domingo, 9 de junho de 2024

A CAVERNA DE PLATÃO E O CAMINHÃO FENEMÊ -

Tão poderosa foi a impressão causada pelo extinto e saudoso caminhão FNM (Fenemê, para os íntimos) em tempos idos que, até hoje, decorridos quase setenta anos de seu lançamento, ainda provoca sorrisos evocativos e serve como referência de força, brutalidade e poder.

Na realidade, o mesmo contava com um resistente motor de seis cilindros, fabricado sob licença da Alfa Romeo italiana, mas que entregava apenas 150 HP – potência bastante razoável para a época, mas nenhum exemplo de força exacerbada, já que os modestos Mercedes chegavam aos 100 HP.

Nos dias atuais podemos ver com facilidade, nas estradas, cavalos-mecânicos da Scania, Volvo ou mesmo Mercedes, arrastando incontáveis reboques – os famosos nove-eixos – com trinta metros de comprimento, mais de 70 toneladas sobre o lombo e despejando gloriosos 600 a 700 HP em nosso pobre asfalto. Mas, nem de longe, emanam a mesma impressão de força bruta e poder dos inesquecíveis FNM, cuja humilde potência era anabolizada por miraculoso conjunto de caixa de marchas e diferencial. Ora, ponha-se um Scania e um FNM, lado a lado e com motor ligado, e adivinhe qual dos dois irá impressionar mais o aficcionado? Sem dúvidas, nosso vovô das estradas.

E por quê? Por causa de seu impressionante ronco – um baixo-profundo em compasso lento e majestoso, poderoso barítono que, em rotações mais altas, fazia estremecer vidraças e corações ao ouvi-lo. Seu verdadeiro poder era “sensorial”.

É neste exato momento que entram Platão e sua famosa (no bom sentido, é claro) caverna.

Sem complicar demais, podemos dizer que as “sombras” projetadas nas paredes das cavernas – projetadas pelo que acontece na vida real, que se passa no exterior da mesma – podem ser entendidas como tudo o que sabemos do mundo através da grande mídia, sem jamais vermos com os próprios olhos o que realmente se passa. Uso essa interpretação, que também é válida, para direcionar o foco deste artigo e ainda acrescentar que esta mesma percepção – as sombras – podem igualmente ser lidas como as nossas impressões “sensoriais”.

E onde entra o “sensorial”, na atual conjuntura?

Ora, temos um consórcio midiático a mostrar tudo o que se passa sob uma única ótica, tendenciosa e ideológica. Do mesmo modo, toda a indústria cultural – cinema, teatro, livros, artes em geral – igualmente ecoa tais tendências. Considerando a carência de fontes alternativas, que empreste à realidade outros pontos de vista, nada mais natural ao ser humano que entender o exibido pelo grupo acima citado como “a verdade” e, pior, um “consenso” já estabelecido por pessoas “respeitáveis” e que jamais endossariam atos ou intenções – e ações – deploráveis e criminosas.

Vamos ao âmago da questão: qual o número de pessoas que, de fato, escrevem reportagens, livros, peças de teatro, pintam quadros, atuam em novelas de TV, cantam músicas ou – em posição supostamente superior – atuam politicamente em cargos públicos, eletivos ou não? Contando todo o contingente, disperso pelos diversos países do planeta Terra, chegaria a dois milhões?

Pois bem, tomemos este número. Se tanto, dois milhões de pessoas controlam, manipulam e moldam as opiniões, gostos, preferências, religiões e até a sexualidade de oito bilhões de pessoas (segundo estatísticas da ONU) em nosso planeta, e o número de “controladores” certamente é bem menor, pois a grossa maioria deste contingente é formado por pessoas já devidamente “hipnotizadas” doutrinariamente, e não daqueles que realmente decidem e mandam – estes não chegarão a uns 600 mil em toda a Terra. Seiscentos mil mandando em oito bilhões.

E temos, diante de nossos olhos, um Fenemê social a exibir potência e força que realmente não dispõe – os tais e pobres 150 HP, turbinados pela caixa de marchas chamada “grande mídia” e “cultura de massa”. O ronco impressiona, o barulho intimida. Mas é só.

Para exemplificar de modo mais palpável, suponhamos que o leitor faça uma determinada postagem em suas redes sociais. Logo depois, uma chuva de trinta, quarenta ou mais comentários aparecem, execrando seu ponto de vista e condenando o pobre coitado de todas as maneiras e adjetivos possíveis. A mais humana das reações será a certeza de que seu pensamento ou opinião postada é um absurdo completo, perversão condenável, e ele jamais se atreverá a cometer outra sandice como aquela, resguardando prudente silêncio ou, pior, fingindo concordância com o que não acredita.

Devemos notar, entretanto, que tal intimidação partiu de um universo de trinta ou quarenta pessoas, de algum modo relacionadas ao autor ou a amigos do autor. Pois bem, e os outros? E os outros (para ficarmos só no Brasil) 230 milhões de brasileiros, o que achariam de suas opiniões? Ele não sabe e, considerando seu trauma, provavelmente jamais saberá. Assim, em pequena escala, tivemos o mesmo “efeito Fenemê” do parágrafo anterior, exibindo um poder numérico que não tem e um suposto – mas inexistente – consenso dos “homens de bem”.

O fato é que o povo – seja em qualquer país ou sob qualquer regime – sempre será um Scania a carregar, com seus 700 HP, toda uma nação e governo nas costas mas deixando-se impressionar – e intimidar – pelos parcos 150 HP de um Fenemê, pilotado por meia dúzia de degenerados mas que conhecem muito bem, e sabem usar, todo o poder “impressionista” de seu ronco de trovão.

Que, aliás, é seu único poder.



Walter Biancardine



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