quarta-feira, 9 de abril de 2025

ILUMINISMO SOCRÁTICO?

 


Tenho o costume de folhear as páginas do “Filosofia Sempre”, no Facebook, pois sempre traz artigos que me fornecem algum “insight” com poder o suficiente para me retirar dos depressivos e trevosos abismos da meditação solitária. Sempre bom lembrar que tal página – excelente, por sinal – apenas publica as ideias dos filósofos, sem deter-se em análises, julgamentos e, muito menos, a menor intenção de estabelecer dialéticas. Mas me fornece material para escrever, então vamos ao texto que me chamou atenção:

" A civilização grega atingiu seu ápice em Atenas e traçou o rumo da mentalidade ocidental, com que estamos às voltas até hoje. Os gregos se apaixonaram por si mesmos, pela forma humana, pela História, pelos heróis.
Em seu amor pelo potencial humano, eles nos colocaram num caminho em que esquecemos que os seres humanos existem dentro de um Cosmos maior.
Hoje, é difícil lembrar como é ser parceiro da vida."
Rudolf Bahro

E eis que surge minha pergunta, inevitável: este ato de " apaixonar-se por si mesmo" citado no texto, esquecendo-se de seu entorno, não seria uma característica mais apropriada aos iluministas, que removeram Deus do centro das coisas e lá puseram o homem?

E ofereço minha resposta, indo direto ao nervo exposto do texto:

Sim, tal visão tem muito mais a cara de iluminista do que de grego clássico.

Destrinchemos:

Os gregos antigos, especialmente os pré-socráticos, estavam embriagados com o Cosmos. Heráclito via tudo em fluxo; Anaximandro falava do ápeiron, o ilimitado; Pitágoras ouvia a música das esferas – tudo isso é visão cósmica, quase mística. Mesmo em Sócrates, Platão e Aristóteles, que inauguram o racionalismo, há sempre um reconhecimento de uma ordem superior, seja ela o Mundo das Ideias, o Motor Imóvel ou o Logos. Eles não esqueceram o cosmos. Muito pelo contrário: estavam tentando entender como o homem se insere nele.

Essa tal “paixão por si mesmo”, isolada do todo, só tornou-se moda com o humanismo renascentista e explode de vez no Iluminismo, quando o homem – em sua eterna soberba – arranca Deus do trono e se coloca como medida de todas as coisas. Aí sim, temos o divórcio formal entre o humano e o cósmico. O sujeito vira o centro, e o resto é paisagem ou recurso explorável.

Atenas ainda estava encharcada de deuses, oráculos, tragédias, limites impostos pelo destino e pelo fado. A hýbris, a arrogância desmedida, era punida exemplarmente nos palcos da tragédia justamente porque o homem não podia se esquecer de seu lugar no todo. A tragédia grega é o anti-narcisismo por excelência – um sutil aviso a novatos no ramo de modelos fotográficos.

O que Bahro está fazendo é um tipo de anacronismo poético-filosófico, culpando os gregos por uma guinada que só aconteceu dois milênios depois. É como culpar o bebê pela bebedeira do neto. Então, ou ele está usando os gregos como metáfora para a origem de uma certa mentalidade que depois degenerou (o que é perdoável, se for um recurso retórico), ou ele está metendo os pés pelas mãos – o que considero mais provável, dada as características do autor em si.

Resumindo: os gregos nos ensinaram a contemplar o homem, sim — mas sempre diante de um pano de fundo cósmico e trágico. Quem arrancou o pano, apagou as estrelas e botou holofote no ego foi o Iluminismo, o pai de tantas ideologias mortais e comportamentos inaceitáveis dos dias de hoje.

E quem foi Bahro? Que tal sabermos um pouco mais sobre este homem?

Rudolf Bahro foi um daqueles casos curiosos: um marxista que passou pelo fogo e saiu… místico – tipo um Fernando Gabeira que, ao voltar do exílio, pregava a “Liberação das Bundas”.

Nasceu na Alemanha Oriental, foi membro do Partido Socialista Unificado (o partido comunista da RDA), mas acabou preso em 1977 por publicar um livro considerado herético pelo regime: "A Alternativa", onde criticava o socialismo real de dentro, como um herege critica a própria Igreja (sim, eu sei que, diante da Teologia da Libertação tal analogia é fraca, mas vale a intenção retórica).

Foi solto graças à pressão internacional – os intelectuais do Ocidente ainda tinham algum peso na época – e exilado na Alemanha Ocidental. Lá, fez o caminho inverso de muitos esquerdistas: aproximou-se da ecologia profunda, do pensamento espiritualista e da antroposofia, aquela doutrina esotérica, muito doida, nascida com Rudolf Steiner. Ou seja: saiu do materialismo dialético e caiu nos braços de Gaia.

No fim da vida, Bahro virou uma espécie de profeta verde, um avô de Greta Thunberg, misto de ativista ecológico com teólogo cósmico, pregando uma renovação espiritual do Ocidente, uma crítica à racionalidade instrumental e ao culto do progresso. Ele via a crise ecológica como um sintoma da doença espiritual moderna, causada pela ruptura do homem com o todo — e aí entra a citação que a página “Filosofia Sempre” exibiu.

Só que, como bom romântico tardio, cedia ao exagero e mirava nos gregos quando o problema sempre esteve abrigado no galpão iluminista, onde o homem virou gerente do universo e o cosmos, planilha de Excel.

Ou seja: Bahro é interessante, mas escorrega no essencialismo histórico. Como pensador, tem lampejos — mas não é confiável como guia cronológico ou metafísico. É melhor como sintoma do colapso moderno do que como diagnóstico claro.

Ele nasceu em 18 de novembro de 1935 e morreu em 5 de dezembro de 1997. Ou seja, viveu o suficiente para ver o muro de Berlim subir, cair e virar souvenir — e para tentar, no final da vida, reconstruir um sentido espiritual num mundo que já tinha vendido a alma ao shopping center global.

Bahro é, em última instância, um fruto amargo do século XX: começou com Marx e terminou com Steiner.

Dá pra entender – não dá é pra seguir sem filtro.


Walter Biancardine








terça-feira, 8 de abril de 2025

AS MALDITAS QUATRO LINHAS -


Toda e qualquer solução para nossa atual ditadura que seja "dentro das quatro linhas da Constituição", por "meios democráticos"  ou pior, preservando o "Estado Democrático de Direito" apenas nos condena a jogarmos no campo do adversário, com a bola do inimigo e sob suas regras - é pedir para apanhar.

Desafio o amigo leitor a me mostrar o exemplo de algum país - um só, apenas um- que tenha derrubado uma ditadura através de eleições, projetos de lei ou por meio de seus "valorosos" (?) congressistas: mostre-me apenas um, e eu me calarei.

Do mesmo modo, nossos protestos "pacíficos e ordeiros" apenas reforçam a narrativa do sistema que alega "estarmos numa democracia pujante" - certamente que sim, ou tais manifestações seriam violentamente reprimidas, ordeiras ou não. O último dia 6, por exemplo, serve como belo troféu das "virtudes democráticas" de nossos feitores comuno-globalistas, que pouco se importam com Trump ou sua lei Magnitski diante da legião de "laranjas" à sua disposição.

Por quê a comunidade internacional se preocuparia com nossos clamores - sempre "ordeiros e pacíficos" e realizados sem nenhum impedimento das autoridades? Onde está, afinal, esta ditadura? 

Certamente houveram condenações injustas, ações indevidas na liberdade de expressão de particulares nas redes sociais, mas não há "dramaticidade" - e o falecido Clezão que me perdoe, pois a geopolítica exige mais, muito mais cadáveres para começar a se coçar.

O fato é que estamos sob ditadura e, dentro da lei, dela não sairemos.

Temos apenas duas escolhas: irmos às ruas com sangue nos olhos, dispostos ao sacrifício, e tentarmos tirá-los de lá através da adesão providencial de um Exército amotinado contra seu Alto Comando, ou - se o "Braço Forte, Mão Amiga" continuar omisso, mantermo-nos em sacrifício na luta, até que a contagem de cadáveres sensibilize a comunidade internacional.

É morrer ou morrer - e o Presidente João Batista Figueiredo já havia nos alertado disso.

Para os que não estão dispostos à isso, sugiro que então ocupem-se admirando o ensaio fotográfico de nosso "Führer", ostentando toda sua grandeza, glória e poder.


Walter Biancardine 



segunda-feira, 7 de abril de 2025

O FUTURO DO BRASIL -


Pegue um aluno qualquer do ensino médio e peça para ele escrever um bilhete avisando aos pais que foi à rua conversar com os amigos.

1 - A letra será igual a de um pedreiro nos anos 80 (nada contra os pedreiros, mas eles não tem nenhuma obrigação de escrever bem). Garranchos porcos e ilegíveis.

2 - Não saberá como construir a frase, pois desconhece o que seja um parágrafo ou mesmo qualquer noção de sentido lógico na mensagem.

3 - Tal tarefa ocupará ao menos uns dez minutos, tanto pela dificuldade em manusear lápis e papel quanto pela tormenta cerebral originada por ser obrigado a pensar com nexo.

4 - As meninas - que antigamente sempre tiveram letras mais bonitas e até cadernos enfeitados - se tornaram indistinguíveis dos meninos pela caligrafia grotesca, bruta e grosseira e, igualmente, pela incapacidade de pensar.

5 - Ambos, meninos e meninas, perguntarão: "E desde quando preciso avisar que vou sair? Quem é que manda na bagaça aqui?".

Se os senhores pais estão preocupados com a proibição de celulares em sala de aula - a ameaça dos "professores doutrinadores", que não serão mais filmados - que tal se lembrarem que, caso fossem seus filhos objeto de cuidados e atenção em casa, nenhum doutrinador teria qualquer chance de sucesso?

Se os senhores pais estão indignados com a baixíssima qualidade do ensino atual - que concordo e assino embaixo - que tal cobrar ferozmente dos "pimpolhos" a obrigação de, diante de tanta besteira letiva, tirarem um mínimo de 10 em cada exame?

Por fim, se os senhores pais estão preocupados com seus filhos e seu aprendizado assíduo rumo ao analfabetismo funcional, isto já é um progresso, embora tardio: a evolução se deve a, pela primeira vez na vida, se preocuparem com os mesmos.

Filho não é pet, TV à cabo não é babá, videogames e celulares devem ser interditados até o final da adolescência e deve existir fiscalização rigorosa sobre o que fazem na escola.

O colégio apenas ensina. Quem educa são os pais.

Ou compre um cachorro, uma samambaia e torne-se "pai de pet" ou "mãe de planta".


Walter Biancardine





NEANDERTHAL DIGITHAL -


Preocupa-me a atual incapacidade do brasileiro médio em compreender ironias, sarcasmos, analogias ou mesmo as mais básicas brincadeiras - e tanto faz que sejam por escrito ou ditas em conversas.

O humor médio tupiniquim reduziu-se ao nível pastelão-pornográfico, deixando todo um universo de referências fora disso. A leitura é sempre literal, o sentido figurado ou forças de expressão tornaram-se desconhecidos e uma simples piada pode degenerar em grossa pancadaria.

Fazendo jus à incrível capacidade de ser "sui generis", o brasileiro expandiu seu analfabetismo funcional relativo à escrita a um verdadeiro "analfabetismo auditivo", uma fatal deficiência cognitiva que torna uma simples conversa em verdadeiro depoimento prestado ao delegado, onde cada palavra e vírgula poderão ser fatais.

Paulo Freire não conseguiu tal e hercúleo feito sozinho: a grande e emburrecedora mídia fez sua parte, na interminável apologia à ignorância transmitida em sua programação.

Hoje, somos a primeira "República de Neandertais" do planeta.

Que Deus nos ajude - se não nos devorarmos antes.


Walter Biancardine



domingo, 6 de abril de 2025

O PÓS-MODERNISMO EM FERNANDO SAVATER -


Ainda sem entender as razões que me levaram a dar este artigo como publicado sem que assim o tenha feito, apresso-me a pedir desculpas ao leitor e apresentá-lo, ainda que descompassado de outro texto meu, que fazia referência a este que ora apresento. Vamos ao mesmo.

"O pós-modernismo rejeita a ideia do erudito solitário nascido do Iluminismo.”

A perda da cosmovisão moderna assinala o fim do mundo objetivo do projeto iluminista.”

O pós-modernismo desafia a descrição definitiva (trata-se de uma revolução no conhecimento).”

No centro do pós-modernismo há a negação da realidade de um mundo unificado como objeto de nossa percepção."

(Fernando Savater)

Os trechos acima sintetizam a essência do pensamento pós-moderno, uma corrente que, a meu ver, não passa de um desmonte irresponsável e temerário dos pilares da civilização ocidental. A rejeição ao erudito solitário não é apenas uma afronta ao Iluminismo – por danoso que tenha sido – mas um ataque à própria ideia de genialidade e excelência individual, este é o punctus dolens. Ao negar a centralidade do erudito e da razão, o pós-modernismo nega também a meritocracia e a longa tradição intelectual que moldou o Ocidente, substituindo-a por uma visão de conhecimento fragmentado e subjetivo, onde o saber se torna um mosaico de perspectivas desconectadas da verdade objetiva.

A perda da "cosmovisão moderna" não é um avanço, mas um retrocesso à fragmentação do pensamento que citei, onde cada grupo constrói sua própria narrativa desprovida de qualquer compromisso com a verdade objetiva. Esse relativismo corrosivo mina as bases da ciência, da história e da moral, instaurando uma nova ordem na qual não há critérios para distinguir o verdadeiro do falso, o justo do injusto. Um pensamento filosófico sóbrio, por outro lado, sempre sustentará que o conhecimento é um esforço de continuidade, um processo cumulativo de descoberta e refinamento da verdade, e não um jogo arbitrário – e quiçá ideológico – de desconstrução.

O pós-modernismo, ao desafiar a "descrição definitiva" da realidade, não promove uma revolução no conhecimento mas, isto sim, um colapso da própria ideia de saber. A negação de um mundo unificado como objeto de nossa percepção é a abdicação da razão enquanto instrumento de compreensão da ordem natural. Se tudo é relativo, se não há um mundo objetivo a ser conhecido, então a cultura, a ciência e a moral tornam-se meros instrumentos de dominação ou de interesses políticos momentâneos. Em outras palavras, a verdade deixa de ser uma busca genuína para se tornar uma construção ideológica e artificialmente manipulada, a confirmar minhas suspeitas expostas no parágrafo anterior.

Savater, embora não seja um pós-moderno radical, não escapa completamente dessa influência. Sua inclinação para um relativismo moderado o impede de sustentar uma defesa sólida da verdade objetiva e dos valores perenes. Flerta descaradamente com a dissolução do conhecimento em uma multiplicidade de perspectivas, o que, aos meus olhos conservadores, mina qualquer tentativa genuína de restaurar a ordem e a estabilidade intelectual. Se o conhecimento não pode ser estruturado em princípios fixos e universais, então tudo se dissolve no caos da subjetividade absoluta, e a civilização perde seu referencial sólido – intencionalmente ou não.

É meu dever rejeitar esse caminho, pois entendo que o progresso verdadeiro ocorre dentro de uma estrutura estável e ordenada, na qual o saber se enraíza na experiência e na tradição. A valorização da verdade objetiva, da hierarquia do conhecimento e do respeito às grandes obras do passado são princípios inegociáveis para manter a sanidade intelectual e moral da sociedade. O pós-modernismo, ao contrário, quer destruir essa ordem em nome de uma suposta libertação, mas o resultado inevitável dessa destruição é o colapso da cultura e a ascensão da ignorância travestida de pluralidade.

Quem é Fernando Savater: suas limitações -

Fernando Savater tornou-se um nome relevante no cenário filosófico contemporâneo, sendo um pensador que se equilibra entre a razão iluminista e um certo relativismo moderno, nenhum dos dois predicados sendo algo recomendável. Suas ideias são frequentemente associadas à liberdade individual e ao humanismo, mas também apresentam ambiguidades que merecem uma análise crítica. Nestas linhas, pretendo tornar possível a identificação de eventuais contribuições válidas em sua obra, ao mesmo tempo que aponto suas limitações e contradições.

1. Defesa da educação e da razão -

Uma virtude do pensamento de Savater, reconheçamos, é sua defesa intransigente da educação como elemento fundamental para a civilização. Ele critica a decadência do ensino moderno e o crescente analfabetismo funcional, argumentando que a escola deve oferecer uma formação sólida baseada no pensamento crítico e na cultura clássica. Essa perspectiva se aproxima da visão conservadora, que enxerga a educação como um processo de transmissão de valores e conhecimento acumulado, e não como um simples experimento social guiado por modismos ideológicos.

