sábado, 6 de setembro de 2025

GAVETAS VAZIAS -

 


Não há currículo que resista ao calendário: o mercado é um circo para adolescentes, exigindo corpos em forma, sorrisos falsos, gírias que envelhecem em uma semana e a inevitável postura lacradora. Eu, com meus excessivos anos empilhados, sou considerado um móvel pesado que ninguém quer carregar para o próximo apartamento. Preferem o plástico descartável, fácil de empurrar para o lixo; e por tantas e infrutíferas vezes que tentei, seria estupidez não concluir que estou fora do jogo.

Carrego o rótulo de “conservador” como se fosse lepra. Não importa se o que digo tem lógica ou se apenas repito o óbvio: se não concordo com as besteiras do momento, sou carimbado como intolerante, insuportável, contraproducente e até mesmo – palavra da moda – “tóxico”. Todos gritam “diversidade”, mas querem todos iguais, repetindo as mesmas frases de efeito. Eu, que já vivi mais do que eles suportariam, sei que nada disso é tolerância – é só mais uma forma de linchamento mas sem corda no pescoço, apenas com o silêncio, a separação, o cancelamento e o desemprego.

Amigos? Família? Tais palavras soam como piadas de mau gosto. A verdade é que ninguém suporta por muito tempo um homem que não serve mais para concordar com tudo o que dizem em reuniões sociais ou para pagar contas – por mais que neguem de maneira veemente. Aos poucos, percebi a coreografia: sorrisos diminuindo, telefonemas rareando, “sumiços” – pois estão sempre “muito ocupados” – até restar apenas o eco da própria voz.

Os mais próximos, aqueles em quem eu deveria confiar, descobriram que traição e egoismo rendem mais dividendos do que lealdade, inclusive satisfazendo invejas e recalques secretos e inconfessáveis. Sorriram enquanto mediam o quanto poderiam arrancar de mim, daquele que eu fui enquanto “potável” aos olhos alheios – hábitos, preferências, gostos, amores e até minha própria personalidade: tudo me foi tomado, copiado, invejado da forma mais vil e hoje não mais sei se tenho parentes ou clones, xerox ambulantes de quem, um dia, tive o atrevimento de ser.

Aprendi a dormir com a faca no estômago e a acordar fingindo que não sangro, apesar do deprimente espetáculo diário da traição familiar: ser enganado em negócios ou mesmo assistir parentes tomarem a mulher de outros parentes – tudo isso se tornou rotineiro, aceitável e normal, neste admirável mundo novo.

Restam-me dois irmãos e uma irmã – um deles, atolado nas próprias e pesadas obrigações, não pode estender a mão. Não culpo, compreendo: cada um carrega seu inferno particular e o dele é, por demais, difícil e penoso. Mas a solidão se torna ainda mais aguda quando a última presença confiável está ausente por obrigação, não por escolha. Digo “última” porque o outro já sofreu a mais cruel das traições: vive hoje interno em um asilo – ninguém quer um móvel velho e quebrado. Já a irmã, tão afastada, dissonante e dominada por filhos, apenas o sangue comum nos une.

Bukowski dizia que alguns nascem para carregar o peso e outros para cuspir no rosto de quem carrega. Schopenhauer lembrava que a vida oscila entre o tédio e a dor, e eu acrescentaria: na velhice, os dois se tornam vizinhos de quarto. Kierkegaard falava da desesperança como uma doença mortal e sinto que já fui diagnosticado há anos, só que sem atestado formal ou minha própria percepção do fato. Vivo, mas não estou vivo. Caminho, mas não vou a lugar algum. Muito mais fácil ser rotulado como “narcisista”, “egoísta” ou outras pérolas fáceis de digerir.

Não há nada heroico nisso. Jamais esperei reconhecimento, tampouco compaixão. Longe de mim esperar algo de alguém, pois estas linhas são apenas um desabafo que faço à única coisa que aceita, ainda, meus queixumes: o notebook. Apenas sigo, como um fantasma que arrasta correntes enferrujadas, sem que ninguém as escute além de mim.

A cada dia, todo maldito dia, sento diante do teclado pelo mais torpe dos vícios: escrever. Acendo um cigarro, abro a gaveta vazia de possibilidades, olho o nada acumulado e fecho de novo, sabendo que amanhã será idêntico.

Talvez um dia não precise mais fechar a gaveta.



Walter Biancardine




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