sábado, 20 de outubro de 2007

Escrevo, logo existo

Há que se escrever. Escrever sempre, praticar, treinar. É a melhor forma de, quando não temos nada a dizer, nenhuma história a contar, manter o estilo e pedir ao bom Deus que nos envie um parágrafo ao acaso, daqueles que nos rendam laudas e laudas, até estragarmos o que havia de divino nele. Outra coisa recomendável é escrever rápido, sem pensar muito nem ligar para os erros de português, pois nas correções sempre pensamos em uma palavra ou vírgula que poderia ser mais bem colocada. Escrever rápido também preserva a espontaneidade da criação, sem infecta-la com a mediocridade do premeditado. Mas, sobre que raios escreverei? Sobre nada, ora! Como disse no início (e já estou premeditando), há que se escrever.
Uma boa receita para tentar ser escritor é pensar da seguinte maneira: não adianta querer escrever rápido sem ter o texto quase completo na cabeça. É com o cérebro que se escreve, não com a caneta. Nem pensar em querer escrever rápido ou mesmo lento, sem ter nada na idéia. Querer criar enquanto escreve é rematada loucura. Claro, sempre se cria algo, ás vezes o próprio teclado sugere frases, bem como a figura do papel á sua frente. Mas isso serve para poucos parágrafos, um e outro retoque. Quer escrever um livro? Tenha-o inteiro na cabeça, antes. Quer escrever uma boa reportagem? Saiba tudo sobre o caso, apaixone-se por ele, pois uma boa reportagem nada mais é que um relato apaixonado, vestido com o terno e gravata do jornal das oito. Jornalismo completamente imparcial não existe, pois somos humanos e sujeitos á emoções. Meu ponto de vista não é o seu, nem o do meu editor e muito menos o do departamento financeiro. Se deixarmos que a vida nos insensibilize, viveremos mais confortáveis emocionalmente, mas teremos matado a criação, já que ela existe na razão direta das emoções á flor da pele.
Será que perdi a alegria criativa? Além do quê, é difícil os outros aceitarem ousadia criativa em um circunspecto senhor já meio grisalho. Criação, loucura, ousadia – tudo isso pertence á juventude. E por mais que hoje em dia a adolescência esteja indo até os trinta e muitos anos, aos quarenta e três devo me conformar em ser classificado como um velho. A maturidade sumiu. O mundo hoje se divide em crianças, uma multidão infinita de adolescentes e uns atravancantes matusaléns, que insistem em viver sua decrepitude indecente e repentina dos quarenta anos; jovem demais para se aposentar ou morrer, e muito velho para ser criativo. Repentina sim, por que um dia você é garotão. No outro, ao colocar uma calça com vincos, ou mesmo desconhecer uma nova gíria ou lugar da moda, és um velho. Assim, de repente, sem escalas.
Tenho o vício de reler o que escrevi. Isso é fatal. Sempre que releio, corrijo, acrescento, corto, mutilo. E aí, quando ás vezes escrevo um período no qual consigo intuir aquela faísca do Divino, lá estou eu, querendo melhorar. E meu anjo torna-se perneta. Por outro lado, já aconteceu que linhas inteiras de mediocridade tenham sido substancialmente melhoradas por essa ânsia de corrigir. E agora, qual será o meio-termo justo? Ora, se alguém no mundo soubesse o meio-termo de algo, a ponderação, o equilíbrio, oitenta por cento dos religiosos do mundo perderia seus empregos. E nem tão pouco teríamos surtos de genialidade que só são sentidos na criação sem ponderação ou arte-final. O retoque empobrece sempre. Sabem qual é o nome disso? Síndrome de Salieri, aquele amigo invejoso do Mozart, do filme Amadeus – lembram-se? Sim, a capacidade de intuir o Divino sem, entretanto, alcança-lo. O sujeito dotado do verdadeiro dom de Deus não precisa de revisores. A obra sai pronta. Só os atormentados, como eu, que sempre persistem em sua faina de tentar voar sem ter asas. O que me mantém escrevendo é a confiança de que talvez, lá no fundo, eu ainda tenha de fato algum frescor. Doente, atrofiado, mas ainda vivo, latente e pedindo para ser libertado, pedido cujos gritos de socorro são os breves e raros períodos nos quais escrevo coisas que nem eu mesmo acredito que escrevi. E sempre coisas que me vem á mente inteiras e acabadas, prontas, como se o Altíssimo m’as tivesse soprado nas orelhas cabeludas da bruteza.
Um conselho de Ernest Hemingway que é certíssimo: não escreva até exaurir a idéia que você tem em mente. Se o fizer, não terá como continuar o texto depois. E se eu tenho algo de passional hoje em dia é essa fúria de escrever até esvaziar as glândulas. Isso é mortal para o texto. Como me controlar? Não sei. O que sei é que depois fico pelas linhas, enrolando, enchendo lingüiça até que me brote alguma idéia salvadora. E aí caio naquele caso de querer criar durante o ato de escrever. Nunca dá certo. É como fazer sexo uma, duas, três vezes, ainda querer mais e não poder (spiritu promptus est, caro auten infirma). Continuo querendo escrever – até como válvula de escape de uma vida louca – mas não tenho mais a ereção cerebral necessária para tanto. É o caso de agora, e com este exato texto: já li, reli, corrigi, alterei, acrescentei, pratiquei nele todos os meus vícios dos quais faço aqui minha mea culpa. E aí ficamos com aquela sensação de coito interrompido, já que a idéia era fabulosa, mas o produto final, pífio. Finalmente, se existe algo menos espontâneo que um final, eu desconheço. O fim de um texto é sempre um feijão escolhido: palavras pensadas, lógica observada, coerência, e a emoção necessária e pré-fabricada, a emoção do artífice, artificial, de plástico. Para tentar ser diferente, embora não de todo, já que anunciei o final, aí vai: pra mim, a mais perfeita definição do tal coito interrompido é a seguinte:

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Walter Biancardine é jornalista; estava sem assunto, de ressaca e em plena crise da meia-idade quando escreveu isso. Mas amanhã ele melhora.

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