2. Oposição ao fanatismo e ao totalitarismo -

Savater sempre se posicionou contra formas autoritárias de pensamento, sejam elas políticas ou religiosas. Ele rejeita o dogmatismo e valoriza a liberdade dentro de um sistema democrático. Ainda que sua abordagem tenha um viés liberal, essa postura encontra ressonância na visão conservadora, que também preza pela liberdade, desde que ancorada em valores morais e institucionais estáveis. O perigo, no entanto, reside na inegável tendência de Savater a adotar uma concepção de liberdade excessivamente desvinculada de deveres e responsabilidades.

3. Valorização do humanismo clássico -

Outro ponto positivo de sua filosofia é a valorização do humanismo clássico. Ele resgata pensadores como Sócrates, Montaigne e Kant, promovendo a reflexão filosófica baseada em questionamento e raciocínio crítico. Essa abordagem, quando não deturpada por relativismos excessivos, pode se alinhar a um pensamento conservador que preza pela continuidade do conhecimento e da cultura ao longo das gerações – caberá a cada leitor decidir se existem ou não os “relativismos excessivos” citados acima.

4. Defesa do individualismo (com ressalvas) -

Savater enxerga o indivíduo como o centro da vida social e filosófica. Seu pensamento defende a autonomia do sujeito contra imposições externas, uma visão que, em certa medida, se alinha ao conservadorismo liberal. No entanto, essa perspectiva se torna perigosa ao desconsiderar a importância das tradições, das instituições e do senso de pertencimento que estruturam uma sociedade funcional. O conservadorismo não nega a importância da liberdade individual, mas entende que ela só pode florescer dentro de uma ordem bem estabelecida.

5. Crítica à cultura do vitimismo -

Em diversos momentos, Savater se manifesta contra a cultura do vitimismo, alertando para os riscos de uma sociedade que supervaloriza a condição de "oprimido" em detrimento da responsabilidade pessoal. Ele argumenta que esse fenômeno enfraquece a autonomia dos indivíduos e fomenta divisões sociais. Essa análise se alinha à crítica conservadora ao igualitarismo artificial e à tendência contemporânea de transformar qualquer grupo em detentor de direitos especiais sem a correspondente exigência de deveres.

Onde ele tropeça?

Apesar dessas contribuições, Savater apresenta fragilidades. Seu excesso de confiança na razão individualista o distancia da compreensão de que a ordem social depende de estruturas permanentes, não apenas de escolhas racionais momentâneas. Ele também se mostra ambíguo em relação ao relativismo: critica os exageros do pós-modernismo, mas ao mesmo tempo absorve algumas de suas premissas, como a resistência a verdades objetivas e universais.

No fim das contas, Savater é um pensador que merece atenção por suas críticas aos dogmatismos ideológicos, mas sua insistência em um liberalismo desenraizado impede que ele reconheça plenamente a importância das tradições e das instituições sólidas.

Aprecie-o com moderação.


Walter Biancardine




sexta-feira, 4 de abril de 2025

O PAÍS DO STATUS -


Não gastarei linhas discorrendo sobre as vaidades primárias de ostentar automóveis, jóias, roupas ou até mulheres cobiçadas coletivamente, pois tais futilidades apenas irritam mas em nada prejudicam minha vida. O que desejo comentar é algo muito pior, verdadeira mentalidade farsesca a imperar no universo acadêmico brasileiro, que apressa-se a nos tornar o país das fraudes - fraudes intelectuais, pura busca de status quo, compulsão pela arrogância e ostentação de títulos.

Lanço a pergunta: quantos de vocês já se deixaram impressionar, intimidar, convencer ou calar por alguém que - em agonia retórica - lançou mão da pútrida "carteirada" de dizer-se um "Doutor", um "Mestre" ou mesmo "Pós-Graduado" em qualquer coisa?

Creio que muitos sabem das minhas desventuras junto à esta comunidade intelectual, impermeável qual granito à ideias divergentes de suas "catilinárias do consenso doutrinário" e que rendeu-me incontáveis e ferozes discussões com os referidos e empolados "Ph.D's" - e, nas quais, todos perderam e não encontraram respostas (ou, muito menos, antíteses) aos meus argumentos.

Pois bem, tais linhas devem-se à minha educação de berço - e o que é do berço só a tumba tira - em não respondê-los com uma única pergunta, após a infalível "carteirada": " - O senhor é pós? Quem fez seu TCC?". Ou, prosseguindo, caso fosse um Mestre: " - Quem redigiu sua dissertação?" Ou pior, sendo um Ph.D: "Quem escreveu sua tese?" E o fim da linha, no pós-Doc: " - Pode me apresentar o autor de seu relatório?"

E onde quero chegar com isso? Para ser direto, à fraude, que impera no meio acadêmico brasileiro. Nenhum deles escreveu nada, redigiu nada, estudou nada. Completas nulidades, anafabetos funcionais a carregar, entretanto, pomposos diplomas e certificados que os autorizam a proferir platitudes como grandes novidades ou - para os mais ousados - absurdos cuja única função é chocar valores e princípios vigentes.

Tal tipo de estelionatário vale-se, normalmente, dos serviços de professores - em desespero financeiro - que prestam-se a desenvolver, em parte ou, pior, no todo, seus trabalhos que garantirão o novo e dourado "status" ambicionado.

Como um "Doutor" em filosofia pode não saber filosofar? Ou este elemento acredita que ter lido (porcamente) Foucault, Sartre e outros infelizes - pois Sócrates, Platão, Aristóteles, Santo Tomás de Aquino é demais para seu espectro doutrinário e espaço cerebral - faz deles "Professores Doutores"? Ler é uma coisa, saber nomes, datas e lugares pouco vale. O que eles jamais aprenderam é o "ato filosófico", a filosofia como método de pensamento, como - desculpem a redundância - "filosofia de vida"; isto não sabem e jamais aprenderam. E eu sei, Olavo de Carvalho me ensinou.

Passada a borrasca de meu tempestuoso contrato com a graciosa Doutora - esta sim, verdadeira "Ph.D", pois sabe e tem propriedade sobre o que fala, embora fraca filosoficamente e carecida de meu auxílio - creio poder falar com conhecimento de causa sobre meu assombro, ao ver-me em um país onde a "elite intelectual" resume-se a um punhado de fraudadores, cujos títulos foram obtidos às custas de abnegados anônimos, que precisavam pagar suas contas ao final do mês.

Esta é a "elite" do pensamento brasileiro? Que desconhece a própria cadeira que ocupa e, eventualmente, leciona? Que jamais mergulhou em noites insones de pesquisa e aprofundamento para escrever seus trabalhos?

Não à toa o Brasil não dispõe de trabalhos citados por nenhuma revista ou publicação científica de valor internacional. Não à toa os candidatos à pós-grado, por exemplo, precisam adequar seus temas às preferências de seus orientadores, pois os mesmos não querem se dar ao trabalho que algo "novo" poderia provocar - e a academia brasileira é avessa ao novo, à divergência, ao embate de ideias.

Que este desabafo seja meu manifesto público de desprezo por tal "elite" acadêmica, reles fraudadores, mentirosos primários e inaptos, mas com muita pose e, alguns, até mesmo com canais no YouTube.

E muita bajulação em torno, cargos vantajosos e dinheiro no bolso também.

Pois este sempre foi o objetivo primeiro de todos eles.


Walter Biancardine 



quarta-feira, 2 de abril de 2025

IMITAÇÃO, ATRASO E HORROR À VERDADE: UMA PAUSA PARA PENSAR -

 


Afirmar um deus único é confessar intolerância e aderir, quer se queira quer não, ao ideal teocrático. No plano mais geral, as doutrinas da Unidade pertencem ao mesmo espírito: mesmo quando utilizam ideias anti-religiosas, seguem o esquema formal da teocracia, se reduzem mesmo a uma teocracia secularizada. O proselitismo tirou grande partido dos sistemas "retrógrados", dos quais só rejeitou o conteúdo e as crenças, para melhor adotar o arcabouço lógico, a forma abstrata.”
(Emil Cioran)
O texto acima, uma proposição do filósofo romeno Emil Cioran, afirma que a crença em um deus único, longe de ser apenas uma questão teológica, carrega consigo uma estrutura de pensamento que conduz à intolerância e à teocracia. A ideia central é que qualquer doutrina que afirme uma única verdade absoluta (seja religiosa ou não) acaba seguindo um modelo autoritário semelhante ao da teocracia, ainda que de maneira secularizada.

Além disso, ele argumenta que os movimentos religiosos ou ideológicos frequentemente rejeitam somente os conteúdos tradicionais das crenças antigas, mas mantêm intacta sua estrutura lógica e sua tendência ao dogmatismo. Isso implica que mesmo os sistemas, supostamente laicos e “modernos” – ideologias – podem reproduzir idênticos mecanismos de dominação e intolerância das religiões monoteístas, que dizem superar.

Em resumo, o texto faz uma crítica às doutrinas de "Unidade" – tanto religiosas quanto seculares – por, segundo ele, perpetuarem uma lógica teocrática e autoritária, ainda que sob disfarces diferentes.


Trazendo razão ao atormentado Cioran -

O argumento apresentado contra o monoteísmo se baseia em uma confusão conceitual entre a unidade da verdade e a imposição autoritária. Defender um Deus único não significa aderir automaticamente à intolerância ou à teocracia, mas sim reconhecer uma ordem objetiva da realidade. Se há um Criador, há uma verdade última, e negar isso em nome de uma suposta pluralidade absoluta leva não à liberdade, mas descamba no relativismo total e, ironicamente, no caos intelectual e moral.

A acusação de que toda afirmação de unidade culmina em tirania ignora a distinção fundamental entre “verdade” e “poder”.


Verdade -

O cristianismo, e em especial a tradição católica, não impõe a fé pela força, mas a propõe pela razão (vide Santo Tomás de Aquino e tantos outros Doutores da Igreja) e pela revelação. A Igreja sempre distinguiu entre a ordem espiritual e a ordem temporal, reconhecendo a autonomia do poder civil. A própria história do Ocidente testemunha que as sociedades que mais floresceram em liberdade, ciência e cultura foram aquelas enraizadas no cristianismo, justamente porque compreenderam que a unidade da verdade não anula a essência da consciência individual.


Poder -

Afirmar que sistemas seculares herdaram a "forma lógica" da teocracia erra apenas no fato de atribuir ao cristianismo uma culpa que pertence, na verdade, ao espírito revolucionário moderno – o “plágio” descarado de Karl Marx por sua vez, pode e deve ser citado, justificando parte do título deste artigo, “Imitação e Atraso”.

Foram os sistemas ideológicos modernos – comunismo, fascismo e outros totalitarismos – que secularizaram um messianismo político, eliminando Deus para colocar no lugar o Estado ou o partido, sempre encarnados na figura de um único e todo-poderoso Líder. A fé católica sempre afirmou que a salvação não vem de um poder terreno, mas de Deus e, neste momento, cabe pequena digressão sobre a prova evidente desta imitação: o “culto à personalidade” dos sistemas comunistas e socialistas.


O culto à personalidade -

Nada mais é do que o velho espetáculo autoritário, em que um líder político é elevado à condição de figura messiânica, infalível, quase divina. Ele não apenas governa, mas se torna um símbolo absoluto da pátria, do partido e do futuro glorioso da revolução. A propaganda estatal o transforma em uma entidade acima do bem e do mal, incensada pela mídia oficial, pela educação doutrinária e pela cultura estatalizada. O resultado? Uma população doutrinada a venerar um indivíduo, como se ele fosse a encarnação do próprio destino nacional.

Essa prática foi emblemática em regimes como o de Stalin na União Soviética, Mao Tsé-Tung na China, Kim Il-Sung na Coreia do Norte, Fidel Castro em Cuba, entre outros. Fotos do líder em cada esquina, discursos eternos em rede nacional, crianças recitando suas máximas como orações, intelectuais bajulando suas "grandes obras" e qualquer crítica sendo tratada como traição. Não é à toa que a figura do "grande líder" é cercada por mitos absurdos: Stalin como gênio supremo da estratégia, Mao como sábio celestial e Kim Jong-il como “o cara que acertava hole-in-one” no golfe, toda vez que jogava. Sim, acreditem.

Na prática, esse culto serve a dois propósitos principais:

  1. Justificar a ditadura – Se o líder é um ser excepcional, quem poderia contestá-lo? A oposição é automaticamente inimiga do povo.

  2. Eliminar qualquer senso crítico – Se a verdade vem do líder, questioná-lo é questionar a própria realidade.

Os sistemas comunistas e socialistas se apoiam nesse mecanismo porque, sem ele, suas promessas utópicas desmoronam rapidamente. Quando a economia falha, a liberdade desaparece e o povo começa a perceber que a igualdade prometida nunca chega, a única saída do regime é criar um ídolo infalível para mascarar o desastre. Afinal, se o chefe é perfeito, qualquer problema só pode ser culpa de sabotadores, imperialistas ou traidores internos.

O culto à personalidade é um sintoma clássico do autoritarismo, não importa o rótulo ideológico. O comunismo, no entanto, o transformou em arte, usando-o como principal anestesia para manter o povo hipnotizado e submisso.


O “horror à verdade” -

Rejeitar a unidade em nome de um suposto pluralismo absoluto é abrir caminho para um mundo onde nenhuma verdade pode ser sustentada, e onde qualquer imposição – mesmo a do relativismo – se torna tirânica. Impossível ao homem de juízo temer a unidade da verdade mas deve, antes, celebrá-la, pois nela se encontra a harmonia da razão, da ordem e da liberdade autêntica.

A obsessão em rejeitar a verdade ou o absoluto origina-se de várias raízes, mas todas convergem para um problema essencial: a tentativa de libertar o pensamento de qualquer amarra, ainda que ao custo da própria razão.

Primeiro, há a rebeldia contra a tradição: desde Descartes, passando pelos empiristas e culminando nos pós-modernos, há um esforço constante para demolir qualquer estrutura conceitual herdada. O absoluto, sendo o sustentáculo das grandes civilizações e religiões, torna-se o alvo preferencial. E por quê? Porque admitir verdades universais significa reconhecer que há, sim, limites para a subjetividade humana; que existem princípios que não dependem da moda intelectual do momento e, para muitos, isso é intolerável.

Depois, há a influência do relativismo e do historicismo. Nietzsche, Heidegger e Foucault são as vedetes, verdadeiras “celebrities” dessa vertente, que encara a verdade como um produto histórico, um discurso de poder, uma construção social. É a velha máxima: “quem controla a verdade, controla o mundo”. Se a verdade não passa de um jogo de linguagem, então nada é fixo, tudo pode ser moldado conforme interesses de época. É uma maneira astuta de justificar ideologias sem precisar lidar com critérios objetivos – e certamente o amigo leitor já fez suas devidas analogias.

E, claro, não podemos ignorar a simples covardia intelectual. A verdade absoluta exige compromisso, esforço e até sacrifício. É muito mais fácil se refugiar no relativismo confortável, onde tudo é interpretável, tudo é fluido, nada precisa ser levado às últimas consequências. Assim, a academia moderna virou um grande baile de máscaras, onde cada um dança conforme a música da subjetividade, evitando o peso das grandes questões e, obviamente, seu compromisso com as mesmas.

Mas eis o problema: a verdade pode ser negada, contestada, relativizada, mas nunca extinta. O real se impõe. Pode-se passar séculos desconstruindo conceitos, mas, no fim das contas, a gravidade continua puxando para baixo, o tempo continua passando e os imbecis, coletivos ou não, continuam tropeçando na própria inconsistência. E desta sina o velho Emil não escapou.


Quem é, afinal, Emil Cioran?

O atormentado romeno é um daqueles pensadores que fascinam e, ao mesmo tempo, incomodam qualquer um que tenha uma visão de mundo sólida e bem enraizada, especialmente sob a ótica cristã e conservadora. Sua filosofia é marcada por um niilismo quase fanático (!), um desencanto absoluto com a existência e uma recusa categórica em aceitar qualquer sentido para a vida. Ele não apenas duvida, mas debocha de qualquer esperança, de qualquer fé, de qualquer estrutura que forneça ao homem um chão firme para pisar.

Ora, para um cristão, o que pode haver de mais contrário à verdade do que essa exaltação da desesperança? Cioran é um adversário direto da esperança cristã, da crença na redenção e da noção de Providência divina. Se para o cristianismo o sofrimento tem um propósito e pode ser santificado, para Cioran o sofrimento é um fardo inútil, um peso absurdo que nos foi lançado sem motivo. Ele despreza a cruz e vê na existência um erro, um acaso infeliz. Seu pessimismo radical o aproxima de Schopenhauer, meu parceiro alemão, mas sem a nobreza estética do germânico — Cioran é ácido, cínico e deliberadamente corrosivo.

