quarta-feira, 9 de abril de 2025

UMA SALADA FILOSÓFICA SOBRE O AMOR, EGO, SACRIFÍCIO, ETERNIDADE E FERNANDO PESSOA -

 


Lá pelos idos de 1985 ou 1986 este que vos escreve — ainda jovem, crendo que os adultos sabiam mais do que aparentavam — fui buscar minha então namorada na faculdade, em sua sala de aula. Um professor, cujo nome as décadas varreram mas era o arquétipo esquerdoso daquele tempo – magrelo, calças frouxas (bag, dizia-se) e rabo de cavalo – disse uma frase que ficou gravada para sempre em minha memória, dado o choque que levei: " Nós não amamos ninguém; apenas amamos o que o outro nos dá."

Aquelas palavras, ditas como se fossem uma evidência lógica e reveladora do óbvio, me atingiram como um tapa. O mundo pareceu, por um instante, mais frio, mais seco, mais opaco. Seria isso o amor? Um comércio espiritual? Um espelho vaidoso?

Quarenta anos depois, já calejado pela vida, pelas perdas, pelos abismos do pensamento – e dos amores também – reencontrei uma formulação semelhante em uma postagem nas redes sociais, sobre Fernando Pessoa. Agora entretanto, já farto de tal zumbido ecoando em minha cabeça e com maturidade suficiente para não esquecê-lo, decidi não apenas encarar a ideia — mas julgá-la, combatê-la, desenterrá-la até o osso. Este ensaio nasce dessa provocação antiga, desse desaforo nunca inteiramente levado para casa.

INTRODUÇÃO: O ESPANTO COM FERNANDO PESSOA

Tudo começou com uma citação de Fernando Pessoa, postada nas redes:

" Nunca amamos ninguém. Amamos, tão-somente, a ideia que fazemos de alguém. É a um conceito nosso – em suma, é a nós mesmos – que amamos. Isso é verdade em toda a escala do amor. No amor sexual buscamos um prazer nosso dado por intermédio de um corpo estranho. No amor diferente do sexual, buscamos um prazer nosso dado por intermédio de uma ideia nossa."

A frase é um escândalo. Mas como todo escândalo bem posto, exige resposta. Pessoa propõe, sem floreio, que o amor é um jogo de espelhos — um narcisismo sofisticado. Não amamos o outro, amamos a ideia do outro, amamos – como diria o magricelo dos anos 80 – “aquilo que o outro nos dá”. E essa ideia, claro, é um recorte, uma projeção, uma moldura. Um retrato nosso com outra moldura.

Mas isso seria tudo? Amar seria, no fim das contas, uma masturbação mental com o corpo ou a imagem de alguém, como cenário? Fernando Pessoa crava: sim. Mas eu não engulo.

"Nunca amamos ninguém."
A frase é de uma frieza cirúrgica, quase blasfema — especialmente numa cultura sentimentalóide como a nossa, que adora falar de " amar o outro como ele é", como se isso fosse
facílimo, possível ou corriqueiro.

"Amamos, tão-somente, a ideia que fazemos de alguém."
Aqui está o coração da sentença: Pessoa denuncia a estrutura narcísica do amor. Não o amor idealizado dos manuais religiosos ou dos filmes de romance, mas o amor nu e crú — aquele que serve ao espelho interno, não ao outro real. O outro? É só um suporte. Um cabide onde penduramos as nossas projeções mais íntimas, as carências mais antigas, os desejos mais indecentes ou as virtudes que nos faltam –
e que é, convenhamos, o mais comum.

"É a um conceito nosso — em suma, é a nós mesmos — que amamos."
Essa é a facada mais profunda. O amor, segundo Pessoa, é um ato de auto-engano sofisticado. Amamos a ideia que temos do outro, e essa ideia é, no fundo, um recorte da nossa psique. Não amamos a mulher — amamos o papel que ela representa no nosso teatro mental. Não amamos o amigo — amamos o reflexo que ele confirma em nós. É o " espelho mágico" de Baudelaire: queremos ver algo belo, e usamos o outro como superfície polida.

" No amor sexual buscamos um prazer nosso dado por intermédio de um corpo estranho."
Aqui, ele desmascara o eros: o prazer é nosso, o corpo do outro é meio, nunca fim. O romantismo morre aqui, sem flores, no velório. Pessoa trata o sexo como
um comércio de sensações privadas. A carne do outro é um caminho para um êxtase que é só nosso, Narciso com um parceiro.

" No amor diferente do sexual, buscamos um prazer nosso dado por intermédio de uma ideia nossa."
E
nesta frase ele mata também a amizade, o amor fraterno, o amor platônico, o amor materno, até mesmo o amor cristão, se duvidar. Tudo vira um prazer mental — não da carne, mas da imagem, da ideia construída. Um autoerotismo espiritual, por assim dizer. O outro continua fora da equação.

Conclusão? Pessoa está afirmando uma verdade terrível e elegante: o amor, tal como experimentado pela maioria, não é comunhão, é reflexo. É ego mascarado. É estética do eu. É delírio vestido de vínculo. É o que vemos hoje em cada esquina – mas não é o que todos sentem, acrescento eu.

O que seria, então, amar de verdade? Seria possível despir-se de si mesmo e ver o outro como outro? Talvez. Mas isso exigiria um esvaziamento de si quase místico. Algo que nem Pessoa acreditava ser possível… e talvez por isso tenha escrito tal coisa.

No fim das contas, o que ele diz é que o amor — assim como a vida — é um sonho lúcido, onde o outro é personagem, não protagonista. O verdadeiro amor? Talvez só exista onde o ego morre. Mas isso, convenhamos, é coisa rara.

A IDOLATRIA DO EU E O DESMONTE DA CIVILIZAÇÃO

A afirmação de Pessoa não é neutra — ela revela o espírito de uma época, um espírito que adoeceu. O amor que se autoconsome é reflexo de um narcisismo sistêmico que, ao longo do século XX, desmoronou os pilares da alteridade.

Não é só o amor conjugal que apodreceu: é o amor ao próximo, o amor à família, o amor à verdade. Tudo virou consumo de sensações próprias. Quando o outro só existe para confirmar minha imagem de mim mesmo, então ele não é amado — é usado. E quando o amor se torna uso, a civilização entra em colapso.

O eu absolutizado torna-se, paradoxalmente, o algoz de si mesmo. O sujeito pós-moderno, adorador de sua própria imagem, não é apenas incapaz de amar — é também incapaz de receber amor. Pois todo amor verdadeiro exige uma condição: morrer para si mesmo.

[Nota 1: O narcisismo moderno não é apenas um transtorno psicológico; é um fenômeno metafísico — a recusa da criatura em se submeter ao Criador.]

A MORTE DO EU: UMA DIGRESSÃO NECESSÁRIA

Mas aqui surge um dilema cruel: se o amor exige a morte do eu, não estaríamos sonegando à mulher amada justamente o homem por quem ela se apaixonou? Não estaríamos negando-lhe o nosso "eu"?

A resposta está na diferença entre aparência e essência. A morte do eu não significa aniquilamento da personalidade, mas sim a poda do ego inflado, da vaidade estética, da infantilidade emocional. Morrer para si é, na verdade, tornar-se mais si — como o vinho que, ao fermentar, vira vinho de verdade e – perdoem o trocadilho – in vino veritas.

O eu que ama é aquele que foi purificado, não aquele que foi apagado. A mulher não perde o homem que ama quando ele morre para si; ela finalmente o encontra — inteiro, limpo, disponível.

[Nota 2: Santo Agostinho já dizia — " Ama e faze o que quiseres" — mas esse amor pressupõe a transformação da vontade pela caridade divina.]


I. Fernando Pessoa como sintoma (e não como causa)

Pessoa não está inventando o narcisismo — ele está constatando o que já começava a florescer nos escombros da modernidade. Ele escreve como quem vê, com horror estético, que o amor já não é mais relação entre almas, mas projeção de delírios. O amor virou, já em seu tempo, um dispositivo interno, um teatro privado. O outro? Um figurante involuntário.

Essa constatação abre a porta para a desconstrução do amor como relação de transcendência e sacrifício, e sua conversão em performance emocional autocentrada.

II. O colapso da alteridade

Pessoa diagnostica algo que Santo Agostinho já alertava, mas com outra linguagem: o homem fechado em si mesmo é o homem perdido. O amor, para Agostinho, era o movimento da alma que se desprende de si e se volta ao bem verdadeiro — que é Deus, e por extensão, o próximo. O amor exige saída de si, aquilo que os gregos chamavam de ek-stasis — o estar fora de si, o êxtase.

Se amar é ver no outro um mistério que nos transcende, então o amor pressupõe humildade. Mas no mundo moderno, essa humildade foi devorada pelo ego inflado. O amor passou a ser um consumo de sensações, não uma entrega. É aqui que entra Freud, quase demoníaco: para ele, o amor é sublimação, sim — mas ainda assim é o eu em busca de prazer, mesmo que vestido de sacrifício – e é desnecessário dizer que o velho Siegmund certamente estava em alta conta, nos pensamentos daquele professor magrelo dos anos 80.

III. A morte da família e a tirania do eu

E então chegamos à consequência mais nefasta: o desmonte daquilo que sustentava o amor como estrutura civilizatória — a família, a amizade durável, o amor ao próximo como mandamento e não como opção emocional. O que temos no lugar? A cultura do “me faz bem”, tal como o refrão de conhecida música de Lulu Santos, também da fatídica década de 80. O vínculo dura o tempo que dura a gratificação. O outro é útil enquanto reforça minha autoimagem. A caridade virou " autorrespeito", amor próprio, “ se valorizar”.

Podemos batizar esse processo com um nome: narcisismo de massa. E o amor, nesse contexto, virou uma espécie de religião privada: o culto ao próprio reflexo.

IV. Simone Weil, a mística da atenção

Agora vejamos um contraponto sutil: Simone Weil. Ela diz que amar verdadeiramente é prestar atenção ao outro. Mas atenção como quem contempla um sacramento — não como quem observa uma vitrine. A atenção é silenciosa, receptiva, desarmada. É o oposto da projeção de Pessoa. Para Simone Weil, só há amor quando me calo internamente e deixo o outro ser o que é, mesmo que isso não me agrade.

Esse amor é raro porque exige morte do eu como centro da experiência. É o oposto da lógica moderna, onde tudo gira em torno do “eu real”, “meu espaço”, “minha verdade”, “minha vibe”.

V. Conclusão sem catarse: amar é guerra

Pessoa nos obriga a olhar para o fundo do abismo: a maior parte do que chamamos de amor é um mal-entendido. É autoamor em traje alheio. E a modernidade, ao idolatrar o “eu”, apenas selou o destino desse amor falso: ele implode, não sustenta laços, não forma famílias, não constrói civilizações.

A única saída? Uma revolução ao contrário: não " desconstruir" (perdoem a esquerdice do termo) o amor, mas reconstruí-lo sobre a rocha da renúncia, da alteridade e da transcendência. Um amor que seja serviço, sacrifício, silêncio — e não teatro, fetiche e selfies para o Instagram.

O que Pessoa descreveu com espanto poético, nós vivemos hoje com cinismo banalizado. E aí está o veneno: não é que o amor morreu de “morte morrida” – é que o mataram e, ainda por cima, zombam do cadáver.


VALE CITAR: Santo Agostinho – O amor ordenado e a ferida do desejo

Agostinho não mostra paciência com meias verdades, ele não diz que o amor está corrompido – ele diz que o amor, quando desordenado, é destrutivo. Para ele, o problema não é amar, é amar errado, isto é, fora da hierarquia do ser.

Ama e faze o que quiseres.”
– Mas ama como? Com ordem. Com sentido. Com direção.

Amar a mulher como a Deus? Idolatria.
Amar a si mesmo mais do que ao outro? Soberba.
Amar o outro mais do que ao verdadeiro bem? Ilusão.

O que Agostinho ensina é que o amor só se realiza quando sobe, quando participa do Amor Maior. Só quando o amor ao próximo é reflexo do amor a Deus – e não seu substituto – é que ele é verdadeiro. Sem isso, o amor é carência fantasiada, é carne pedindo adoração.

E completemos: Agostinho não nega o eu – ele quer que o eu se reencontre em Deus. Não se trata de apagar-se, mas de reposicionar-se no cosmos. A mulher amada, então, não perde o homem por causa da ascese — ela o recebe inteiro, liberto do teatro da vida e da aceitação social egoística.

Quando amamos o outro em Deus, amamos não uma projeção, mas o mistério. O outro torna-se ícone, não ídolo.

Blaise Pascal – O buraco em forma de Deus

Pascal diagnosticou, com precisão brutal, o que parece se passar no fundo do peito humano:

O homem é um ser miserável, mas também o mais nobre de todos, quando reconhece sua miséria.”

Para ele, o amor humano sempre será insuficiente, porque o coração tem um vazio do tamanho de Deus. E o que o homem moderno faz? Tenta preencher esse buraco com o amor romântico, com o corpo da mulher, com o aplauso, com o sucesso. Resultado? Frustração em série.

Pascal vê o amor humano como tentativa desesperada de fugir do tédio e do nada. Mas isso só dá certo quando o amor aponta para cima. Fora disso, é como beber água do salgado mar de Cabo Frio: quanto mais se bebe, mais se seca a boca.

