nacional dos Jornalistas Profissionais e mesmo a OAB, na pessoa de seu presidente da 20ª Sub-Seção de Cabo Frio, Eisenhower Dias Mariano, devem ser notificados e tem por obrigação se posicionarem quanto à violência cometida.
Indigno será todo e qualquer cidadão deste município que não expuser, de forma clara e inconteste, seu asco diante de tamanha violência. Indigno será o voto deste mesmo cidadão, direito este que custou vidas, se ele for usado para permitir que servidores pagos com nosso dinheiro se utilizem do poder, dado por cada um de nós, para nos violentarem. E indigna será a sociedade que acolher em seu seio as pretensões ditatoriais de quem quer que seja.



Walter Biancardine é jornalista e, ironia do destino, nasceu em 1964.

Eu odeio os domingos

O dia amanhece – e permanece – em silêncio.
Um silêncio grave, comprido e sonolento. Aos poucos, o mundo começa a acordar; sempre mais tarde, mal refeitos da catarse dos sábados.
E farejam os ares pela janela, espiam o sol, bocejam e se espreguiçam.
Passarinhos cantam, cheiro quente do café com pão, vozes roucas, caras inchadas. Banho tomado, talquinho nos ombros, de chinelo e bermudas rumo à padaria.
E se compra o jornal, há tempo de se comentar as notícias, palpites pro jogo de hoje à noite. Caminho de volta sem pressa, sem relógio, senhor absoluto de seu tempo e de seu ócio.
É manhã de domingo.
As mães começam o almoço, eterna esperança de uma reunião feliz. Os filhos nunca ajudam, as filhas às vezes, ou todos na praia. Marido lava carro e discute futebol. Mais tarde, todos no quintal, acendendo o carvão.
Um posto de gasolina vazio. Um carro solitário, capô aberto, mostra as entranhas para seu dono sentado na cadeira pequena dos que procuram. Um silêncio absurdo, cachorro latindo. Cerveja e jornal enquanto a patroa cozinha. Cerveja e churrasqueira enquanto a patroa trabalha.
Limpar as gaiolas, lavar as calçadas, uma trouxa de roupa destamanhão pra dar conta!, vai comprar logo a cerveja, menino!
E chegam os amigos, parentes e aderentes. Um mar de bermudas e barrigas tostadas. Um pagode no rádio e tome carne, e tome cerveja, molho à campanha – prova só essa farofinha, que delícia!
Tudo atropela a azia de sábado. O sol vai caindo, a carne esfriando, o fogo apagando. Cunhado já meio torto, um friozinho lembra da noite que chega e de todos que vão.
É a tarde de domingo.
Deitar no sofá, ver TV. Não pensar em nada, barba por fazer. Boca amarga de cerveja e o sono que ela traz. Um beijo azedo de farto, sem romance, sem carinho, um hábito.
Nada de novo, tudo igual, tudo em paz.
E a voz do Cid Moreira, trazendo o juízo final:
- “Domingo: vai começar o Fantástico...!”
É o fim de toda a esperança.
É o fim do maldito domingo.

Walter Biancardine é jornalista e acredita piamente que vai morrer em um domingo nublado, no lusco-fusco da tarde.