Do ponto de vista conservador, há um problema ainda maior: Cioran não apenas rejeita a fé, mas também despreza qualquer tradição, qualquer laço com o passado que ofereça identidade e continuidade ao homem. Considero que seu pensamento seja um verdadeiro veneno para qualquer sociedade que deseje se manter de pé, porque, no fundo, ele prega um ceticismo absoluto, um desmoronamento de tudo o que mantém uma civilização unida. Se todo sentido é uma ilusão e toda convicção é um delírio, como pode uma cultura sobreviver? O conservadorismo se sustenta sobre a transmissão de valores e a fidelidade a princípios perenes, mas Cioran derrama ácido sulfúrico sobre qualquer pilar que se pretenda duradouro.

Ainda assim, há nele algo que não pode ser ignorado: a força de seu maldito estilo. Cioran não é um pensador sistemático, mas um infeliz mestre da aforística, um escritor de talento avassalador, para o mal ou para o bem – no caso, para o mal. Sua lucidez sombria fascina justamente porque toca em algo que todo homem experimenta em algum momento: a dúvida, o desencanto, o esgotamento espiritual. A leitura de Cioran pode servir como uma droga, alienando o pobre discípulo da realidade e conduzindo-o ao prazeiroso nada, justificador do fracasso pessoal de cada um, ou como exercício de imunização – uma espécie de vacina filosófica: ao contemplar o desespero em sua forma mais pura, o cristão pode reafirmar sua fé, e enxergar ainda mais claramente a necessidade de Deus e da graça.

Em suma, Cioran é um demolidor. Sua obra não constrói, apenas esfacela certezas. Para o cristão e o conservador, sua leitura deve ser feita com (muita) cautela, nunca como um guia, mas como um alerta. Ele nos mostra até onde pode chegar a alma que rejeita Deus e abandona qualquer laço com a transcendência.

No fim, Cioran não tem respostas — apenas um riso amargo diante do abismo.

Tal como muitos paisanos, nos dias atuais.



NOTA DO AUTOR: À título de correta mensuração de seus danos, cito alguns filósofos que foram, por ele, influenciados: Milan Kundera, Luiz Felipe Pondé, Fernando Savater – este último, objeto de recente artigo meu https://walterbiancardine.blogspot.com/2025/04/o-pos-modernismo-em-fernando-savater.html .



Walter Biancardine







terça-feira, 1 de abril de 2025

DOIS PONTOS -


1 – Se a Justiça está acima de todos os homens e instituições, quem a comanda certamente será algo como um vice-Deus – sim, porque alguém tem a palavra final na Justiça, e não é um grupo. A Justiça jamais poderá ser absoluta, e nossos destinos sempre estarão sujeitos às índoles alheias, tal como hoje. 

2 – Todo poder sempre é exercido por um só. Disfarçá-lo, diluí-lo como na democracia ou através de um "consenso" é apenas abrigar o verdadeiro poderoso das consequências de seus atos. Se está nas mãos de um só, que saibamos quem é, para que seja punido ou premiado, conforme seus feitos.

Com base em tais premissas, as quais creio serem por demais sonegadas, escondidas e abafadas para todos, analisemos:

O véu da Justiça, o fardo do Poder, destino e autoridade -

A estrutura da sociedade humana repousa sobre alicerces cimentados não só pela razão mas, também, pela tradição, instinto humano e necessidade de ordem. A partir da breve introdução que apresentei acima, duas verdades fundamentais emergem: a impossibilidade de uma Justiça absoluta e a inevitável centralização do poder. Essas constatações, ainda que incômodas para alguns idealistas ou para os eternos oportunistas, são a essência do realismo político e de uma prudência elementar.

A Justiça: mito ou instrumento?

A primeira proposição desafia um dos dogmas modernos: a crença em uma Justiça inatingível, impessoal e transcendente – os “Deuses do Olimpo”, como hoje vemos. A ilusão de que há uma entidade jurídica pura, acima dos homens, de suas misérias e paixões, é um delírio igualitário, um sonho utópico que não resiste à mínima análise histórica. O direito sempre foi, é e sempre será, uma manifestação da vontade de quem o exerce. E essa vontade, por sua vez, não é divina nem infalível, mas humana – demasiadamente humana, diria Nietzsche – sujeita a paixões, preconceitos e conveniências.

Aqueles que depositam sua fé em uma Justiça absoluta fazem-no por ignorância, desespero ou ingenuidade, esquecendo-se de que toda decisão judicial reflete, em última instância, a índole de quem julga – tal como nos “paredões” de um reality show, sabemos mais sobre quem assiste do que sobre quem participa do programa, tendo suas escolhas em vista. 

O código pode ser escrito com todas as tintas da imparcialidade, mas quem o aplica são homens, e os homens não são deuses – longe disso. A Justiça, portanto, não está acima da sociedade; está dentro dela, moldada por sua cultura, seus valores e – principalmente, como nos dias atuais – seus interesses.

Isso nos leva a um dilema central: se a Justiça não pode ser absoluta, tampouco pode ser neutra. Então, a quem serve? A resposta me parece clara: deveria servir à preservação da ordem e dos valores que sustentam a civilização, embora não seja o que hoje vemos. Se não há um critério transcendental para a Justiça (e o Estado é laico), resta-nos um critério histórico e moral: aquilo que garantiu a estabilidade ao longo do tempo deveria ser protegido, e aquilo que ameaça dissolver essa estabilidade deveria ser contido e, preferencialmente, banido.

O Poder: ilusão democrática e o regresso ao realismo -

A segunda proposição que apresentei desmonta outra ficção política moderna: a de que o poder pode ser verdadeiramente disperso. A democracia, o consenso e as supostas decisões coletivas não são mais do que disfarces para ocultar aquele que realmente governa. O poder, por sua própria natureza, é indivisível; pode ser ocultado, pode ser negociado, mas jamais desaparece ou se fraciona.

Ao longo da história, todas as civilizações compreenderam essa verdade: o rei, o imperador, o cônsul, o presidente — sempre há um, e um só. Mesmo sob sistemas que se apresentam como descentralizados, há um núcleo de comando, que obviamente tem um líder e conduz uma vontade decisiva, a impor rumos à sociedade. O perigo da ilusão democrática é que ela camufla essa liderança sob a névoa numérica – um “colegiado”, por exemplo – ou da burocracia e das instituições, tornando o governante invisível e, portanto, impune.

Melhor, então, que o poder seja reconhecido e personificado. Quando se sabe quem manda, pode-se responsabilizá-lo por suas ações, julgá-lo conforme seus méritos e, se necessário, removê-lo. O anonimato do comando — seja através de conselhos, comitês ou parlamentos — apenas permite que decisões desastrosas sejam tomadas sem que ninguém responda por elas.

Não devemos temer a autoridade. Pelo contrário, entendamos que ela é necessária e saudável, se e quando bem exercida. O verdadeiro problema não está no poder concentrado, mas no poder mascarado, livre para erros e abusos, sem maiores consequências.

Entre o realismo e a ilusão -

O que minha pequena introdução acima nos apresenta é uma visão realista da natureza humana e da organização social. A Justiça não é uma força etérea, pairando sobre os homens; ela é uma ferramenta do poder. E o poder é verbo, não é uma entidade difusa; ele sempre pertence a alguém. Reconhecer essas verdades é o primeiro passo para escapar das armadilhas ideológicas do mundo moderno, que prometem igualdade onde há hierarquia e liberdade onde há domínio.

Não nos iludamos com promessas de utopias jurídicas ou democracias perfeitas. Sabemos que a sociedade é feita de homens, e homens erram, manipulam, buscam vantagens. Portanto, melhor do que confiar em sistemas abstratos é reconhecer o jogo do poder como ele é e agir com prudência, sem ilusões.

Se há um soberano, que tenha rosto. Se há Justiça, que seja aplicada com consciência da sua limitação. 

E se há um destino, que este não seja entregue ao acaso, mas sim àqueles que têm a coragem de carregá-lo nos ombros.


Walter Biancardine 



segunda-feira, 31 de março de 2025

POR QUE A SUÍTE PARA VIOLONCELO Nº 1, EM SOL MAIOR?

