A
agonia da espera talvez seja pior que o fato em si.
Eu
aqui, sentado e escrevendo, é só o que posso fazer. As horas
passam, a manhã acaba, a tarde e o dia idem, e a noite vem – e
assim, menos um dia de sofrimento, menos um dia de vida.
A
memória é sádica, me tortura lembrando das vezes em que tentei
pedir ajuda e sempre – sempre, inevitavelmente – a conversa era
distorcida e, no fim das contas, apontava-se o dedo para mim e diziam
que todos os meus males e queixas eram por culpa única e exclusiva
minha: eu provoquei, eu causei, meu desleixo permitiu, minha preguiça,
indolência, irresponsabilidade – qualquer coisa, mas a culpa era
minha, sempre. Certos ou errados, o fato é que hoje concordo: a
culpa foi, é e sempre será minha.
Só
desisti de pedir ajuda após morar sozinho, ilhado no pasto deserto –
mas então, reclamão incorrigível, desandei a rosnar imprecações
escrevendo. E os poucos que liam sempre perguntavam: “mas por quê
não pede ajuda?” ou “ninguém sabe o que está acontecendo?”
Pois é, sempre as mesmas perguntas, ao ponto de sequer me dar mais
ao trabalho de respondê-las – até porque totalizam uma ou duas
almas inquisidoras, apenas.
Mas
o tic-tac do relógio não pára: menos um dia, menos uma semana,
menos um mês. A hora está chegando.
Pouco
importa, pois sempre haverá alguém – alguma alma podre, infecta –
que sempre dirá que escrevo tais coisas e publico em minha página
para que alguém veja, para despertar piedade, para mendigar ajudas
pois tenho preguiça de trabalhar.
Houve
tempos em que isso me despertava uma fúria incontida, quase ódio em
perceber a recusa em aceitar que, o que enfrento, são fatos e não
preguiça. Mas, hoje, pouco se me dá. Pouco me importo com o que
acham sobre mim, sobre minha situação, até porque – sejamos
justos – quantas pessoas se importam? Que diferença faço, na vida
de alguém?
Nenhuma
diferença, nenhuma falta, nenhum peso no prato da balança – e
essa é a definição precisa da expressão popular “ser um zero à
esquerda”.
Na
verdade, a tal ponto esta definição se encaixa em mim que mesmo eu,
pensando sobre minha vida, pouco me importo e nenhuma alteração
sinto nos pratos de minha própria balança. Nenhuma diferença faço,
em nada altero, contribuo ou melhoro em mim e, no fim das contas,
terminei por pouco me importar comigo mesmo – é o tradicional
“chega, já basta!” - e agora apenas gasto meus dias em contagem
regressiva para o fim de minha breve estadia nesta casa, nestas
pequenas “férias” que o acaso me permitiu tirar, antes de me
devolver às ruas.
“E
seu carro? Venda-o!” Pois é, este é um assunto que me enoja
comentar. Comprei um carro que mofava já há anos na agência de um
familiar, pois era o que ele indicou dentro de meu pequeno orçamento
– um excelente automóvel, mas aquele exemplar – especificamente
– resumia-se a um poço de defeitos. Mandei-o de volta para que o
venda, mas sei que levará anos para sair – ainda assim, é
preferível engolir tal abuso a terminar de destruir os escombros de
família que me restam, processando-o pelo seu oportunismo –
afinal, nessas horas o fator “família” não veio à sua cabeça,
o que importava era livrar-se do problema. Deste modo, o tal carro
não passa de dinheiro jogado fora – para eles uma ninharia, para
mim, uma fortuna que resumia todas as minhas posses. Enfim, é já um
martelo batido: lá ficará, mesmo que o valor da venda acabe sendo
doado para alguma instituição de caridade, por eu não mais existir
e meu filho pouco se importar.
Mesmo
este texto, tenho ainda pudores em escrevê-lo. A tal ponto os dedos
acusatórios são infalíveis e inevitáveis contra mim que já
imagino se, por algum acaso, um eventual leitor leia e também me
condene pela minha “auto-piedade”, pelo “pedido disfarçado de
ajuda” ou qualquer outra costumeira facada acusatória – afinal,
sabemos, a culpa é sempre, sempre, sempre, sempre, sempre minha!!!
Pois
que todos vão pro inferno, já me basta! Escrevo porque não tenho
com quem falar, seus idiotas! Escrevo porque são os únicos momentos
em que – cacoete profissional – meu cérebro funciona com clareza
e discernimento! Os únicos momentos onde verifico que meu destino
está selado, mas sem os tons dramáticos das reflexões encolhido na
cama. E se os publico em minha página da internet, deve-se ao fato
de – por menor que seja a probabilidade – alguém desconhecido
ler estas linhas e tomá-las como um exemplo a jamais ser seguido,
pois para isso eu sirvo.
Quem,
neste mundo de meu Deus, passaria pelo que passei sem nenhuma
cicatriz? Quem perderia tudo em um só dia – casa, mulher, família
– e permaneceria lúcido? Quem conseguiria ter, como única saída,
o abrigo isolado em uma cabana no meio do mato, sem fogão
ou geladeira, sem nada ou
ninguém à volta? Quem
veria sua única fonte de renda, um canal no YouTube, ser
definitivamente desmonetizado na véspera de Natal (belo presente) e
ainda ter 28 de seus vídeos roubados pela plataforma? Quem
suportaria viver anos assim, atravessando
natais, reveillóns e datas festivas absolutamente só?
E ainda ter de lidar com um câncer de pele, se
internar em um hospital do SUS, lá permanecer e de lá sair tal como
entrei – sozinho –, conviver e aceitar um
braço aleijado, ter a
vergonha de usar roupas se
esfarrapando e se desfazendo
a cada dia no próprio
corpo, além da
fome – sim, fome – e solidão como eternos companheiros? Qual
infeliz se conformaria em andar a pé 22Km, ida e volta, até a
civilização mais próxima, rasgando sapatos no meio do caminho? Ou
que, para ter água potável, precisasse andar dois quilômetros
carregando um galão de 20 litros nas costas, aos 60 anos? Qual
alma criada nos infernos ainda conseguiria estudar filosofia,
teologia, ler e até escrever livros – que
nada renderam – e artigos,
a ponto de ser chamado por publicações (embora também
nada pagassem e sabemos que,
de graça, até injeção na testa) e por doutores professores PhD,
para fazer palestras? Quem ainda manteria a porra da sanidade mental
para fazer frente a isso tudo? Quem? Quem?
Pois
se conhecerem alguém assim, que me mostrem. Não será nenhuma
surpresa, pois em cada tropeço de minha vida, sempre apareceram
almas solícitas para dizer que sofreram mais ou pior. Mas saibam: a
lucidez é um castigo, tal
qual a excepcional resistência física que tenho – muito mais uma
condenação que bênção.
A
tal ponto a apatia me invade que sinto um verdadeiro impedimento em
sair de casa e dar seguimento à única possibilidade que elocubrei:
buscar um abrigo, uma instituição gratuita como a LBV ou algum
órgão assistencial do governo, que acolha idosos gratuitamente e
faça a caridade de me aceitar.
Sim, eu deveria estar procurando, me informando, mas estou aqui
apático, escrevendo e reclamando. Seria uma protelação sonsa, na
certeza que alguma alma salvadora me resolverá a vida antes de
dezembro? Pois é, penso muito nisso a cada vez que me sinto
horrorizado em ter de sair de casa e, é óbvio, me condeno por isso.
Talvez
eu seja, de fato, este verme rasteiro. Resmungando, escrevendo
ameaças contra mim mesmo nesta página, na eterna esperança que
alguém fará alguma coisa – e mesmo que não seja esta a verdade,
ela se encaixa como uma luva em uma personalidade doentia como a
minha.
Não
sei e, na verdade, que diferença faz? O tempo continua passando,
cada dia é menos um nesta sentença a que chamam caridosamente de
“vida” – e nisto se resume todo meu consolo.
Jamais
imaginei que minha missão na terra fosse tão pouca, tão pequena.
Sim, tenho um filho mas – como tudo em minha vida – falhei
miseravelmente como pai. Hoje ele é um adulto, que me trata
cordialmente e já agradeço a Deus por isso. E o resto?
O
resto é nada. Tenho tanto dinheiro nos bolsos hoje quanto tinha em
meus 13, 14 anos – mal paga uma Coca-Cola. Não tenho carro e sim
uma dor de cabeça a ser vendida, e no quesito profissional, sou
inexistente. Família – na prática – inexistente, amigos idem e
um saldo quase negativo de lembranças em cabeças alheias – se
ainda houver
alguma, será de pura decepção e mágoa, que
o tempo em breve curará.
E
por quê não meto uma bala na cabeça e resolvo tudo? Para alguém
que se considera tão desprezível, tal covardia “sairia na urina”.
Pois é, mas o fato é que não tenho mais armas desde o nascimento
de meu filho, além do que espalhar miolos e sangue pelo chão da
casa dá um tom excessivamente dramático, quase de uma novela
mexicana, e por mais paradoxal que pareça, tal morte mais pareceria
apenas mais um radical e
teatral pedido de ajuda –
como se produzissem Lázaros em série. Para completar, ainda existe
o fato de Deus não perdoar a alma de um desesperado que recorre a
tais meios. Não há como crer que me matar seria o fim da agonia,
sabendo que minha alma teria a eternidade para sofrer por conta deste
desatino – então, tal saída é fora de questão. Se
queimarei no inferno, não será por isso.
Tenho
que me conformar e esperar. O relógio não pára. Preciso ver se meu
irmão pode guardar meus livros e as ferramentas de meu pai – este
laptop que escrevo é dele, então estaria simplesmente sendo
devolvido.
Após
isso, estarei pronto: que venha a merda do destino, que
me espanque e ponha em nocaute, pois
já estou de saco cheio.
Mas
por enquanto estou aqui – olhando o relógio.
E
ele não pára.
Maldito
seja eu, minha porca vida e este relógio.
Walter Biancardine