Já algumas vezes tracei um curioso paralelo entre os pensamentos do filósofo pessimista Arthur Schopenhauer, o do niilista e auto-destrutivo escritor Charles Bukowski e o meu, brincando que minha cabeça seria uma cruza de ambos.
Não sei por quê, mas tal pensamento jamais me abandonou e, considerando as últimas tormentas que tenho atravessado, resolvi escrever uma espécie de ficção, onde eu estaria em um bar, bebendo com os já citados e improváveis amigos. Que espécie de assunto sairia? Terminaríamos bêbados ou em profunda depressão?
Pois deixei que a caneta me levasse e escrevi o surreal conto, que segue abaixo.
NOITE NO CAFE DO ABISMO
A rua estava molhada e brilhava como se o asfalto fosse feito de vidro líquido. Lá dentro, o Café do Abismo era um refúgio de penumbra e fumaça. Uma mesa no canto reunia três figuras improváveis: Arthur Schopenhauer, Charles Bukowski e Walter Biancardine.
Era um encontro impossível – mas quem disse que a realidade é dona da razão?
Schopenhauer, de terno escuro, olhava o vinho como se nele houvesse a prova de que o mundo era uma ilusão insuportável. Bukowski, camisa amarrotada, encarava a cerveja quente com a naturalidade de quem sabe que ela também é uma ilusão, mas não se importa. Walter mantinha um whisky à frente, mais como arma de concentração do que como bebida.
A mesa é grande, pesada, com as marcas de quem já ouviu muitas conversas que não deveriam ter sido ditas.
A conversa começou sem cerimônia, com Arthur Schopenhauer puxando assunto e segurando o cálice como quem segura uma tese. O vinho é profundo, silencioso:
“A vida é uma tarefa que não pedimos. Uma peregrinação através da dor. Tudo o que desejamos é apenas uma distração para não encarar a verdade: não há descanso enquanto a Vontade não for calada. Quem entende isso renuncia – e, na renúncia, encontra um resquício de paz.”
Charles Bukowski solta uma risada curta, sacode a garrafa de cerveja e aponta o dedo para o filósofo:
“Você fala como se o homem pudesse simplesmente desligar a tomada. Não pode. A vida não é um mosteiro, é um bar barato com a porta sempre aberta. Você entra, toma uns goles, briga, sangra, beija alguém, perde o dinheiro e sai tropeçando. E sabe o quê? Amanhã é igual. Então escreva sobre isso. Não pra salvar ninguém - mas pra que alguém ria no meio da merda.”
Walter Biancardine cruza os braços, encostando para trás mas com o olhar franzido, como quem não se contenta com nenhum dos dois destinos:
“Renunciar é deixar o campo livre para os canalhas; rir é aceitar que eles vençam. Vocês olham para o mundo e veem o que está errado – eu também. Mas não posso me dar ao luxo de apenas contemplar ou debochar. Meu papel é cutucar, provocar, chamar o homem à responsabilidade. Se a verdade dói, que doa o bastante para que ele se mexa.”
Schopenhauer ergue uma sobrancelha:
“Você supõe que o homem é capaz de grandeza, mas não é. A Vontade que o move é cega, e a maioria jamais verá além dela. A salvação é pessoal e silenciosa.”
Walter responde sem baixar a voz:
“A maioria, talvez. Mas é justamente por isso que o pouco que pensa precisa falar. E falar alto. Não é para salvar o mundo, é para manter a luz acesa enquanto houver uma vela.”
Bukowski dá um gole longo e esfrega o rosto:
“Eu gosto de vocês dois, mas o problema é que vocês levam a vida a sério demais. A vida é um cavalo doente: não importa se você monta para ir à guerra ou para ir à igreja, ele vai desabar no meio do caminho. Então beba enquanto dá.”
Walter sorri de canto e resmunga:
“Eu bebo, Bukowski. Mas não antes de ter dado um tiro no cavalo errado.”
O silêncio cai sobre a mesa, não por falta de assunto, mas porque os três sabem que chegaram ao ponto central: a vida é uma sucessão de golpes baixos – cada um decide se enfrenta, renuncia ou ri.
Lá fora, a chuva engrossa. Dentro, o vinho, a cerveja e a palavra continuam circulando.
E, no Café do Abismo, nenhuma cadeira fica vazia por muito tempo.
SEGUNDA NOITE NO CAFÉ DO ABISMO
A chuva parou. A rua ainda brilha de molhada. Dentro, a mesa é a mesma, mas o clima mudou. O vinho de Schopenhauer está pela metade; a cerveja de Bukowski, já quente e o Jack Daniel’s de Walter ficou esquecido, com as três pedras de gelo já derretidas.
Walter quebra o silêncio encostando para frente, como quem não está ali para perder tempo:
“Há um inimigo maior que a Vontade ou a miséria das ruas: a inveja. Não falo da inveja banal, de bens ou cargos. Falo daquela que quer arrancar a pele do outro, tomar-lhe a identidade, apagar a sua existência. Essa é a mais destrutiva – e é ela que devora civilizações inteiras. Eu sei, vivi isso em minha própria pele.”
Schopenhauer gira o cálice lentamente:
“Sim… a inveja é filha legítima da Vontade. O homem não suporta ver no outro a satisfação que ele próprio não pode alcançar. Por isso, o mais sábio é desligar-se do jogo. Se não há plateia, não há espetáculo.”
