Walter Biancardine é jornalista e tem andado muito emotivo ultimamente. Deve ser falta de mulher.
sábado, 20 de outubro de 2007
Nem tudo o que pensamos é verdade
Chegando atrasado a um compromisso, adentrei repentinamente á sala e ainda pude ouvir comentário significativo a meu respeito: “– Deve estar caído por aí, largado embaixo de alguma pedra, com overdose!!”
Pus-me então a pensar que, ás vezes, construímos involuntariamente uma fama que não corresponde á realidade. Vá lá, corresponde, mas só um pouquinho.
Compartilho com Lobão, meu filósofo de cabeceira, a opinião de que é melhor viver dez anos a mil, que mil anos à dez. Assim, arrasto um tortuoso passado de bebedeiras memoráveis, doideiras exóticas e esotéricas, festas impublicáveis em meio á mulheres de costumes fáceis e duvidosos, além de hábitos pouco recomendáveis aos que aspiram uma existência mais, digamos, ascética. Ou asséptica, em meu ponto de vista. Em anos e anos de exercício da profissão de sociólogo de botequim, atravessei inevitavelmente situações nas quais, se realmente me lembrasse do que fiz poderia até contar, mas em Sua sabedoria e piedade infinita, o Senhor me fez esquecer. Do mesmo modo, aprendi na prática que existe a hora e o lugar para se pegar o primeiro táxi para a estação lunar. E esse lugar, com certeza, fica á milhares de milhas de nosso trabalho.
Toda essa arenga aí de cima mostra só o lado bom, eis que o trabalhar de ressaca após uma noite bombástica é um privilégio, pois ao menos você teve uma noite das boas. Do mesmo modo minha cara, com a qual a mãe natureza não foi generosa e menos ainda o foi o pai tempo, ostentaria á vontade todo o horror da noite mal-dormida e ninguém teria nada a ver com isso.
Que lição eu aprendi neste último fim de semana, ao assistir o show de Oswaldo Guimarães, no Teatro Municipal. Oswaldo é meu amigo há uns quase trinta anos e há de me perdoar se cometo aqui alguma indiscrição. O caso é que ele já chegou no teatro vítima de uma terrível dor nas costas, a ponto de pedir um massagista; e pior, com a lembrança triste de que naquele show o seu pai, Oswaldão, não mais estaria ali. Ao menos fisicamente.
Arrastando as duas dores, as piores dores, subiu ao palco. Com a tristeza e saudades de um pai morto tão cedo e repentinamente, costas em brasas, todo ele se curvava em gestos e expressões de um luto físico, profundo e indizível; silencioso e resignado como jamais verei outra vez. Mas, ao contrário de mim, ele não podia ostentar uma cara horrível. Seus gestos, sua postura ligeiramente curvada e com movimentos lentos denunciaria á um observador mais atento, talvez, apenas a ponta do iceberg de agonias que o consumiriam por dentro. Mas as cortinas se abriram e o público queria show, alegria e diversão.
E ele cantou como poucas vezes tive o privilégio de ouvir.
Auxiliado por uma banda que, se não for de outro planeta nasceu junto aos cogumelos do quintal, imagino que deva ter jogado todos os seus males em seu canto, tal qual uma Janis Joplin MPB de barba.
E eu, lá na coxia, bebendo daquela agüinha danada que reservam geralmente aos bateristas, fiquei pensando em que tipo de forças poderia levar um homem á superar-se tanto, a ponto de verdadeiramente parecer encarnar uma outra pessoa, sem dores, sem problemas – tudo isso por amor e respeito á sua arte de cantar e, é claro, seu público – que entupia as acanhadas dependências do único teatro da cidade.
Ao final do show, apoteótico por sinal, Oswaldo arrumou suas roupas, entrou no carro e foi dirigindo para casa, junto de sua mulher.
E nós, o público, fomos fazer tudo aquilo que imaginamos que um artista faz após um show: reunimo-nos em um pileque grupal da melhor qualidade, entre risos, alegrias, paqueras e todo o vasto arsenal utilizado pelos notívagos para esconder suas solidões e misérias.
E Oswaldo lá, na casa dele, dormindo quietinho e desfrutando do privilégio de ter uma família, na santa paz de Deus.
* * *
Para os vitimados pela solidão, qualquer sorriso é um dia de sol. E aí se produzem os piores mal-entendidos, situações constrangedoras onde nada corresponde ao esperado, nem mesmo seu próprio comportamento. Também, como ser galante dirigindo um Chevette?
* * *
Que eu jamais saiba realmente o que as mulheres pensam. Ou pelo menos algumas. Ou uma, para ser mais exato. A ignorância, ás vezes, é uma dádiva para a auto-estima.
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário