sexta-feira, 7 de junho de 2024

O SONHO DE UM FILME, A REALIDADE DO LIVRO -

 


Pouco importam severa autocrítica ou um niilismo pessimista com os quais sempre disfarcei, pretensamente frio e superior, uma despropositada e teimosa esperança em finais felizes – verdadeiro vício dos que tem a escrita por ofício.

Tamanho deslocamento da realidade, ao menos no tocante àquilo que de mais íntimo tento proteger, igual e certamente tem a companhia de outro cacoete profissional, acostumado que sou à vida sendo impressa em minha alma por experiências de terceiros: a absorção de personagens da ficção, atores políticos ou participantes de acontecimentos grandes o suficiente para merecerem livros, análises ou reportagens. Um longo viver termina por obrigar-nos a perguntar se o que vimos e achamos assim o fizemos por nós mesmos, ou através de olhos alheios.

Situações particularmente difíceis, aliadas à solidão compulsória e longa demais para suportarmos com a devida dignidade podem, eventualmente, causar a corrupção de nossos princípios e sentimentos mais secretos e fazer com que nos entreguemos à prostituição, à vida fácil do amor por determinados livros, filmes e histórias. Uma psique em fuga da realidade não encontra conforto apenas em seu conteúdo mas também – e pervertidamente – em seus personagens, violentando suas essências, personalidades e, baseando-nos apenas em situações ficcionais vagamente similares, emprestamos às suas personas a figura inalcançável ou mesmo inesquecível, irrecuperável, de um amor perdido para sempre.

Ultimamente tenho revisto, com bastante assiduidade, o antigo filme “Breakfast at Tiffany’s” (Bonequinha de Luxo), baseado em pequena novela do controverso escritor norte-americano Truman Capote. Assisti o mesmo pela primeira vez ainda adolescente, treze ou quatorze anos, em uma daquelas intermináveis reprises da TV passadas ao final da noite e, na ocasião, uma Audrey Hepburn silfídica, luxuosamente embalada por vestidos e roupas de Givenchy coroadas por sua beleza, alternante entre angelical e tentadora, imediatamente remeteu meus sentimentos mais escondidos a um amor, por mim considerado impossível, que cultivava desde tenra infância.

Sim, um verdadeiro escritor traz estes traços de nascença, mesmo antes de exercer sua profissão e isso pode ser uma lástima, a confundir todos os seus anos de vida posteriores, ainda que jamais adote – por prudência ou incompatibilidade com a pobreza – tal ofício.

É preciso dizer que a personagem, no filme, foi severamente “atenuada” por seus produtores em relação à obra original de Capote. Tal fato, aliado ao charme e à beleza exuberante da atriz e mais toda a atmosfera que a envolvia – o desejo indisfarçável por glamour, luxo e beleza – adesivaram à protagonista o status de “inatingível”, “inalcançável”, tal e qual sempre havia enxergado meu citado “amor impossível”.

Sim, da mesma maneira que o comum dos mortais suspirava diante das telas ao admirar uma Audrey, léguas acima de nossas pobres realidades cotidianas, também eu sonhava secretamente – e me conformava – com aquela que jamais poderia ter; bela habitante de um mundo superior e merecedora do mesmo por suas próprias qualidades, infinitamente mais refinadas e nobres que meus toscos mundo e viver.

E este foi o filme, este foi meu sonho.

Anos mais tarde, já adulto, li a pequena novela e vi que a personagem Holly Golightly (Audrey Hepburn) era apresentada em incontáveis degraus abaixo da encantadora garota mostrada no filme, sendo o mesmo livrinho recheado de sutis sugestões a temas que, depois, seriam – são, para ser exato – martelados por políticos, grupos e organizações de esquerda. Isso à parte, a mulher em si tal como é descrita, não apenas tem um fim diverso ao mostrado por Hollywood como, igualmente, exibe um comportamento bastante vulgar – para a época – e impermeável ao verdadeiro amor. Ou seja, do sonho cinematográfico despencamos para a história de uma garota de programa, sequer tão bela quanto a atriz que a encarnou. Sem querer emprestar demasiada “intensidade” à historieta de Truman Capote, ver o filme e só depois ler o livro seria como despertar de um sonho para a horrível realidade das carências humanas, em seu mais amplo espectro.

Seria um desacato – verdadeira calúnia – pretender aludir quaisquer deficiências de caráter a um amor que fracassou, apenas descrevo en passant o teor literário por desejar, com tal queda, significar a escuridão pessoal atravessada por aqueles que perderam amores; a queda do paraíso ao inferno, sem escalas, e a expulsão de um sonho para o ingresso ao pesadelo, ao desamparo e solidão – não à toa empreguei, no parágrafo acima, a expressão “a horrível realidade das carências humanas”.

Em meus cacoetes de escritor vejo, hoje, que passei uma juventude a sonhar com um filme; maravilhado e feliz vivi o mesmo já adulto mas, na velhice, ele acabou e sobrou-me apenas um livro, por demais desagradável – e sem nenhum personagem feminino, apenas a feira de vaidades e interesses que cercavam o protagonista, um aspirante a escritor o qual sequer chamava-se Fred.

E este foi o livro, este é meu pesadelo.

Ao menos, para o bem da sanidade mental, meu nome é verdadeiro.

Depois de tudo visto, tudo lido e vivido, aceitaria um café…



Walter Biancardine






Nenhum comentário: