Tenho o costume de folhear as páginas do “Filosofia Sempre”, no Facebook, pois sempre traz artigos que me fornecem algum “insight” com poder o suficiente para me retirar dos depressivos e trevosos abismos da meditação solitária. Sempre bom lembrar que tal página – excelente, por sinal – apenas publica as ideias dos filósofos, sem deter-se em análises, julgamentos e, muito menos, a menor intenção de estabelecer dialéticas. Mas me fornece material para escrever, então vamos ao texto que me chamou atenção:
" A civilização grega atingiu seu ápice em Atenas e traçou o rumo da mentalidade ocidental, com que estamos às voltas até hoje. Os gregos se apaixonaram por si mesmos, pela forma humana, pela História, pelos heróis.
Em seu amor pelo potencial humano, eles nos colocaram num caminho em que esquecemos que os seres humanos existem dentro de um Cosmos maior.
Hoje, é difícil lembrar como é ser parceiro da vida."
Rudolf Bahro
E eis que surge minha pergunta, inevitável: este ato de " apaixonar-se por si mesmo" citado no texto, esquecendo-se de seu entorno, não seria uma característica mais apropriada aos iluministas, que removeram Deus do centro das coisas e lá puseram o homem?
E ofereço minha resposta, indo direto ao nervo exposto do texto:
Sim, tal visão tem muito mais a cara de iluminista do que de grego clássico.
Destrinchemos:
Os gregos antigos, especialmente os pré-socráticos, estavam embriagados com o Cosmos. Heráclito via tudo em fluxo; Anaximandro falava do ápeiron, o ilimitado; Pitágoras ouvia a música das esferas – tudo isso é visão cósmica, quase mística. Mesmo em Sócrates, Platão e Aristóteles, que inauguram o racionalismo, há sempre um reconhecimento de uma ordem superior, seja ela o Mundo das Ideias, o Motor Imóvel ou o Logos. Eles não esqueceram o cosmos. Muito pelo contrário: estavam tentando entender como o homem se insere nele.
Essa tal “paixão por si mesmo”, isolada do todo, só tornou-se moda com o humanismo renascentista e explode de vez no Iluminismo, quando o homem – em sua eterna soberba – arranca Deus do trono e se coloca como medida de todas as coisas. Aí sim, temos o divórcio formal entre o humano e o cósmico. O sujeito vira o centro, e o resto é paisagem ou recurso explorável.
Atenas ainda estava encharcada de deuses, oráculos, tragédias, limites impostos pelo destino e pelo fado. A hýbris, a arrogância desmedida, era punida exemplarmente nos palcos da tragédia justamente porque o homem não podia se esquecer de seu lugar no todo. A tragédia grega é o anti-narcisismo por excelência – um sutil aviso a novatos no ramo de modelos fotográficos.
O que Bahro está fazendo é um tipo de anacronismo poético-filosófico, culpando os gregos por uma guinada que só aconteceu dois milênios depois. É como culpar o bebê pela bebedeira do neto. Então, ou ele está usando os gregos como metáfora para a origem de uma certa mentalidade que depois degenerou (o que é perdoável, se for um recurso retórico), ou ele está metendo os pés pelas mãos – o que considero mais provável, dada as características do autor em si.
Resumindo: os gregos nos ensinaram a contemplar o homem, sim — mas sempre diante de um pano de fundo cósmico e trágico. Quem arrancou o pano, apagou as estrelas e botou holofote no ego foi o Iluminismo, o pai de tantas ideologias mortais e comportamentos inaceitáveis dos dias de hoje.
E quem foi Bahro? Que tal sabermos um pouco mais sobre este homem?
Rudolf Bahro foi um daqueles casos curiosos: um marxista que passou pelo fogo e saiu… místico – tipo um Fernando Gabeira que, ao voltar do exílio, pregava a “Liberação das Bundas”.
Nasceu na Alemanha Oriental, foi membro do Partido Socialista Unificado (o partido comunista da RDA), mas acabou preso em 1977 por publicar um livro considerado herético pelo regime: "A Alternativa", onde criticava o socialismo real de dentro, como um herege critica a própria Igreja (sim, eu sei que, diante da Teologia da Libertação tal analogia é fraca, mas vale a intenção retórica).
Foi solto graças à pressão internacional – os intelectuais do Ocidente ainda tinham algum peso na época – e exilado na Alemanha Ocidental. Lá, fez o caminho inverso de muitos esquerdistas: aproximou-se da ecologia profunda, do pensamento espiritualista e da antroposofia, aquela doutrina esotérica, muito doida, nascida com Rudolf Steiner. Ou seja: saiu do materialismo dialético e caiu nos braços de Gaia.
No fim da vida, Bahro virou uma espécie de profeta verde, um avô de Greta Thunberg, misto de ativista ecológico com teólogo cósmico, pregando uma renovação espiritual do Ocidente, uma crítica à racionalidade instrumental e ao culto do progresso. Ele via a crise ecológica como um sintoma da doença espiritual moderna, causada pela ruptura do homem com o todo — e aí entra a citação que a página “Filosofia Sempre” exibiu.
Só que, como bom romântico tardio, cedia ao exagero e mirava nos gregos quando o problema sempre esteve abrigado no galpão iluminista, onde o homem virou gerente do universo e o cosmos, planilha de Excel.
Ou seja: Bahro é interessante, mas escorrega no essencialismo histórico. Como pensador, tem lampejos — mas não é confiável como guia cronológico ou metafísico. É melhor como sintoma do colapso moderno do que como diagnóstico claro.
Ele nasceu em 18 de novembro de 1935 e morreu em 5 de dezembro de 1997. Ou seja, viveu o suficiente para ver o muro de Berlim subir, cair e virar souvenir — e para tentar, no final da vida, reconstruir um sentido espiritual num mundo que já tinha vendido a alma ao shopping center global.
Bahro é, em última instância, um fruto amargo do século XX: começou com Marx e terminou com Steiner.
Dá pra entender – não dá é pra seguir sem filtro.
Walter Biancardine
Nenhum comentário:
Postar um comentário