sábado, 1 de setembro de 2012

Do jornal Opinião, "Coisas da vida" - João Sem-sonho



João Sem-sonho

João era um orgulhoso marinheiro, que servia na Base Aero-naval de São Pedro da Aldeia.
Militar entusiasmado, conseguira chegar rapidamente à posições de destaque junto aos seus pares e a gozar de certo prestígio naquele restrito círculo.
Mesmo pagando mal, com condições de trabalho por vezes quase torturantes, o Sargento João prosseguia em sua carreira – ainda mais depois de haver conhecido uma bela mocinha, pela qual se apaixonara e casara tão rapidamente que pegara de surpresa amigos chegados e até mesmo parentes.
Estela era o nome de sua amada que, além de uma fatal beleza física, trabalhava e sustentava-se – coisa rara naqueles idos de 1970, ainda mais em uma pequena cidade como Cabo Frio.
Sua dedicação à João era comparável somente ao amor que nutria pela pintura, que retribuía sua atenção em obras incontestavelmente belas. Um crítico exigente até poderia apontar aqui e alí alguns senões, mas o que importava? Ela amava aquele homem que conhecera e aprendera a admirar como um bravo e competente militar, e nada seria maior que isso.
A vida seguia bela e feliz, coisa que desde que o mundo é mundo sempre irritou as invejas alheias, e com o casal não foi diferente: um superior de João, intimamente irritado com tanta felicidade, enviou-o para um dos piores trabalhos daqueles tempos – ajudar no aparelho repressor do governo, contra os subversivos.
O sargento não tinha saída: ou cumpria as ordens ou seria transferido para Rio do Sumiço, sabe-se lá onde. Como bom militar que era, cumpriu suas ordens o melhor que pode no frágil equilibrio entre seu dever e o que não lhe repugnaria a consciência.
Um dia, em um confronto com os tais subversivos, o Sargento João levou um tiro na perna que o deixou imobilizado durante meses. Uma longa recuperação se seguiu, com sua mulher o ajudando e amparando em todas as situações, até que o Alto Comando deu baixa em sua carreira.
João agora não era mais militar, e dias difíceis começaram.
O ex-sargento era agora um homem frustrado, irritadiço, que capengava pela casa mantida pela mulher que – além de tudo – ainda ouvia seus queixumes. Apegara-se João à promessa de um Almirante que, dizia-se, admirara sua bravura em combate, e iria providenciar seu retorno à ativa.
E assim os anos passaram, pingando lentamente como gotas de fel em uma taça de cristal que – percebia-se agora – embaçara.

* * *
Verdade seja dita, João até tentara trabalhar em outros empregos mas já não era jovem e, além do mais, talvez a única coisa que soubesse fazer bem fosse ser militar.
Persistia aferrado à promessa do Almirante, cada vez mais estereotipado no papel de homem em casa, cada vez mais desestimando-se, descendo lentamente os degraus que levariam o comum dos mortais à depressão.
Sua mulher, por sua vez, era apenas um ser humano. Abrigava-se daquele homem que agora desconhecia em suas telas e pincéis, produzindo obras cada vez mais angustiadas, escuras e distantes da vida que um dia imaginara.
Tudo tornara-se um círculo vicioso: João sabia que sua mulher o conhecera soldado, admirara o soldado e somente o amor que ainda nutria pelo homem a fazia suportar a amputação da alma de seu marido, estrangeiro agora á ela e até á ele mesmo.
Um dia conversaram muito sério e Estela suplicou-lhe que esquecesse o sonho de voltar à ativa. Ela não aguentava mais aquele trapo assombrando sua vida e seu pedido era tão desesperado de amor que se esquecia do que significava. Se abandonasse seu sonho, quem seria João? Ela amaria aquele sujeito amorfo, sem profissão, sem história, quase um recém-nascido em vias de encanecer?
João sabia disso, mas mesmo assim arriscou, pelo igual amor que devotava à sua amada e bela mulher: foi ao Comando Naval e cancelou formalmente todos os inúmeros pedidos de reintegração que o Almirante fizera requerer.

* * *
Em 1970 Cabo Frio mal aparecia nos mapas do Rio de Janeiro. Quem vivesse na bela cidadezinha teria de se conformar em passar sua existência adulta como pescador, salineiro, empregado da Álcalis ou Prefeitura – as duas últimas opções apenas para um restrito número de privilegiados, seja por formação acadêmica, seja por apadrinhamento. João não tinha padrinhos nem formação, e vagou em vão pelas ainda salitradas ruas da cidade durante meses, errando de porta em porta, fazendo bicos insignificantes e vendo-se nitidamente diminuir cada vez mais diante de sua mulher.
Quem era João? Era apenas um homem sem sonhos, como a maioria dos mortais que amadurecem. Mas acostumara-se a viver com eles, acostumara-se com o brilho da farda – que, no íntimo, bulia com sua tôsca vaidade – e, sobretudo, acostumara-se a ser não só amado como admirado por Estela, cujos olhos enevoavam em mágoas e decepções por todo cada dia seus juntos. João amargava-se, Estela pintava e esperava dias melhores. A pobre mulher acreditava tanto em seu amor que confiava poder continuar amando aquele homem, ainda que ele fizesse a vida atrás de um balcão de açougue.
Mas, prudentemente, jamais cogitara se continuaria admirando.
Por alguma intuição misteriosa, João sabia que não haveria mais retorno em sua vida e resolveu ir embora. Ao menos sua mulher – ainda bela e jovem – teria a chance de refazer sua vida ao lado de gente normal, que jamais tivesse tido o desatino de afundar-se em um enlouquecido combate à comunistas, e que estivesse em condições de disputar seu lugar na vida como homem prestante e arrimo de família – coisa que, no fundo, envaidece uma mulher normal.

* * *
Estela não soube mais de João. Nem ela, nem seus amigos, ninguém.
Em uma cidade tão pequena como Cabo Frio, era um absurdo que ninguém houvesse ao menos avistado ele pelas ruas, mas era o que acontecia.
Suspeitara mesmo que houvesse ido embora tentar a sorte em outro lugar, até que um dia, tomando um suco no Café Society, os olhos treinados de pintora deram à Estela a visão de um homem que lia as manchetes dos jornais expostos na banca: era apenas um homem, mas não se podia dizer que roupas trajava, qual sua altura, que rosto tinha. Era uma figura difusa, sem contornos, sem alma.
Era um homem sem sonhos.
E Estela compreendeu que João se fora.

Walter Biancardine

quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

Sem script, sem bússola, sem prognósticos

Existem pessoas que possuem o dom de fazer com que nos sintamos crianças - pelo que elas tem de pior, ignorantes de tudo, até de si mesmos.
Observam-nos, analisam-nos, medem-nos.
E pior, concluem.
O espontâneo ou involuntário torna-se premeditado e mau.
Não sabem que voamos cegos, sem a menor idéia de onde ou como estamos.
E nem imaginam que, quanto mais nos sentimos vigiados e observados como num Big Brother, mais metemos os pés pelas mãos para escapar do paredão.
E pior: involuntariamente.
E se o silêncio for apenas sentir-se out?
E se a distância for apenas achar-se indigno?
E se? E se?
Mas quando a mágoa se instala, ela expulsa os bons olhos.
Poderia eu culpar alguem por isso?
As vezes, uma mão estendida é tudo o que o náufrago quer.
Ele, mais do que ninguém, sabe que vai morrer.