Resumo:
O presente ensaio analisa os efeitos psíquicos e sociais da teatralização da vida cotidiana nas redes sociais. Partindo de eventos recentes em que indivíduos celebraram publicamente a morte de figuras políticas e foram demitidos em consequência, argumenta-se que o fenômeno não se reduz a uma questão de liberdade de expressão, mas envolve a fusão patológica entre identidade e persona digital. Mobilizam-se conceitos de Stanislávski, Jung, Arendt e Ortega y Gasset, entre outros, para compreender a emergência de uma esquizofrenia social induzida pela rotina performática das redes. Por fim, defende-se uma posição conservadora: a liberdade de expressão deve ser absoluta e irrestrita, mas a responsabilidade moral pelo expressado deve ser, igualmente, inegociável.
O conservador que teme tocar este tema por receio de que "a esquerda use para censura" tem razão em desconfiar – o poder sempre instrumentaliza qualquer diagnóstico social. Mas esquivar-se disso é pior: é abdicar da missão de preservar certas estruturas que tornam a sociedade humana possível. A tradição conservadora (Tocqueville, Ortega, Burke, MacIntyre) sempre valorizou instituições intermediárias, hábitos morais e práticas que moldam caráter. Se as redes dissolvem esses tapetes de civilização – família, paróquia, escola –, quem resta para modular desejos, ensinar reticência e conferir autoridade moral?
1. Introdução -
O advento das redes sociais não apenas alterou as formas de comunicação, mas instaurou um novo regime ontológico da vida pública: o da encenação permanente. Todo usuário, pelo que observo, se vê impelido a criar uma persona digital, uma versão editada, amplificada ou mesmo caricata de si mesmo. O fenômeno, que inicialmente poderia parecer mera frivolidade, revela hoje sua face trágica.
Exemplo paradigmático ocorreu recentemente nos Estados Unidos, quando grupos de usuários comemoraram o assassinato do líder conservador Charlie Kirk. Ao serem identificados, muitos desses indivíduos perderam seus empregos, o que gerou uma reação histriônica de vitimização coletiva. Tal episódio serve de fio condutor para uma reflexão maior: como compreender a psicologia e a moralidade dessa teatralização digital e de seus atores?
2. Máscara e Identidade: o “efeito Stanislawski” nas redes -
Konstantin Stanislávski (1863 - 1938), em sua pedagogia teatral, advertia sobre o risco do ator que, por viver demasiadamente o papel, acaba por não conseguir desvencilhar-se dele¹. Este “efeito stanislawskiano” encontra nas redes sociais seu campo mais fértil: os indivíduos não apenas representam papéis, mas passam a confundir-se com eles.
A exposição constante – medida em horas diárias de interação – faz com que a persona digital se torne a própria identidade. Jung já advertia que a persona é uma máscara social necessária, mas perigosa quando absorve a totalidade do eu². Nas redes, a absorção tornou-se regra: já não se distingue onde termina o indivíduo e onde começa o personagem.
Tal quadro pode ser descrito como uma esquizofrenia induzida, caracterizada pela dissociação entre identidade real e identidade performática, frequentemente acompanhada de traços psicopáticos: insensibilidade, crueldade, exibicionismo.
3. A teatralização da vida pública -
Hannah Arendt, em A Condição Humana, já percebia o risco de uma sociedade em que a ação política é substituída por sua encenação³. Para Arendt, quando o espaço público se torna espetáculo, a verdade desaparece e dá lugar à propaganda. As redes sociais não apenas confirmam, mas radicalizam esse diagnóstico: opiniões tornam-se slogans, indignações são coreografadas em ondas virais, e a moralidade reduz-se ao cálculo de curtidas.
O resultado é a banalização do mal, em sua versão digital. Já não se trata apenas de assassinar, mas de também festejar o assassinato, ou de produzir histeria coletiva diante do sofrimento alheio. A crueldade converte-se em “virtude” encenada.