Ensina-me a ser burro

Nesta época de volta ás aulas, ocorre-me o acontecido com uma amiga, que passou por um constrangimento no mínimo inusitado, recentemente. O caso é que ela faz um supletivo em uma escola da rede municipal de Cabo Frio e foi pedido á classe, por sua professora, um trabalho sobre a reforma protestante de Martin Luther. Pois bem, ela fez o tal trabalho. Perfeccionista, consultou livros, viu filmes, reuniu citações, leu livros correlatos, aprendeu tudo sobre a época e os costumes, teceu um panorama da conjuntura em que estas reformas se deram; construiu enfim uma base histórica sólida, que permitiu realizar uma análise crítica não só pelo aspecto religioso como também social e político, tanto da época quanto da atualidade, com relação á esse tema. Depurou de tal modo a linguagem e o estilo que conseguiu levar á sua mestra um trabalho substancioso, informativo, e também agradável de se ler. Coerente, não deixou de expressar suas opiniões e aguardou ansiosa a nota que, estava segura, seria excelente.
Pois bem. De dez pontos possíveis, a professora deu-lhe dois. Isso mesmo, dois. Perplexa, foi consultar a mestra para saber o que havia acontecido, se cometera alguma imprecisão histórica ou mesmo alguma outra falta mais grave. A alegação da professora para sua nota medíocre foi exatamente o que se segue abaixo, para espanto e horror do amigo leitor:
“- O seu trabalho estava tão bom que é evidente que não foi você quem fez. Isso é trabalho de um filósofo. Você copiou de algum site da internet”.
Incrédula diante de tamanha estupidez, ainda tentou argumentar desafiando a professora que procurasse em qualquer lugar um trabalho sequer parecido com o dela. A reação daquela que se dizia mestra foi motivo de maior perplexidade ainda: como minha amiga expunha opiniões pessoais em seu trabalho, e este era de cunho evidentemente religioso, a pobre expressou ali o seu desagrado frente ao comportamento de determinadas igrejas evangélicas no Brasil, algumas das quais tiveram inclusive seus líderes presos no exterior. Isso em um trabalho de aula, destinado á apreciação exclusiva da professora.
Permito-me chamar esta criatura de indigitada para citar que ela leu em voz alta, para uma classe majoritariamente evangélica, o texto de minha amiga e perguntou o que eles achavam. Como se fosse uma animadora dos piores programas de auditório, á exibir deformidades diante da turba ignara, ela jogou minha amiga aos leões do coliseu de sua ignorância e insensibilidade! Não apenas julgou sem analisar, o que demonstrou um violento preconceito e ranço contra os que querem aprender, como deixou a cargo de alunos o julgamento final de um trabalho destinado à sua única e exclusiva apreciação, torno a dizer.
A reação dos colegas foi surpreendentemente típica de fanáticos religiosos: gritos, apupos, recusas em escutar ou sequer tentar compreender pontos de vista alheios, como se idéias contrárias os contaminassem; sermões, doutrinações, um pandemônio tão grave que a aula teve de ser encerrada, enfim. Coroando a barbárie, ainda teve de escutar uma “pérola” proferida por uma sua colega de classe:
“- Escola não é lugar de cultura, minha filha. Aqui é só pra tirar o diploma!”
Tudo isso por obra e graça desta senhora a qual, em minha opinião particular, não reúne humanidade nem discernimento suficientes para ensinar nada á ninguém. Uma indigitada, repito, calçando um par de enormes sapatos de pedra que a impedem de andar em direção á luz. E passível também de um processo judicial, por expor um aluno á um constrangimento desnecessário, violento e absurdo como esse – além, é claro, de ter incorrido em cerceamento da liberdade de expressão e de credo religioso, ao adotar uma postura omissa e passiva diante de alunos medievais, alunos esses que são obra e graça do sistema de aprovação automática que, se produz estatísticas belíssimas, condenou toda uma geração de brasileiros às trevas e à indigência intelectual.
Minha amiga é persistente. Engoliu o sapo, não levou o caso ao conselho de classe e continuou seu aprendizado.
Pois bem. Novamente um trabalho, desta vez aparentemente mais fácil e menos controverso. Tema: literatura de cordel. Fazer uns tantos versos e produzir o livrinho típico deste gênero. Só que minha amiga já está escaldada e, sabedora do despreparo e ignorância infinita de boa parte dos professores da rede pública de todo o Brasil, levou antecipadamente para apreciação de sua mestra dois tipos de versinhos, os quais cito abaixo:
“Oh, que saudades eu tenho da aurora de minha vida/Das brincadeiras na lagoa/Das tardes compridas(...)
O outro tipo obedeceu ao bom-senso de minha amiga:
“Lampião morreu de tiro/Quando a arma pipocô/Eu já vi gente com dengue/Que da cama num passô/Me devorve mô dinhêro/Que no hospitár num vô/nhamm...nhamm...nhamm...êh boi!(...)
Prudente, ela resolveu consultar a professora antes de ter o trabalho de fazer tudo e ver seus esforços jogados no lixo ou, pior, usados como objeto de escárnio.
Adivinhem qual foi o gênero que sua culta e douta mestra elegeu como típico da literatura de cordel, aquela do cantador violeiro, que cantava as façanhas de Lampião, do Coronel poderoso e do povo rude e sofrido do agreste?

Daria tudo para ver Lampião suspirando pela aurora de sua vida.

Walter Biancardine é jornalista, escritor, fotógrafo, artista plástico, chargista, designer e tradutor, entre outras atividades. Ainda assim insiste que não deve ser chamado de burro só por que não tem nenhuma profissão que dê dinheiro.

Eu estava quieto dormindo. Por que tive de levantar e escrever isto?

Se eu tivesse talento,
Escreveria sobre a solidão.
Sobre a alegria obrigatória das noites,
A gargalhada desesperada,
A euforia da fuga de tudo,
Das misérias que nos fazem pequenos.

Se eu tivesse talento,
Faria rimas, escreveria versos,
Frases definitivas,
Caberiam nelas todas as nossas sangrias,
O enjôo de tanto beber
Todos os excessos, todas as faltas.

Se eu tivesse talento,
A solidão passaria vergonha,
E não eu, procurando colo,
Nos colos mais sem nada-a-ver,
Rasgando amizades, apagando sorrisos,
Eu seria lúcido, namorado da vida.

Se eu tivesse talento,
Teria dinheiro, teria amigos,
Mas nunca mais mulheres.
Porque se o mundo me aceitasse,
Uma só quereria que me quisesse –
Meu colo, meu porto, e ninguém mais.

Mas se tudo isso eu tivesse,
Finalmente seria feliz.
E se feliz eu fosse,
Nunca mais escreveria,
E se não escrevesse mais,
Certamente morreria.

Triste de quem, para criar precisa sofrer;
Precisa beber, descer aos infernos
Ou voar para a lua.
Cada linha, um corte;
Cada frase, uma dor.
Triste de quem, para ser feliz,
Precisa não ser.

Walter Biancardine é jornalista, e se recusa a comentar sobre seu estado de espírito e seus hábitos noturnos.

Eu, o Sr. Jack Daniel´s e meus 12 leitores

Eu, enquanto profissional da imprensa, acendo todos os dias uma velinha para meu santo padroeiro neste bizarro ofício que abracei: São Francisco de Assis Chateaubriand.
Somente escorado em uma reza forte para um santo desse calibre é que encontro inspiração para debruçar-me sobre o teclado e tecer as tramas que serão apupadas pelos meus solitários doze leitores. Ás vezes, entretanto, o santinho falha e vejo-me obrigado á recorrer ao meu velho e fiel amigo, Sr. Jack Daniel’s para que, inspirado pelos seu “insight”, pelo seu “feeling”, e principalmente pelo seu poder em proporcionar uma viagem etílica nobre e digna, muito superior ao encharcamento empapuçado e de baixo nível da cerveja, possa finalmente expelir algumas linhas que façam algum sentido.
Foi desta maneira que, confesso, conquistei a simpatia de meus doze leitores. Não pensem que foi um relacionamento sem altos e baixos, sem desconfianças ou coisa que o valha, eis que, recentemente, acusei-os todos de vil traição ao ler uma coluna escrita pelo inimitável Professor Sepúlveda e deparar-me com sua declaração de que possuía – pasmem – doze leitores!
Tal revelação produziu em mim um efeito tão catastrófico que, ao fazer uma entrevista com ele, apresentei-me como...Professor Sepúlveda! Um caso clássico de crise de identidade.
Magnânimo, o Professor perdoôu-me, indicou um terapeuta de sua confiança e brindou-me com a subida revelação de que seus doze fiéis nada tinham a ver com a corja suspeitosa e ignara com a qual me relacionava.
Ainda assim, a suspeita de traição pairava no ar. Fui aconselhar-me com o Sr. Jack Daniel’s, que convocou uma reunião entre eu e os Judas da literatura, os quais, para pasto e gáudio de seus inimigos, bem como para execração pública, entrego agora os seus nomes:

1- Coalhada, garçom no boteco “Cospe-Grôsso da Vila Nova”, o melhor tira-gosto da cidade.
2- Tião Trombada, limpeza e regulagem de carburador. Buraco do Boi, 7
3- Seu Jorge, que conserta persianas e cortinas. Oco do mundo, 27 fundos
4- Pé Rachado, serviços gerais, biscates diversos.
5- Orozimbo de Ogum, traz a pessoa amada em três dias, faz e desfaz trabalhos. Sastifassão garantida!
6- Michelle gatinha 21 aninhos. Marquinha de biquíni. At. Hot. Mot. Domicílio. Privê c/ aparelhos. Faço porque gosto. Quem nunca fez comigo n. sabe o q. é fazer amor. Ligue já.

Pois é, amigo leitor. Em nossa profissão, é preciso ter um comportamento pautado pela ética, seriedade e pelo dever de informar, e estes foram os principais motivos pelos quais não divulguei os nomes da outra meia-dúzia: eles se recusaram a pagar uma ajuda de custo simbólica, que permitiria que seus nomes figurassem na coluna mais prestigiosa deste portal, divulgando seus ofícios e emprestando a eles a credibilidade de meu nome ilibado.
Em companhia do Sr. Jack Daniel’s e iluminado pela divina inspiração de São Francisco de Assis Chateaubriand, tomei a decisão mais correta, mais ponderada, mais de acordo com meus rígidos princípios morais e éticos: ficarão no ostracismo, até que reconheçam seu pecado da avareza e contribuam para que eu possa, finalmente, lanternar o meu Chevette.