 


Recentemente me vali desta obra, do grande Johann Sebastian Bach, como pano de fundo de um desajeitado voo poético e introspectivo, no qual também usei mares e navegações tormentosas a título de analogias com os últimos acontecimentos, em minha vida.

Talvez alguns recém-chegados não tenham entendido as razões do uso desta peça primorosa – certamente alguns acharam mesmo algo próximo a uma blasfêmia contra Bach – em meus queixumes, e por isso achei de bom tom oferecer algumas explicações.

Imaginei traçar algum paralelo entre os tempestuosos mares navegados por mim, nos últimos anos, e as reais borrascas enfrentadas pelos marinheiros – quase suicidas – de um ou dois séculos atrás; pode não ser justo mas soou-me poético. Do mesmo modo, emparelhei as batalhas navais com as devastadoras guerras pessoais e emocionais que travei, as quais custaram-me um número absurdo de baixas – a totalidade, para ser franco – e que redundaram no trágico “naufrágio” por mim vivido, nos últimos anos.

Completando, sendo eu alguém visceralmente “persona non grata” em quaisquer redações do país e já velho demais para outros trabalhos braçais – diante dos quais jamais me intimidei no passado – vejo-me hoje sem rumo, sem bússola, sem sextante, à deriva.

Isso posto, é hora do paciente leitor entender minha visão desta grande obra de Bach:


Trata-se de uma peça icônica do repertório do violoncelo solo, carregando um significado que transcende a mera técnica musical. Seu Prelúdio, talvez o movimento mais reconhecido, é uma meditação sonora pura, fluida, que há de evocar ao ouvinte tanto a complacente serenidade quanto uma grandiosa sensação de descoberta.

Bach construiu a obra com uma estrutura clara, baseada na dança, mas carregada de emoção e profundidade filosófica. Há uma sensação de ordem e, ao mesmo tempo, de improvisação controlada, como se fosse um monólogo interior. Ela tem um caráter luminoso e acolhedor, não busca assombrar com virtuosismo mas, isto sim, tocar algo essencial na alma humana. O Prelúdio, com sua progressão quase hipnótica, parece uma reflexão sobre o próprio fluxo do tempo – e o passar das horas, meu leitor haverá de saber, tem um peso significativo para mim.

Sua melodia ressoa profundamente porque é direta e acessível, mas nunca banal. Seu significado se molda ao ouvinte: pode ser contemplativa, melancólica, esperançosa ou solene; não é apenas um desafio à sensibilidade, mas também uma experiência espiritual, de maturidade cognitiva.

Mas, dirá o leitor, a explicação ainda parece vaga e sem apontar diretamente a algo compreensível para aqueles que não estão sob sua pele – e por isso é preciso situá-la em um contexto mais inteligível: alguém lembra do excelente filme “Mestre dos Mares – O Lado Mais Distante do Mundo”?

Pois bem: neste filme “Master and Commander: The Far Side of the World” (título original, 2003), a Suíte para Violoncelo Nº 1 de Bach aparece em um momento de introspecção e camaradagem entre o Capitão Jack Aubrey (Russell Crowe) e o cirurgião e naturalista Stephen Maturin (Paul Bettany). A cena em questão os mostra tocando juntos – Aubrey ao violino e Maturin ao violoncelo – num momento de pausa na tensão da guerra naval.

Os produtores do filme escolheram o Prelúdio da Suíte Nº 1 não apenas por questões estéticas mas, tal como os imitei, simbólicas:


* Refúgio da Guerra: A melodia fluida e introspectiva de Bach contrasta com o caos das batalhas navais. Representa um espaço de ordem, beleza e civilidade dentro do ambiente brutal da guerra.

* Profundidade dos Personagens: O filme estabelece Aubrey e Maturin como homens de cultura, apaixonados por música e ciência. Essa escolha reforça sua humanidade e seu vínculo intelectual.

* Tradição e Hierarquia: A música de Bach evoca um mundo de disciplina e estrutura, refletindo tanto a ordem militar da Marinha Real Britânica quanto a organização rígida da sociedade do século XIX.

* Oposição ao Destino: Em meio à incerteza da guerra, Bach sugere uma ordem maior, um eco de uma harmonia universal que os personagens tentam agarrar antes de serem arrastados de volta à realidade do conflito.

Assim, a Suíte para Violoncelo Nº 1 em “Master and Commander” funciona como um momento de respiro filosófico, um contraponto ao peso da guerra e uma lembrança de que, mesmo em meio ao caos, a beleza e a razão ainda têm seu lugar – diferentemente de meu devaneio poético, cujo teor dramático situa-se bem mais ao rés do chão e não produz nenhuma consequência ao mundo.

Ainda assim, ao protagonista da miséria reserva-se o compreensível direito de crer-se em meio a uma hecatombe apocalíptica global, e esta pretensão foi o principal motor de minha patética analogia musical.

De qualquer modo e para salvaguardar algum resquício de dignidade, creio poder afirmar ao menos vaga semelhança de alguns aspectos retratados pelo filme e minha existência – e apenas não invoco o testemunho de amigos e familiares porque os mesmos, infelizmente, são a totalidade das baixas na tripulação de minha vida.

Mas valeu a intenção e agradeço a paciência.



Walter Biancardine




NA TEMPESTADE, EM COMANDO -


Dias de ventos furiosos, ondas explodindo na proa em meio ao negrume do céu. Hora de rizar as velas e experimentar: não, a necessidade pede que se navegue em árvore seca, soltando a âncora de arrasto - um drogue pode assegurar que este comando doente e febril chegue a bom porto, eis que é hora de impor um rumo à esta interminável deriva na vida.

Adernado e cansado, nada mais resta em meu convés que não tenha sido varrido pelas ondas da vida. O porto seguro, entretanto, faz-se difícil de aproar, dada a cerração dos últimos dias. Não importa, pois mar calmo jamais fez bons marinheiros: porto bom é aquele em que atracamos, e eis-me nele.

Não aguardarei a bonança, pois nela não mais creio. Amarração segura, nave protegida, saio a verificar os danos e a perda é quase total, de gentes e coisas - mas não faz água nos porões e, mesmo em meio à névoa, posso navegar.

Navegar é preciso, viver não é preciso - não tenho, entretanto, bússola e sextante para nenhum dos dois. Mas a navegação segue, interminável Flying Dutchmann, pois os portos me são hostis.

Só eu, em minha nave, no vasto e infinito oceano a sonegar meu destino.

Meu navegar não é preciso. Meu viver não é preciso.

Sob o espírito de Bach, aponto a proa e sigo.


Walter Biancardine



domingo, 30 de março de 2025

NÃO HÁ COMO DES-EXISTIR -


Não sendo o pior nem o melhor dos homens e situando-me como um perfeito medíocre - ou seja, absolutamente dentro da média, mediano - custa-me compreender a "parasitagem" de alma, por mim sofrida ao longo de tantos anos, e só recentemente descoberta.

É compreensível e amplamente conhecida a cobiça alheia sobre nossas vitórias pessoais, bens, felicidades ou até eventual fortuna, ainda que as mesmas sejam temporárias ou, em alguns casos rasteiros, pura ostentação. Trata-se de querer o que o outro tem, e maiores considerações não são necessárias, eis que todos conhecem e já sofreram por isso.

O caso se agrava quando arrastamos um histórico familiar. Pior: mais que um histórico, carregamos o fardo de ter o mesmo nome do pai - e aí a coisa se complica.

Não posso e jamais farei a baixeza de "desconstruir" (perdoem a esquerdice) meu pai. Ele teve a vida dele, fez sua história, deixou quase uma lenda entre seus mais próximos na cidade, viveu uma existência cinematográfica - e eu apenas herdei seu nome, acrescido de um "Júnior". Mas ainda tem o que piorar.

Não satisfeito em carregar seu nome ("herdeiro do fardo", segundo meu pai), tive a petulância e ousadia - atrevimento exagerado - de construir minha própria história por aqui.

Se conheci e apertei a mão de Presidentes da República pela OEA ou vi o céu estrelado em pleno meio-dia na aviação de testes, isso pouco importa: foi no Rio de Janeiro, aparentemente em uma outra vida, vivida por um outro eu. O que parece despertar os apetites são os poucos sucessos que obtive por aqui, nestas salitradas e áridas terras, "melhores madrastas que mães", nossa conhecida Cabo Frio.

