sábado, 20 de outubro de 2007

Ensina-me a ser burro

Nesta época de volta ás aulas, ocorre-me o acontecido com uma amiga, que passou por um constrangimento no mínimo inusitado, recentemente. O caso é que ela faz um supletivo em uma escola da rede municipal de Cabo Frio e foi pedido á classe, por sua professora, um trabalho sobre a reforma protestante de Martin Luther. Pois bem, ela fez o tal trabalho. Perfeccionista, consultou livros, viu filmes, reuniu citações, leu livros correlatos, aprendeu tudo sobre a época e os costumes, teceu um panorama da conjuntura em que estas reformas se deram; construiu enfim uma base histórica sólida, que permitiu realizar uma análise crítica não só pelo aspecto religioso como também social e político, tanto da época quanto da atualidade, com relação á esse tema. Depurou de tal modo a linguagem e o estilo que conseguiu levar á sua mestra um trabalho substancioso, informativo, e também agradável de se ler. Coerente, não deixou de expressar suas opiniões e aguardou ansiosa a nota que, estava segura, seria excelente.
Pois bem. De dez pontos possíveis, a professora deu-lhe dois. Isso mesmo, dois. Perplexa, foi consultar a mestra para saber o que havia acontecido, se cometera alguma imprecisão histórica ou mesmo alguma outra falta mais grave. A alegação da professora para sua nota medíocre foi exatamente o que se segue abaixo, para espanto e horror do amigo leitor:
“- O seu trabalho estava tão bom que é evidente que não foi você quem fez. Isso é trabalho de um filósofo. Você copiou de algum site da internet”.
Incrédula diante de tamanha estupidez, ainda tentou argumentar desafiando a professora que procurasse em qualquer lugar um trabalho sequer parecido com o dela. A reação daquela que se dizia mestra foi motivo de maior perplexidade ainda: como minha amiga expunha opiniões pessoais em seu trabalho, e este era de cunho evidentemente religioso, a pobre expressou ali o seu desagrado frente ao comportamento de determinadas igrejas evangélicas no Brasil, algumas das quais tiveram inclusive seus líderes presos no exterior. Isso em um trabalho de aula, destinado á apreciação exclusiva da professora.
Permito-me chamar esta criatura de indigitada para citar que ela leu em voz alta, para uma classe majoritariamente evangélica, o texto de minha amiga e perguntou o que eles achavam. Como se fosse uma animadora dos piores programas de auditório, á exibir deformidades diante da turba ignara, ela jogou minha amiga aos leões do coliseu de sua ignorância e insensibilidade! Não apenas julgou sem analisar, o que demonstrou um violento preconceito e ranço contra os que querem aprender, como deixou a cargo de alunos o julgamento final de um trabalho destinado à sua única e exclusiva apreciação, torno a dizer.
A reação dos colegas foi surpreendentemente típica de fanáticos religiosos: gritos, apupos, recusas em escutar ou sequer tentar compreender pontos de vista alheios, como se idéias contrárias os contaminassem; sermões, doutrinações, um pandemônio tão grave que a aula teve de ser encerrada, enfim. Coroando a barbárie, ainda teve de escutar uma “pérola” proferida por uma sua colega de classe:
“- Escola não é lugar de cultura, minha filha. Aqui é só pra tirar o diploma!”
Tudo isso por obra e graça desta senhora a qual, em minha opinião particular, não reúne humanidade nem discernimento suficientes para ensinar nada á ninguém. Uma indigitada, repito, calçando um par de enormes sapatos de pedra que a impedem de andar em direção á luz. E passível também de um processo judicial, por expor um aluno á um constrangimento desnecessário, violento e absurdo como esse – além, é claro, de ter incorrido em cerceamento da liberdade de expressão e de credo religioso, ao adotar uma postura omissa e passiva diante de alunos medievais, alunos esses que são obra e graça do sistema de aprovação automática que, se produz estatísticas belíssimas, condenou toda uma geração de brasileiros às trevas e à indigência intelectual.
Minha amiga é persistente. Engoliu o sapo, não levou o caso ao conselho de classe e continuou seu aprendizado.
Pois bem. Novamente um trabalho, desta vez aparentemente mais fácil e menos controverso. Tema: literatura de cordel. Fazer uns tantos versos e produzir o livrinho típico deste gênero. Só que minha amiga já está escaldada e, sabedora do despreparo e ignorância infinita de boa parte dos professores da rede pública de todo o Brasil, levou antecipadamente para apreciação de sua mestra dois tipos de versinhos, os quais cito abaixo:
“Oh, que saudades eu tenho da aurora de minha vida/Das brincadeiras na lagoa/Das tardes compridas(...)
O outro tipo obedeceu ao bom-senso de minha amiga:
“Lampião morreu de tiro/Quando a arma pipocô/Eu já vi gente com dengue/Que da cama num passô/Me devorve mô dinhêro/Que no hospitár num vô/nhamm...nhamm...nhamm...êh boi!(...)
Prudente, ela resolveu consultar a professora antes de ter o trabalho de fazer tudo e ver seus esforços jogados no lixo ou, pior, usados como objeto de escárnio.
Adivinhem qual foi o gênero que sua culta e douta mestra elegeu como típico da literatura de cordel, aquela do cantador violeiro, que cantava as façanhas de Lampião, do Coronel poderoso e do povo rude e sofrido do agreste?

Daria tudo para ver Lampião suspirando pela aurora de sua vida.

Walter Biancardine é jornalista, escritor, fotógrafo, artista plástico, chargista, designer e tradutor, entre outras atividades. Ainda assim insiste que não deve ser chamado de burro só por que não tem nenhuma profissão que dê dinheiro.

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