Ortega y Gasset, embora não seja propriamente conservador, mas um liberal aristocrático, é aqui de grande utilidade. Em A Rebelião das Massas, descreve o “homem-massa” como aquele que, destituído de transcendência, crê-se autorizado a impor sua opinião como universal⁴. Nas redes, este homem-massa não apenas opina: ele interpreta, encena, teatraliza sua própria vulgaridade. Sua rebelião é a da máscara que exige ser reconhecida como rosto. E creio que estas linhas darão muito o que pensar.
Nota: O lugar do ressentimento e da inveja -
Uma palavra sobre o que chama de "inveja" – essa paixão sobre a qual um dia já escrevi: redes sociais exacerbam inveja mimética. Girardianos diriam que a moderna dinâmica mimética encontra na performance digital o combustível ideal: imitar para ser aceito; destruir o modelo que ameaça a própria identidade; comemorar a queda do outro para restabelecer seu próprio estatuto simbólico. O resultado é uma política da destruição identitária e do prazer na ruína alheia – um fenômeno que cabe tanto à psicologia quanto à moral.
4. Liberdade, responsabilidade e a questão da censura -
A reação dos empregadores que demitiram indivíduos celebrando a morte de Kirk é absolutamente legítima. Não há sociedade saudável que premie a degradação moral em seu próprio ambiente de trabalho. Aqui, a responsabilização é correta e necessária.
Mas – e isto é importante e basilar – disso não se segue que devamos defender qualquer forma de censura estatal sobre as redes. Pelo contrário: a liberdade de expressão deve ser plena e absoluta. Qualquer exceção abriria a porta para o absolutismo e o retorno do monopólio esquerdista sobre a verdade e a virtude. Se alguém se sente ofendido, que recorra à Justiça. Se queremos menos vulgaridade, que se eduquem os filhos em casa.
O ponto central do conservadorismo, aqui, é distinguir entre censura (sempre nociva) e responsabilidade (sempre necessária). A liberdade não pode servir de escudo para a degradação sem consequências e, muito menos, a degradação jamais justifica a restrição das liberdades.
5. A barbárie do espetáculo -
O fenômeno em curso não é apenas psicológico, mas civilizacional. Uma sociedade em que aplaudir a morte torna-se espetáculo público está corroendo sua própria sanidade moral. O que emerge é uma nova forma de barbárie: não mais a do guerreiro que mata, mas a do espectador que festeja a morte como catarse coletiva.
Esse espetáculo digital, como alertava Guy Debord em A Sociedade do Espetáculo, dissolve a realidade em imagens e reduz a vida a representações⁵. Mas no contexto contemporâneo, o espetáculo não é apenas imposto de cima para baixo: é produzido ativamente pelas massas, que clamam por sua própria degradação como forma de reconhecimento.
A própria noção de pessoa dissolve-se, substituída por avatares histéricos que se alimentam de curtidas e compartilhamentos. Nunca tantos disseram tanto e significaram tão pouco.
6. Conclusão -
O teatro digital é mais do que metáfora: é realidade psíquica e social. Os indivíduos se transformaram em atores de um palco global, mas sem consciência dos limites entre vida e encenação. Esse processo, patológico em nível pessoal e corrosivo em nível civilizacional, exige resposta firme e imediata.
A tarefa conservadora é dupla:
Reafirmar que a liberdade de expressão é absoluta, contra toda tentação censória.
Reafirmar que a responsabilidade moral é igualmente absoluta, contra toda degradação permissiva.
Se vivemos hoje como atores num palco planetário, que reste ao menos uma plateia lúcida – capaz de não aplaudir a morte nem venerar a farsa.
Walter Biancardine
Notas
Stanislávski, K. A Preparação do Ator. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1970.
Jung, C. G. A Natureza da Psique. Petrópolis: Vozes, 1988.
Arendt, H. A Condição Humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007.
Ortega y Gasset, J. A Rebelião das Massas. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
Debord, G. A Sociedade do Espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.
Referências Bibliográficas
Arendt, Hannah. A Condição Humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007.
Debord, Guy. A Sociedade do Espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.
Jung, Carl Gustav. A Natureza da Psique. Petrópolis: Vozes, 1988.
Ortega y Gasset, José. A Rebelião das Massas. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
Stanislávski, Konstantin. A Preparação do Ator. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1970.
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