E conheci o lado mais negro, quase uma psicopatia, deste pecado capital: o desejo de alguns em parasitar sua alma, roubar seu ser, esvaziar seu conteúdo e vestir sua pele; ser você, incorporar você - o que você faz, gosta, vive, usa, bebe, fuma, ama, odeia, tudo enfim.

O quê pode provocar isso em alguém? Não sou um milionário, não sou algum artista - ou ao menos escritor - famoso; em matéria de beleza provoco apenas risos e minha conta bancária, além de anêmica, é hemorrágica. Que diabos eu fiz?

Suponho que todo meu pecado seja ser filho de quem sou, ter tido a família que um dia tive e vivido o que já viví - o "câncer da mídia", o "nazistinha de Alair", o homem que metade da cidade odeia e a outra metade sequer sabe quem é, mas que causou verdadeira tormenta política nos jornais, revistas, rádios e TV's por aqui, anos atrás.

Acrescente-se a isso o fato de minha personalidade, fronteiriça da anormalidade - um porco-espinho, dirão muitos - meus estranhos prazeres (motocicletas, aviões, carros, caminhões e graxa, muita graxa), vestuário mais inusitado ainda, além da maromba intelectual a que me submeti, impelido por excruciante solidão nos últimos anos; os livros, artigos, ensaios e teses que escrevo e uma vida amorosa que abalou as estruturas e psiques - de maneira velada - de muita gente boa à minha volta.

Nada de mais, o amigo poderá dizer e eu concordarei. Mas este conjunto de peculiariedades, ainda que não construa diante de nós um ídolo a ser admirado, perfaz uma pessoa com personalidade, conteúdo - se bom ou ruim, se cativante ou repugnante, é outro assunto. Mas, ao menos, tenho algo que uma grande maioria já abdicou: sou o que sou, faço o que faço, estou e sempre estive absolutamente cagando para o que pensam disso.

Apenas sempre tive o grande cuidado de jamais ferir ninguém à minha volta, com meu jeito "lemingue" de ser - nunca prejudiquei voluntariamente a terceiros, com meu estilo de vida, gostos, decisões e amores.

Mas os parasitas da alma, por absoluta falta de conteúdo original e pura ânsia de nos despejar da pele em que habitamos, não têm tal cuidado - e este é o momento em que se entregam.

Uns ambicionam nossa vida, aderem-se diuturnamente ao nosso lado e de lá só saem quando nosso mundo desaba - estes são os rasteiros, primários.

Outros, em silêncio solerte, sugam nossa seiva em um surdo processo mimético, silencioso, e tornam-se verdadeiras "fotocopiadoras" de nosso âmago, revelando-se apenas quando suas próprias vaidades não cabem mais em si. E só percebemos isso tarde demais, quando as balas perdidas já atingiram inocentes.

Que o amigo leitor não interprete tal desabafo como um acesso de soberba, pois bem sei o nada que sou e jamais esquecerei os anos de solidão, fome e desprezo que só muito recentemente escapei - e que não estou livre de voltar. Trata-se apenas, como disse, de um desabafo.

Há que se falar, expectorar, sofrer a hemoptise de um mal que andou me corroendo por dentro nos últimos dias e que me levou, bastante doente e profundamente decepcionado, à cama - e, confesso, jamais cheguei a tais extremos antes.

Mas eu precisava falar; hoje estou melhor e é o que faço.

E pretendo, se Deus permitir, desenvolver um pequeno ensaio filosófico sobre este tema, jamais tratado pelas luzidias cabeças iluministas que nos cercam: a inveja.

Mais que inveja: o parasitismo da alma.

E que o Pai me dê saúde.


Walter Biancardine

NOTA DO AUTOR:
O invejoso típico deseja o que você tem, e chega ao ponto de ofender-se caso receba um presente seu: entende este ato como "esmola".

Já os "vampiros da alma" desejam sua vida, ser você e viver o que você vive ou viveu; tomar seus amigos, sua história, sua personalidade.

Tal deformidade, quase patológica, chega ao ponto de roubar sua individualidade - a característica de ser humano único, inimitável e peculiar que todos temos, com qualidades e defeitos exclusivos.

Ao ser vitimado por tais tipos maléficos, você perde o que de mais íntimo possuía: o "ser você". Agora, estará condenado a ver uma cópia sua vivendo o que você viveria, desfrutando dos amigos que um dia você teve, encantando ou decepcionando pessoas com o charme ou aborrecimento que somente você poderia oferecer.

E, para isso, tais pessoas não se acanham em vitimar aqueles que estão à sua volta, por mais inocentes que sejam: se puderem deles servirem-se para seu mimetismo, assim o farão.

E tudo isso apenas porque, um dia, você decidiu aproximar-se de tais tipos.

Fica o alerta.

quinta-feira, 27 de março de 2025

SOBRE O ARTIGO DE ONTEM -


Alguns resmungos chegaram a mim sobre o artigo de ontem, onde expus minha frustração para com a passividade omissa do povo brasileiro e as cautelas excessivas de Jair Bolsonaro.

Os mais "intelectualizados" apontaram dedos priápicos contra mim, perguntando em ar de desafio: "Como então um conservador pode pregar o povo nas ruas, a revolução"?

E respondo que não prego nenhuma "revolução" - povo nas ruas sim, sacrifícios sim, enfrentamento sim, mas tudo isso deve ser visto sob a ótica da legítima defesa, pois vivemos em um absurdo estado de guerra, o ataque do governo contra o povo. Onde o "paraíso prometido"? Onde o "futuro melhor" em meus clamores? Não existem, trata-se apenas de defender nossa própria vida, expulsando tais criminosos do poder.

Outros, "constitucionalistas", agarram-se às limitações de nossa doentia Carta Magna - parlamentarista e socialista - excusando Bolsonaro de quaisquer culpas, pela impossíbilidade legal de agir.

Mas quem prega a reação dentro da lei? Quem, em sã consciência, acreditará que "dentro das 4 linhas" - território do inimigo STF - teremos alguma chance de sucesso? Pergunto: Moisés teria libertado os judeus do Egito, se seguisse as leis do Faraó?

E para acabar de broxar dedos priápicos e ostentações constitucionalistas, completo com a seguinte e vital pergunta: em nome de quem as leis são promulgadas? Em nome de quem o poder é concedido? Em nome de quem a autoridade exerce suas funções? Em nome do povo, ora bolas!

O povo é a instância última do poder; em seu nome e sob seu consentimento tudo é feito, o povo é o poder soberano e, vá lá, moderador.

Deste modo, se multidões em fúria agirem teoricamente fora da lei, o mesmo exerce seu poder soberano de "novação" dos termos do contrato, e resta àqueles a quem o povo delegou poderes, acatar.

Onde sou "revolucionário"? Onde prego ideologias? O que defendo é que salvemos nossas próprias vidas, e que este bando de "jóqueis da desgraça", parasitas da aflição alheia, cafetões do sensacionalismo - sim, estou falando com você, youtuber - procurem as migalhas restantes de suas dignidades e usem suas influências para o nosso bem.

Ou que vão, todos, à merda.

Tal como eu, ninguém sentirá falta.


Walter Biancardine



quarta-feira, 26 de março de 2025

IDEALISMO: A DOENÇA QUE PODE ME TIRAR DO COMBATE -

 


Não há outra forma de escrever este artigo que não seja em tom pessoal, pois uso a mim mesmo como personagem para, quem sabe, servir de espelho para mais alguns outros e poucos exauridos, como eu.

Desde o já longínquo ano de 1979 protestava eu contra a anistia, exigida pelo assim chamado “povo” – que se resumia a artistas esquerdistas coordenados pela ampla cobertura da Rede Globo – e tentava, inutilmente, publicar meus impropérios contra tal medida em jornais de bairro ou até como carta, dirigida às redações dos grandes jornais.

Obviamente eu não era ainda jornalista. Tratava-se apenas de um adolescente furioso que, na falta de mulheres dispostas a conceder atenções a um esquisitão, derivava suas frustrações na escrita de protestos inócuos. Mas, libido à parte, eu realmente acreditava naquilo que escrevia – e este foi o erro que me acompanharia por toda a vida: jamais ter escrito uma só linha a qual não cresse piamente, ainda que depois viesse a me arrepender.