Walter Biancardine é jornalista, releu o livro “Chatô, o Rei do Brasil” e concluiu que a única diferença entre um escroque e um gênio é o grau de intimidade com os governantes.

Nem tudo o que pensamos é verdade

Chegando atrasado a um compromisso, adentrei repentinamente á sala e ainda pude ouvir comentário significativo a meu respeito: “– Deve estar caído por aí, largado embaixo de alguma pedra, com overdose!!” Pus-me então a pensar que, ás vezes, construímos involuntariamente uma fama que não corresponde á realidade. Vá lá, corresponde, mas só um pouquinho. Compartilho com Lobão, meu filósofo de cabeceira, a opinião de que é melhor viver dez anos a mil, que mil anos à dez. Assim, arrasto um tortuoso passado de bebedeiras memoráveis, doideiras exóticas e esotéricas, festas impublicáveis em meio á mulheres de costumes fáceis e duvidosos, além de hábitos pouco recomendáveis aos que aspiram uma existência mais, digamos, ascética. Ou asséptica, em meu ponto de vista. Em anos e anos de exercício da profissão de sociólogo de botequim, atravessei inevitavelmente situações nas quais, se realmente me lembrasse do que fiz poderia até contar, mas em Sua sabedoria e piedade infinita, o Senhor me fez esquecer. Do mesmo modo, aprendi na prática que existe a hora e o lugar para se pegar o primeiro táxi para a estação lunar. E esse lugar, com certeza, fica á milhares de milhas de nosso trabalho. Toda essa arenga aí de cima mostra só o lado bom, eis que o trabalhar de ressaca após uma noite bombástica é um privilégio, pois ao menos você teve uma noite das boas. Do mesmo modo minha cara, com a qual a mãe natureza não foi generosa e menos ainda o foi o pai tempo, ostentaria á vontade todo o horror da noite mal-dormida e ninguém teria nada a ver com isso. Que lição eu aprendi neste último fim de semana, ao assistir o show de Oswaldo Guimarães, no Teatro Municipal. Oswaldo é meu amigo há uns quase trinta anos e há de me perdoar se cometo aqui alguma indiscrição. O caso é que ele já chegou no teatro vítima de uma terrível dor nas costas, a ponto de pedir um massagista; e pior, com a lembrança triste de que naquele show o seu pai, Oswaldão, não mais estaria ali. Ao menos fisicamente. Arrastando as duas dores, as piores dores, subiu ao palco. Com a tristeza e saudades de um pai morto tão cedo e repentinamente, costas em brasas, todo ele se curvava em gestos e expressões de um luto físico, profundo e indizível; silencioso e resignado como jamais verei outra vez. Mas, ao contrário de mim, ele não podia ostentar uma cara horrível. Seus gestos, sua postura ligeiramente curvada e com movimentos lentos denunciaria á um observador mais atento, talvez, apenas a ponta do iceberg de agonias que o consumiriam por dentro. Mas as cortinas se abriram e o público queria show, alegria e diversão. E ele cantou como poucas vezes tive o privilégio de ouvir. Auxiliado por uma banda que, se não for de outro planeta nasceu junto aos cogumelos do quintal, imagino que deva ter jogado todos os seus males em seu canto, tal qual uma Janis Joplin MPB de barba. E eu, lá na coxia, bebendo daquela agüinha danada que reservam geralmente aos bateristas, fiquei pensando em que tipo de forças poderia levar um homem á superar-se tanto, a ponto de verdadeiramente parecer encarnar uma outra pessoa, sem dores, sem problemas – tudo isso por amor e respeito á sua arte de cantar e, é claro, seu público – que entupia as acanhadas dependências do único teatro da cidade. Ao final do show, apoteótico por sinal, Oswaldo arrumou suas roupas, entrou no carro e foi dirigindo para casa, junto de sua mulher. E nós, o público, fomos fazer tudo aquilo que imaginamos que um artista faz após um show: reunimo-nos em um pileque grupal da melhor qualidade, entre risos, alegrias, paqueras e todo o vasto arsenal utilizado pelos notívagos para esconder suas solidões e misérias. E Oswaldo lá, na casa dele, dormindo quietinho e desfrutando do privilégio de ter uma família, na santa paz de Deus. * * * Para os vitimados pela solidão, qualquer sorriso é um dia de sol. E aí se produzem os piores mal-entendidos, situações constrangedoras onde nada corresponde ao esperado, nem mesmo seu próprio comportamento. Também, como ser galante dirigindo um Chevette? * * * Que eu jamais saiba realmente o que as mulheres pensam. Ou pelo menos algumas. Ou uma, para ser mais exato. A ignorância, ás vezes, é uma dádiva para a auto-estima. 

Walter Biancardine é jornalista e tem andado muito emotivo ultimamente. Deve ser falta de mulher.

Esquizofrenia Sentimental

Esquizofrenia sentimental – lado A Mostrem-me um sujeito que nunca gemeu com um pé na bunda, e eu lhes mostrarei um mentiroso. Coisa engraçada, e trágica ao mesmo tempo – a tal da dor de cotovelo. Não direi “dor de corno” senão serei repreendido por escrever palavrões demais e do jeito que estou, furibundo e muito surto da vida, acabarei por alinhar um dicionário escatológico-pornográfico em intenção dessas desalmadas, mais conhecidas como “ex”. Sejam ex-ficantes, ex-namoradas, ex-noivas ou a pior delas, a ex-posa, todas se equivalem em sua maldade infinita e requintado sadismo. Uma das características mais irritantes dessas criaturas peçonhentas é a insistência de todas elas na possibilidade de “ainda sermos amigos”. Que mané amigos o escambau! Se você mulher deseja fulminar um homem, chame-o de amigo! Mas, se é a morte sexual do parceiro que a impiedosa pretende, ela dirá que o acha “tão bonzinho...!”. Um homem “tão bonzinho...!” está abaixo da linha de sobrevivência, é o atestado definitivo de pessoa inofensiva e fora de cogitação. Em suma, rejeitado na seleção natural para o acasalamento, onde só os fortes sobrevivem. Já vi muito marmanjo reputado como macho de boa lei chorar feito cabra no abate, após levar o pé. Outros surtam, têm espasmos, cometem sandices do tipo escolher a maior baranga das vizinhanças e desfilar com ela, só pra humilhar a ex. Pobres desatinados! Tudo isso deve ser um desejo inconsciente de autopunição, pois os que choram colocam-se na condição abjeta de “bonzinhos”, e os que caem na barangagem são vítimas infalíveis dos comentários do desdém feminino: “– até que ponto ele desceu, coitado...” E com isso, as mulheres insensíveis só se fortalecem, já que acreditam ser uma prova cabal de que, como diria Paula Toller do Kid Abelha, “longe do meu domínio, você vai de mal á pior”. Pois é, caro leitor macho: elas são todas assim, não merecem nossas lágrimas. Mas, perguntará com certeza o meu dolorido leitor: por que tamanha revolta se o autor desta – vitimado já por dois casamentos – está solteiro neste exato momento? Por que atira impropérios á esmo nas mulheres? Serei sincero: é que ando meio farto dessas criaturas infames, que consumiram boa parte de minha juventude. Amores desfeitos, não correspondidos, fora os impossíveis! Relacionamentos nos quais não havia compreensão, companheirismo, cumplicidade... Pois é amigo: tanta dedicação pra nada. O fato é que estou mesmo cansado das mulheres. Tudo o que eu queria agora era estar numa ilha deserta, longe da ingratidão, dos ciúmes, dos problemas, tranqüilo...só eu, na santa paz de Deus, com um mulheraço ao meu lado. * * * Esquizofrenia sentimental – lado B Creio que toda mulher seja um castelo, que traz em seu interior um mundo próprio, inteiro, a ser conquistado. Têm seus sonhos, suas cobiças, fragilidades, talvez até mesmo um vocabulário particular. Uma linguagem que, se tudo der certo, acabaremos aprendendo e os amigos mais chegados com certeza irão reparar nosso sotaque. Algumas vezes um vistoso castelo, conquistado às duras penas, esconde em seu interior apenas uma terra arrasada pela aridez de saber-se bela – e tudo o mais seria desimportante. Outras vezes aqueles muros, cuja figura faz parte de nosso trajeto cotidiano e difuso pela pressa e indiferença que a ambição nos impõe, só são notados quando o acaso nos leva a variar o caminho e passar próximo a ele. Se a sorte e a curiosidade nos favorecem, aproveitamos uma porta entreaberta e espiamos. E lá dentro, tão perto e tão longe ao mesmo tempo – já que somos apenas intrusos curiosos – descobrimos um mundo. O nosso mundo. O lugar que sempre pertencemos, mas nada conhecemos. Tudo para se ver, provar, sentir; sabendo de antemão que, se aceitos e convidados á entrar, a porta se fechará por detrás e lá ficaremos prisioneiros, ainda que expulsos um dia. Aconteceu comigo, recentemente. Variei o caminho e lá estava ela, a construção que sempre vi e só então notei. Talvez eu nunca a tenha percebido até mesmo por meu temperamento introspectivo, que seria o oposto daquela casa aparentemente sempre em festa. E eu, muito ajuizado e prudente, achava que a alegria esconderia apenas futilidade e o vazio de habitantes fugazes. Foi preciso que eu chegasse bem perto e visse seus olhos, que dizem ser as janelas da alma. Uma melancolia indefinida, mágoas e tristezas que ela não daria a nenhum sujeitinho o gosto de vê-las, arremessando no lugar do choro o sorriso inconfundível de quem tem uma intensa e bela vida interior. Naquela casa, ou melhor, castelo, a alegria não excluiu o juízo, o recato, o caráter, e me fez pensar no quanto outras pessoas podem ser fortes, nascidas mesmo para brilhar, sem que a gente sequer se dê conta disso. Não sei como você se comportaria diante disso, amigo leitor. Mas a minha reação foi ver-me em um espelho, que não refletiu nada de bom. Vi o quanto sempre sou fraco, feio, até mesmo um caráter duvidoso – não foi uma nem duas vezes que sorri para alguém que detestava – e não me achei digno sequer de pretender tentar passar porta adentro. Ela me intimidou. E tudo isso sem dizer uma só palavra. “Muitas pessoas ficam aliviadas ao perceberem que conseguiram esquecer um amor. Já eu, com a prática que tenho adquirido, fico cada vez mais preocupado”. Walter Biancardine filosofou a máxima acima, e às vezes se envergonha de ser tão bobo que pára de fugir de si mesmo e fala sério.

