O advento do Rock in Rio marca, ao menos no Brasil, o fim das apresentações tradicionais de cantores ou bandas, em casas de show consideradas “normais” para a época. Este “normal” significava uma lotação entre 200 a 700 pessoas, sendo capacidades como a última citada um mote de venda e oferecidas como “mega-shows”.
Aliado ao acima citado, a legislação de então permitia que candidatos a cargos eletivos, bem como prefeituras e governos estaduais, contratassem artistas pagos pelos dinheiros públicos – uma prévia da Lei Rouanet e, igualmente, verdadeiro sorvedouro monetário.
E isso foi o suficiente para que – cobiça desperta – o desejo de levar sua arte ao povo e o reconhecimento pelo mesmo fossem prontamente substituídos por obscenas visões de cordilheiras de dinheiros, proporcionadas por tais espetáculos que comportavam, por vezes, centenas de milhares de pessoas. As tradicionais “temporadas” de três, quatro meses – ou mesmo mais, em caso de grande sucesso – em casas de shows desapareceram, bem como as mesmas (citaria, no RJ, Canecão e Scala), desprezadas que hoje são por tais artistas, cujo foco não é mais o público: são multidões.
Tempos idos, sucesso era uma longa temporada de seis, sete meses com casa lotada – 600 pessoas por noite, e artistas trabalhando dura e diariamente, tal como o comum dos mortais. A recompensa era o reconhecimento público, muitas vezes com fãs que iam uma dúzia de vezes assistir o mesmo show, bem como generosa e merecida cobertura nos cadernos culturais de jornais e revistas. E o dinheiro, obviamente, além de merecido era bastante compensador.
Atualmente, a meca artística são eventos públicos – micaretas, révéillons, datas politicamente significativas, etc. Caso não estejam disponíveis ou haja algum impedimento legal, a mesma estrutura de lobby político que assessora tais artistas (sim, empresários foram trocados por lobistas) trata de conchavar com a grande mídia uma única e colossal apresentação, sempre em locais que impressionem o comum dos mortais, tais como estádios de futebol, praias de grande extensão ou mesmo logradouros públicos, desde que comportem multidões dignas de saírem no Jornal Nacional. E está feita a mágica: trabalha-se uma única noite e ganha-se milhões, não apenas do público mas, também e principalmente, de direitos de imagem, transmissão ou de patrocinadores, que lá estacionam seus pontos de venda, dos mais variados artigos – mais “variados” mesmo, acredite.
E o quê esse público vê, ou ouve? Nada. A experiência em um “mega-show” resume-se a enxergar o artista (distante uns 300 metros) pelo telão e ouvir um som péssimo, defasado e sem sincronia com o que acontece no palco – qualidade precária, aliada ao desconforto de hordas ensandecidas massacrando-nos com seus pulos e urros tribais, causando até ferimentos. Vale a pena?
Porém, a tal nível de deslocamento da realidade chegamos que, ao vermos um artista tocar e cantar em tímidos bares ou quiosques, sem tal aparato megalomaníaco e midiático, e concentrando-se em dar o que tem de melhor a seu público – cem, duzentas pessoas, uma “miséria” para os padrões atuais – o primeiro e automático sentimento que nos desperta é quase de piedade com tal “pobre alma”.
Mas não, esta é a verdadeira arte; é ir – como um dia disse Milton Nascimento – aonde o povo está.
O resto, que a Globo anuncia e transmite, é investimento.
Ou, pior, ação política.
Walter Biancardine
Nenhum comentário:
Postar um comentário