sábado, 2 de setembro de 2023

O DOM PODE TORNAR VOCÊ UMA FARSA

 


Existe preocupante ambiguidade quando adotamos a escrita como ofício e, pior, a consideramos o exercício de uma arte, espelhando-nos em luminares como Tácito, Machado de Assis e outros. E tal sentimento bifronte se revela quando, ao finalizarmos a obra, intuímos que toda a bela construção parece carecer de verdadeiro lastro na alma e nos sentimentos de quem a produziu; trabalho magnífico, convincente, verossímil e de esmerada técnica que parece não carregar em si, entretanto, um je ne sais quois humano.

Em passado distante já me vi, em jornais, defendendo situações políticas com as quais não concordava mas, para melhor ou pior, saí-me muito bem. Em outras palavras, exerci meu ofício tal qual um bom advogado desempenha, com brilho, suas funções – não vindo ao caso se defende punguistas ou acusa viúvas, pois prevalecerá a destreza em seu trabalho e sobre o mesmo as pessoas tirarão suas conclusões e formarão opiniões.

Laudas tratadas como arte inevitavelmente empurrarão seu autor ao mesmo abismo emocional frequentado por atores, poetas, pintores, escultores e toda a plêiade humana que nada mais útil sabe fazer: invariavelmente acabam por duvidar da própria sinceridade, desconfiar de seus sentimentos e crer-se notória farsa. 

Teria Vinícius de Moraes a certeza íntima que a bela poesia, escrita para a mulher que verdadeiramente amava, iria convencê-la? Ou a moça em questão, sabedora de sua desenvoltura no ofício, a encararia apenas como grande gentileza do amigo famoso? E o próprio Poetinha, nos inevitáveis momentos de autocrítica? Julgaria amar tanto assim quanto escrevera ou a “mão invisível que guia a caneta” – sim, ela existe – teria possuído sua pena e lavrado o que de melhor caberia no papel e nas emoções alheias, não traduzindo tão exatamente, todavia, o que ele próprio sentia?

Como confiar na sinceridade de um amigo que é ator, e nos procura para pedir ajuda em grave problema – segundo ele – que enfrenta?

Se há algo que pode destruir um homem é a mentira e, talvez movido por essa certeza, há tempos decidi limitar meus comentários políticos aos assuntos que me despertam algo de passional – se, no trato que dou às palavras, pode haver alguma desconfiança, ao menos não haverá quanto aos sinceros motivos que me levam a escrever. Inúmeras vezes o assunto palpitante era, por exemplo, alguma CPMI no Congresso. Entretanto, a fúria interior levava-me a desancar STF, sistema judiciário e outros quetais. Eram rosnados sinceros.

Igual razão me fez não mais escrever cartas para a mulher que amei toda uma vida: ela me conhece, sabe que posso até – com boa vontade – ser quase convincente com lápis e papel nas mãos e, por isso, me abstive. O que, eventualmente, por aqui garatujo são explosões, rompantes passionais - a mesma passionalidade que enxergo como o que há de mais verdadeiro em minha caneta - de um amor que tornou-se impossível guardar em mim e que, hoje sei, ela jamais verá.

Não quero nenhuma sombra de dúvidas quanto ao maior, mais precioso e profundo sentimento que tenho, hospedado em mim desde tenros 8 anos de idade. Por isso, prefiro pedir ao bom Deus que me dê a oportunidade de falar com ela frente a frente – ainda que gaguejante, trôpego em palavras mal escolhidas, nenhuma noção de romance e incapaz de olhar em seus olhos, sob pena de arriscar um beijo e levar um tapa.

Sei, entretanto, que tal chance jamais acontecerá e, por isso, recolho-me ao abismo; condenação perpétua agravada por formação de quadrilha com poetas e atores.

E faço lives no YouTube para mostrar que, se sou muito mais feio que estas laudas ao menos endosso, com boca claudicante, o que a porca mão escreve.

Tal qual a chance que espero, com a mulher amada.


Walter Biancardine


NOTA DO AUTOR – Em meu livro “Pretérito Perfeito” ( https://clubedeautores.com.br/livro/preterito-perfeito-4 ) expus o outro lado da moeda que descrevo acima. Em minha obra, dividi a mulher que amo em duas: alguns fatos reais foram usados para compor a Dra. Andressa, tais como ser médica, termos vivido uma lua de mel apaixonada entre viagens de moto e lenços amarrados na mesma, entre outros pequenos detalhes. Já para a judia Hanna consegui transpirar, em quase totalidade, a alma de quem ainda amo: a paciência infinita com minhas dúvidas e problemas (sempre esperando meu amor), o fato de deixar uma vida para trás e ficar comigo, a capacidade de enxergar minha alma e até mesmo a pegada “hippie” da personagem. Isso resultou em claro sintoma de uma contra-parte do que descrevo acima, pois hoje temo confundir o amor verdadeiro que sinto por ela com a paixão que descobri pelas personagens que criei.
É um caso perigoso, um misto de idolatria com patologia da psique, tudo isso fruto de um amor impossível de morrer.
Tal como escrevi no livro, “se não pode ter a original, que fique com a cópia”.





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