Antes sóbrio do que mal-acompanhado

De um sujeito que viveu muito, diz-se: “– este tem histórias pra contar!”.
O que é um atormentado que se mete a escrever senão alguém que julga ter algo de realmente importante para contar, ou mesmo acrescentar, á vasta enciclopédia dos disparates humanos? Recebi, por conta de crônica cometida semana passada, inúmeras cartas de meus 12 leitores – e foram cartas porque, mãos trêmulas, eles já se encontram em uma idade na qual é preferível caneta-tinteiro ao teclado – parabenizando-me pela coragem indecente de expor minhas rugas ao sol do público. Encorajaram-me, disseram que a vida começa aos sei lá quantos anos, etc, etc. E foi assim que, estimulado pela multidão dos 12 (eram 13 mas, cabalísticamente, não era bom. Ponderava eu em como resolver isso, quando um enfarto liquidou o assunto e o meu leitor.), pus-me então á pensar sobre as histórias que vivi, tão ou mais alucinadas que os parágrafos acima, já que a grande maioria delas envolve numeroso cortejo de senhoras e uma litragem cavalar de birita, entre outros artigos. O que de mais interessante acontece nesses fatos vividos é que neles havia uma certa inocência que não consigo ver hoje. Sou de uma geração em que, por parte dos irmãos e amigos mais velhos, ainda herdou muito de Woodstock, Flower Power, todo o sonho de um novo mundo anunciado, morto pelos Youppies que se seguiram. Da parte dos amigos da mesma idade ainda pegamos o governo militar, meu jornalzinho do colégio foi censurado tantas vezes que me tornei amigo do dono da escola – pasmem, um almirante, que era pai do nosso Carlos Eduardo Novaes – tínhamos ideologias, sonhos, e discutíamos muito seriamente sobre isso. E as mulheres? Ah, as mulheres! Era preciso todo um “approach”, saber chegar, ter um papo legal e, principalmente no meu caso, tão legal que fizesse a dama esquecer minha cara, em nada parecida com a do Clint Eastwood conforme mentia caridosamente mamãe. E aí, bebíamos. Era a coragem vendida em litros. E se meu consumo desenfreado de Jack Daniel’s provocou alguns fiascos, sem falsa modéstia também produziu argumentações fantásticas, onde toda a lógica, filosofia, liberação feminina e o direito ao orgasmo desembocavam no banco de trás do Dodge Charger RT do meu pai, uma beleza de carro! Mesmo as amizades eram de uma outra espécie de cimento. Encontrei-me agora com um velho – minto – velhíssimo amigo, eis que o conheço desde meus sete ou oito anos; companheiro de porres memoráveis, dores-de-corno apocalípticas e aventuras sem pé nem cabeça. Pois bem, este mesmo cidadão, hoje um próspero funcionário da TV Globo, seqüestrou minha paquera. É isso mesmo, com todas as letras! O caso foi que estávamos ociosos e tocando violão numa esquina da Vila Nova. Evandro Marinho era magro e Oswaldo Guimarães tinha cabelo; éramos jovens, irresponsáveis, felizes e muito, muito companheiros. Isso até quando uma loirinha estonteante passou por nossa calçada. Desnecessário dizer que abatí-me sobre a incauta com a precisão de um F-16; falei, falei, argumentei, exibi todo o meu charme irresistível de pequeno burguês decadente e marquei um encontro para a noite, onde a pegaria para sair em meu reluzente Passat. Eu já tinha toda a maldade arquitetada, já que a pobrezinha estava sozinha na cidade, esperando a família. Pensei: “Sozinha? Ótimo, tenho um quartinho lá em casa que vai servir de jeito, meus pais são legais, não vão se incomodar, fica fria, baby...” Pois bem; deu 8, 9 horas e nada. Uma musiquinha irritante da época zombava: “já fumei um cigarro e meio e ela ainda não veio”. Como naqueles idos só havia uns 50 telefones em Cabo Frio e o celular pertencia á ficção científica, retirei-me acabrunhado com o bolo – hoje conhecido como “toco”. Os dias se passaram, as férias estavam se acabando e confesso que até esqueci da ingrata. Foi quando, perambulando pelas calçadas uma noite, avistei o carro desse meu amigo. Um belo Opalão, com a última moda da época: vidros fumê impenetráveis. Rodava devagarinho, como que paquerando, e corri para alcançá-lo. Tive de bater no vidro para que eles se abrissem, o que me causou estranheza. Mas a verdadeira estranheza revelou-se lá dentro do carro, espremida entre ele e seus irmãos: a minha loirinha! O safado ouviu tudo e aplicou o mesmo golpe que planejei. Brigamos, saímos no cacete, o pau comeu? Nada. Dia seguinte Oswaldo e Evandro começariam sua primeira noite como, digamos, o que pensávamos ser “profissionais”, cantando e tocando violão em um boteco no centro da cidade. O cachê foi generosamente doado em favor de nossa amizade – litros e litros de um querosene execrável, todos bebidos por ele e eu, novamente amigos inseparáveis – já que Oswaldo nunca foi chegado á aguinha que passarinho põe gelo. Mas, por via das dúvidas, desde então caço sozinho.

TESTE: VOCÊ É VELHO MESMO? Responda as perguntas abaixo e veja se você já pode fazer parte da seleta categoria dos “quarentões”: 

 1- Velosolex era: A) marca de preservativos B) uma marca de relógio C) uma motoneta 

 2- Continental, Preferência Nacional – vinha em quantas versões? A) 14 e 20 polegadas B) 2 ou 4 portas C) com filtro/ sem filtro 

 3- Você já usou “New Wave”? A) não B) que diabos é isso? C) sim, mas era porque minha namorada pedia 

 4- Pra você, morro da Urca é sinônimo de: A) uma favela do Rio B) um novo prato do Tia Maluca C) Noites Cariocas 

 5- No Rock in Rio 1 você estava: A) no berço B) em casa, mamãe não deixou ir C) chapado

  RESPOSTAS: Caso você tenha respondido “C” em todas as alternativas, parabéns! Você sobreviveu a luz negra das boates, embalos de sábado á noite e a lambada! Você é, antes de tudo, um forte! Um forte candidato á um exame de próstata. Lamento, amigo. É a vida. 

 Walter Biancardine é quarentão, acredita que a vida começa aos quarenta – a vida após a morte – e também quer rir da desgraça dos outros.

Escrevo, logo existo

Há que se escrever. Escrever sempre, praticar, treinar. É a melhor forma de, quando não temos nada a dizer, nenhuma história a contar, manter o estilo e pedir ao bom Deus que nos envie um parágrafo ao acaso, daqueles que nos rendam laudas e laudas, até estragarmos o que havia de divino nele. Outra coisa recomendável é escrever rápido, sem pensar muito nem ligar para os erros de português, pois nas correções sempre pensamos em uma palavra ou vírgula que poderia ser mais bem colocada. Escrever rápido também preserva a espontaneidade da criação, sem infecta-la com a mediocridade do premeditado. Mas, sobre que raios escreverei? Sobre nada, ora! Como disse no início (e já estou premeditando), há que se escrever.
Uma boa receita para tentar ser escritor é pensar da seguinte maneira: não adianta querer escrever rápido sem ter o texto quase completo na cabeça. É com o cérebro que se escreve, não com a caneta. Nem pensar em querer escrever rápido ou mesmo lento, sem ter nada na idéia. Querer criar enquanto escreve é rematada loucura. Claro, sempre se cria algo, ás vezes o próprio teclado sugere frases, bem como a figura do papel á sua frente. Mas isso serve para poucos parágrafos, um e outro retoque. Quer escrever um livro? Tenha-o inteiro na cabeça, antes. Quer escrever uma boa reportagem? Saiba tudo sobre o caso, apaixone-se por ele, pois uma boa reportagem nada mais é que um relato apaixonado, vestido com o terno e gravata do jornal das oito. Jornalismo completamente imparcial não existe, pois somos humanos e sujeitos á emoções. Meu ponto de vista não é o seu, nem o do meu editor e muito menos o do departamento financeiro. Se deixarmos que a vida nos insensibilize, viveremos mais confortáveis emocionalmente, mas teremos matado a criação, já que ela existe na razão direta das emoções á flor da pele.
Será que perdi a alegria criativa? Além do quê, é difícil os outros aceitarem ousadia criativa em um circunspecto senhor já meio grisalho. Criação, loucura, ousadia – tudo isso pertence á juventude. E por mais que hoje em dia a adolescência esteja indo até os trinta e muitos anos, aos quarenta e três devo me conformar em ser classificado como um velho. A maturidade sumiu. O mundo hoje se divide em crianças, uma multidão infinita de adolescentes e uns atravancantes matusaléns, que insistem em viver sua decrepitude indecente e repentina dos quarenta anos; jovem demais para se aposentar ou morrer, e muito velho para ser criativo. Repentina sim, por que um dia você é garotão. No outro, ao colocar uma calça com vincos, ou mesmo desconhecer uma nova gíria ou lugar da moda, és um velho. Assim, de repente, sem escalas.
Tenho o vício de reler o que escrevi. Isso é fatal. Sempre que releio, corrijo, acrescento, corto, mutilo. E aí, quando ás vezes escrevo um período no qual consigo intuir aquela faísca do Divino, lá estou eu, querendo melhorar. E meu anjo torna-se perneta. Por outro lado, já aconteceu que linhas inteiras de mediocridade tenham sido substancialmente melhoradas por essa ânsia de corrigir. E agora, qual será o meio-termo justo? Ora, se alguém no mundo soubesse o meio-termo de algo, a ponderação, o equilíbrio, oitenta por cento dos religiosos do mundo perderia seus empregos. E nem tão pouco teríamos surtos de genialidade que só são sentidos na criação sem ponderação ou arte-final. O retoque empobrece sempre. Sabem qual é o nome disso? Síndrome de Salieri, aquele amigo invejoso do Mozart, do filme Amadeus – lembram-se? Sim, a capacidade de intuir o Divino sem, entretanto, alcança-lo. O sujeito dotado do verdadeiro dom de Deus não precisa de revisores. A obra sai pronta. Só os atormentados, como eu, que sempre persistem em sua faina de tentar voar sem ter asas. O que me mantém escrevendo é a confiança de que talvez, lá no fundo, eu ainda tenha de fato algum frescor. Doente, atrofiado, mas ainda vivo, latente e pedindo para ser libertado, pedido cujos gritos de socorro são os breves e raros períodos nos quais escrevo coisas que nem eu mesmo acredito que escrevi. E sempre coisas que me vem á mente inteiras e acabadas, prontas, como se o Altíssimo m’as tivesse soprado nas orelhas cabeludas da bruteza.
Um conselho de Ernest Hemingway que é certíssimo: não escreva até exaurir a idéia que você tem em mente. Se o fizer, não terá como continuar o texto depois. E se eu tenho algo de passional hoje em dia é essa fúria de escrever até esvaziar as glândulas. Isso é mortal para o texto. Como me controlar? Não sei. O que sei é que depois fico pelas linhas, enrolando, enchendo lingüiça até que me brote alguma idéia salvadora. E aí caio naquele caso de querer criar durante o ato de escrever. Nunca dá certo. É como fazer sexo uma, duas, três vezes, ainda querer mais e não poder (spiritu promptus est, caro auten infirma). Continuo querendo escrever – até como válvula de escape de uma vida louca – mas não tenho mais a ereção cerebral necessária para tanto. É o caso de agora, e com este exato texto: já li, reli, corrigi, alterei, acrescentei, pratiquei nele todos os meus vícios dos quais faço aqui minha mea culpa. E aí ficamos com aquela sensação de coito interrompido, já que a idéia era fabulosa, mas o produto final, pífio. Finalmente, se existe algo menos espontâneo que um final, eu desconheço. O fim de um texto é sempre um feijão escolhido: palavras pensadas, lógica observada, coerência, e a emoção necessária e pré-fabricada, a emoção do artífice, artificial, de plástico. Para tentar ser diferente, embora não de todo, já que anunciei o final, aí vai: pra mim, a mais perfeita definição do tal coito interrompido é a seguinte:

* * *

Walter Biancardine é jornalista; estava sem assunto, de ressaca e em plena crise da meia-idade quando escreveu isso. Mas amanhã ele melhora.