Walter encara-o de frente:
“Mas enquanto você se retira, eles avançam. O invejoso não descansa, Schopenhauer. Ele se infiltra no poder, manipula a massa, destrói o que não pode possuir. O que você chama de renúncia, eu chamo de abandono de posto.”
Bukowski bate a garrafa na mesa, rindo, mas com um tom meio amargo:
“Vocês falam da inveja como se fosse novidade. Olhem ao redor: a vida é um ringue de bêbados, todos querendo derrubar o outro só pra não se sentir tão fodido. O truque é não dar a mínima – continuar bebendo, fodendo e escrevendo. A inveja só mata quem se leva a sério demais.”
Walter não se deixa desviar:
“E enquanto você ri, Bukowski, o invejoso está plantando bombas na fundação da sua casa. Um dia, você acorda e o bar fechou, a rua foi tomada, o que era seu agora tem outro nome e outro dono – carros, casa, família, mulher… o riso não salva território.”
Schopenhauer recosta-se na cadeira, como quem observa gladiadores, e comenta quase com pesar:
“Vocês ainda acreditam no mundo. Eu já não. O mundo é uma engrenagem que tritura tudo – virtuosos, canalhas, bêbados, monges. A única vitória é escapar inteiro dela.”
Walter aperta o copo na mão como se fosse um pescoço odiado:
“Escapar é para quem aceita que perdeu. Eu não aceito. E não é otimismo, é dever. A verdade precisa ser dita, mesmo que o eco não alcance ninguém. E se não posso deter o invejoso, ao menos posso expô-lo até que sua própria sombra o engula.”
Bukowski sorri torto, balança a cabeça e levanta a garrafa:
“Vocês dois são uns filhos da puta teimosos. Mas eu gosto disso. Porque, no fim, talvez não importe se a gente foge, luta ou ri. O que importa é não virar um daqueles idiotas que acreditam que o mundo é justo.”
O silêncio volta, mas agora é pesado, quase palpável. A conversa não acabou – apenas mudou de temperatura. Cada um sabe que está diante de um impasse que não se resolve numa noite.
A rua, lá fora, continua brilhando. E no Café do Abismo, a mesa permanece intacta, à espera da próxima rodada.
A ÚLTIMA RODADA NO CAFÉ DO ABISMO
A noite está mais silenciosa, já está quase amanhecendo. As ruas parecem ter esquecido que existem carros. A mesa está marcada pelo suor das garrafas e pelas cinzas acumuladas. É a última bebida – não por escolha, mas porque o café fecha quando o dono decide.
Walter olha para os dois e lança a pergunta como quem joga uma faca no centro da mesa:
“Digam-me: no fim, o que realmente vale a pena?”
Schopenhauer não pensa muito:
“A paz de espírito. E isso só existe na libertação da Vontade. Quem vê a vida como ela é, percebe que todo apego é uma corrente. Rompa a corrente, e, mesmo que o mundo desabe, você estará inteiro.”
Bukowski suspira, puxa um cigarro amassado e acende, rosnando ébrio:
“O que vale a pena? Um gole gelado numa noite quente. Uma mulher que te olha como se você fosse o último homem na Terra. E escrever — porque escrever é o único jeito de cuspir de volta na cara do mundo antes que ele te engula.”
Walter, não menos bêbado, sorve um gole do restinho de seu whisky:
“Pra mim, vale a pena deixar um rastro. Que seja uma linha, uma ideia, um texto que incomode um canalha mesmo depois que eu estiver morto. A paz de espírito é boa, mas sem luta, ela é só um retiro. O prazer é bom, mas sem propósito, vira anestesia. Eu quero que, quando a história passar por cima, ela tropece na minha lápide, caia e quebre os dentes.”
Schopenhauer franze levemente o cenho:
“Você ainda fala como se pudesse mudar a marcha da engrenagem.”
Walter responde firme:
“Não posso mudar a engrenagem. Mas posso entortar alguns dentes dela.”
Bukowski solta a fumaça devagar, com um sorriso cansado:
“A verdade é que vocês dois querem vencer. Eu não. Eu só quero que, quando o mundo me mastigar, ele engasgue.”
Os três riem, cada um do seu jeito. Não é uma risada alegre – é o riso de quem reconhece a derrota inevitável, mas ainda assim não larga a arma, o copo ou a pena, “the last standing man”.
O dono do café se aproxima, entrega a conta e diz que está na hora. A mesa se esvazia.
Schopenhauer sai primeiro, passo lento, mãos atrás das costas, como quem se afasta de uma cena já prevista.
Bukowski segue, acendendo outro cigarro, sem se importar com a chuva fina que começa.
Walter fica por último, dá um último gole em seu Jack Daniel’s, um último trago em seu último cigarro, paga a conta com seus últimos tostões e sai para a rua com o mesmo olhar de quem ainda tem batalhas para travar – mesmo que seja a última.
O Café do Abismo fecha suas portas. Lá dentro, só o cheiro de álcool e fumaça permanece. Lá fora, cada um segue seu caminho – e o mundo continua, como sempre, fingindo que não ouviu nada.
Walter Biancardine