Anos depois, já um profissional da escrita, mergulhei de corpo e alma na restauração dos antigos valores brasileiros, que teve como início o famoso protesto contra o aumento das passagens de ônibus – “Não é pelos 20 centavos!” - no governo Dilma Roussef, em 2013. E essa, talvez, tenha sido a eclosão da doença que pode me tirar da luta neste momento: como disse, jamais escrevi uma só linha que não acreditasse e, imbuído desta crença feroz (valores, princípios, norte moral), pus minha cara a tapa e mergulhei de cabeça na luta. Fui censurado, tive inúmeras contas extintas (Twitter, Telegram), YouTube excluiu 28 vídeos meus e desmonetizou-me por completo, impedindo inclusive que eu monetizasse minha página pessoal (também do Google), tive mesmo um artigo excluído de minha própria página (!) e fui amplamente xingado e odiado por conhecidos, desconhecidos, parentes, amigos ou não tão amigos assim. As portas do mercado de trabalho se fecharam para mim e fui reduzido a um “escrevinhador de artigos”, os quais são ainda publicados, graciosamente, apenas pela boa vontade e misericórdia de meus editores.

Ainda assim não abaixei a cabeça. Atravessei o pior pesadelo que um ser humano normal poderia imaginar – do dia para a noite me vi sem casa, sem emprego, sem família, sem parentes, sem amigos, sem mulher, sem raízes, referências, comida e teto. Gastei estes anos terríveis isolado no meio do mato, sofrendo privações e uma solidão absurda, em uma cabana concedida por favor e distante de qualquer alma viva, mas não desisti: escrevi livros, publiquei artigos, persisti na luta e meus ideais me mantiveram vivo.

Tive momentos de fraqueza, vacilos, desânimos mas sempre voltei, ainda que fosse para apanhar mais ainda ou para desencantar-me com a frouxidão daqueles em quem depositava minha maior esperança: povo e líderes.

Mas tudo tem um limite, um limite humano, psicológico, quase questão de vergonha na cara, e este parece estar em vias de chegar.

Em uma tentativa desesperada de postergar, ou enganar o inevitável, confesso que me desviei dos assuntos habituais e, ultimamente, andei publicando arremedos de ensaios filosóficos – coisa que jamais havia feito, por questões de consciência de minha ignorância. Mas era impossível enganar a sanha de poder da atual ditadura que, sem mais delongas, sempre nos presenteava com novos absurdos e ilegalidades, fazendo com que novamente eu obedecesse meus impulsos e voltasse aos eternos, incessantes (e inócuos) protestos em forma de artigos jornalísticos.

Quem tem o (mau) hábito de ler o que escrevo certamente está farto de aturar as inconveniências e impropérios que dirijo ao próprio leitor – batizado por mim de “povo inerme, preguiçoso, fútil, omisso e covarde” – e, igualmente, ao próprio Jair Bolsonaro, a quem atribuo idênticas deficiências. Cansei de escrever que “se Moisés obedecesse as ordens do Faraó, não teria libertado os judeus do Egito”, que eleições ou novas leis não derrubam ditaduras, ou mesmo que “não se luta contra demônios usando as armas de anjos”, mas o alcance do que escrevo não ultrapassa a eterna meia-dúzia de gatos pingados (e ofendidos) de sempre.

Do mesmo modo, sempre amaldiçoei as “passeatas de protestos”, as quais serviam apenas como um bom “programa de domingo” para as famílias, enroladas em bandeiras do Brasil, a tirar fotos para o Instagram e partir para a churrascaria comentando seu “patriotismo”, tão logo as mesmas terminassem. Onde o sangue? Onde a imposição do medo sobre nossos inimigos?

Alegar um “8 de janeiro” é estrondosa má-fé, pois duas garotas e três caras (está no vídeo do Didi Redpill), infiltrados pela ditadura, subiram em um pequeno palco e ordenaram – sim, é o termo e o gado, bovino, cumpriu – que todos se dirigissem ao Palácio, quando clamei por semanas que “jamais saíssem dos quartéis”. E deu no que deu.

Agora Bolsonaro é réu, logicamente será condenado, preso e talvez assassinado na cela. E isso também foi previsto, não somente por mim, mas por muitos. O que fizemos? Nada. O que estamos fazendo? Nada. O que faremos, inclusive se o pior acontecer? Nada.

O sistema não quer Lula nem Bolsonaro, e parece ter escolhido como última opção Tarcísio de Freitas, um bom homem mas militar – portanto positivista e, portanto, cego para o comunismo. Por outro lado temos Donald Trump e suas sanções, mas nada poderá fazer além disso. Ele é Presidente dos Estados Unidos, e não do mundo. E agora?

Agora resta-nos esperar o já sabido veredito, mas ainda falta esclarecer se Bolsonaro será preso imediatamente ou darão, ainda, alguns dias a ele – que certamente não serão usados para refugiar-se em nenhuma embaixada pois, como disse, a coragem não é seu maior atributo. “Mas ele disse que, se for preso, será morto! Isso não é coragem?”, perguntará o leitor. E eu respondo: auxiliado por um cardume de toupeiras (vá lá), cegas para o que é o verdadeiro comunismo, Bolsonaro igualmente não acredita nisso. Mal crê que será preso; morto já está na categoria de ficção – ele assim diz da garganta para fora.

Infelizmente, pouquíssimos brasileiros sabem o que é, na verdade, o comunismo – ou não o teriam aceito, ainda que “docemente constrangidos”. Trata-se de um bando de assassinos sociopatas, verdadeiros delinquentes cujo único objetivo é o poder, e para conquistá-lo e mantê-lo, farão o que for preciso: roubar, mentir, chantagear, sequestrar e, claro, matar. Alguém lembra de Celso Daniel e de tantos outros?

E logo após virão as manifestações de 6 de abril. Serão estrondosas? Talvez. Serão intimidadoras? Nunca, pois somos “conservadores, pacíficos e limpinhos”. E no dia 7, tudo voltará a ser como dantes, no quartel de Abrantes, aquele melancia.

Este é o ponto onde, acontecendo como eu prevejo, deverei me retirar da luta.

Escrevi recentemente que passei toda uma vida defendendo o que acredito, e o que os outros pensam disso é problema deles, não meu. Mas, maior que o cansaço físico de meus 61 anos, é o desalento. A absoluta falta de esperanças, a irritante semelhança de pensamentos com o insuportável Schoppenhauer e seu pessimismo doentio – que, sou forçado a admitir, não se trata de simples pessimismo: é experiência de vida, conhecimento das coisas e dos homens.

O círculo se fechou: parlamentares de oposição perderam seus mandatos ou foram presos, o próprio Bolsonaro assim o será e, de modo pior, sequer temos um norte moral e intelectual do infalível Olavo de Carvalho, morto que está. Restou-nos um bando de youtubers que, tal qual os chicos buarques da vida após o fim do governo militar, vivem hoje às custas do terror da ditadura: se um dia ela acabar, seus empregos acabam também – tal qual Chico.

Para piorar, temos um povo que mostra claramente que ainda tem muito a ser tomado pela ditadura: a cada feriado as estradas lotam; os preços sobem, em uma desesperadora escalada inflacionária, mas limitam-se a reclamar – e comprar, principalmente cerveja. A irritação contra cada novo arbítrio dura exatos 15 segundos, até que o próximo vídeo do TikTok entre, com bela morena a rebolar seus glúteos. E sequer a enfiada de 4 gols, tomada da Argentina no último jogo, teve o condão de despertar o brasileiro de sua letargia dopada. Tudo se resolve com um celular – a arma mortal que tínhamos nas mãos, mas a perdemos para um par de bundas, pacificadoras do povo e normalizadora do “estado democrático de direito”.

E contra isso não posso lutar. Não há como ajudar quem não quer ser ajudado – ou sequer reconhece que precisa ser – tanto Bolsonaro, inerme, quanto o povo, hipnotizado, dopado, em estado vegetativo. Tanto os assessores cegos do “mito” quanto os youtubers carreiristas, jóqueis da desgraça, que não sobreviveriam em um país normal.

Não é vergonha abandonar uma luta impossível de, sequer, perder com honra.

Aguardarei até o final de abril, ainda que seja em infantil esperança de retaliações externas, antes de retirar-me, e assim o farei após esta data: não mais Carta de Notícias, não mais ContraCultura, não mais artigos políticos em minha página pessoal ou em minhas redes sociais.

Me dedicarei exclusivamente à futilidades, memes, postagens automotivas, arqueológicas e, é claro, meus livros. Ninguém sentirá falta, e este é meu mais poderoso motor.

Todos tem um limite, espero que entendam.

Não vale mais a pena lutar. Não há por quem lutar.



Walter Biancardine