E o que ele oferece como saída? Não o cinismo, mas a fé como salto racional. Amar, diz ele, é possível – mas só quando o amor se reconhece como mendicância, não como poder. O verdadeiro amor sabe que não basta. E mesmo assim se entrega.

Pascal antecipa a falência do amor moderno, que exige do outro aquilo que só Deus pode dar: sentido, salvação, eternidade.

Os Cínicos Gregos – O amor como escravidão voluntária

E agora, o choque de realidade dos cínicos gregos, verdadeiros mendigos de cérebro afiado e desprezo olímpico por sentimentos prét a porteur: Diógenes de Sinope, o mais famoso deles, vivia num barril e dizia que o amor romântico era prisão voluntária, invenção dos fracos. Para ele, o amor é um truque da natureza, uma embriaguez hormonal que escraviza. A mulher amada? Um saco de ossos que exala cheiros — e você ali, babando feito cão. Diógenes queria a liberdade total, inclusive da paixão.

Quando vejo um homem apaixonado, vejo um prisioneiro feliz — e toda prisão feliz é a pior de todas.”

Embora perfeitamente adequada às pretensões sociais dos atuais comuno-globalistas (“você não terá nada e será feliz”), filosoficamente é uma visão extrema. Mas ela serve como antídoto contra o sentimentalismo açucarado. Os cínicos nos lembram que o amor, se não for consciente, livre e ascético, vira grilhão. O amor cego, para eles, é loucura com aplauso.

Mas há algo de precioso aí: os cínicos amavam a verdade acima de tudo. Se o amor puder conviver com a verdade – sem máscaras, sem bajulações, sem auto-traições – então ele é possível. Difícil, mas possível.

Amar sem desaparecer

Voltando ao ponto original: amar não é desaparecer. É aparecer sem vaidade. O que deve morrer é o ego possessivo, não a personalidade concreta. A mulher que ama um homem quer o rosto dele, não o holograma de um santo. Mas esse rosto só se torna digno de amor quando lavado nas lágrimas da renúncia.

O amor verdadeiro começa quando o homem pára de se amar como um ídolo, e passa a amar o outro como mistério a ser servido, não objeto a ser consumido. E isso exige algo que falta ao mundo de hoje: transcendência.


TRÊS PÁS PARA DESENTERRAR O AMOR: ORTEGA, GIRARD E OS PADRES DO DESERTO

Com Ortega y Gasset, entendemos que o amor é "atenção concentrada no ser do outro". Ou seja: amor não é sensação, é contemplação, bem o contrário da dispersão moderna. Ortega percebe o amor como revelação da realidade de outro ser — e isso exige silêncio interior, escuta verdadeira, renúncia do próprio ruído. É o anti-narcisismo por excelência.

Girard nos mostra outra coisa: a inveja como núcleo das relações humanas – sim, sempre ela, a maldita inveja, da qual tratei em artigos anteriores. O desejo não nasceria do objeto, mas da mediação – desejamos o que o outro deseja. O amor, assim, pode ser contaminado pela rivalidade e pela usurpação. E alguém se lembra da “inveja mimética”, a que deseja roubar nosso corpo de nossa alma e ser o que somos, que escrevi recentemente? Pois o verdadeiro amor é o que rompe com essa lógica (mimética): não deseja o outro por status, por comparação, por escassez simbólica – deseja-o como dom.

Os Padres do Deserto, por fim, trazem a linguagem mais brutal e mais santa: amar é combater. O amor é uma forma de ascese, uma via de purificação. O monge que ama seu irmão precisa vencer os demônios internos que distorcem sua visão: a vaidade, a luxúria, o orgulho espiritual. O amor, para eles, é sempre ato contra o ego.

[Nota 3: As máximas dos Apotegmas dos Padres do Deserto são implacáveis com a afetividade desordenada, pois sabem que ela mascara o apego ao próprio eu.]


I. Ortega y Gasset – O amor como forma de atenção profunda

Ortega não é um místico nem um moralista. É racionalista, elegante, mas com sensibilidade para o abismo. Em Estudos sobre o amor, ele começa com uma distinção decisiva: amar não é escolher, é fixar-se.

O amor é um ato de atenção… uma atenção que se fixa, se concentra, e gira em torno de um único ponto.”

Para Ortega, amar é atirar a alma sobre um objeto e permanecer ali. É, portanto, um fenômeno de fixação numa era de distração. Amar, para ele, é ir contra a corrente da consciência dispersa, é deliberadamente perder-se em alguém, mas sem se dissolver.

Veja como isso contrasta com a ideia de Pessoa: se, para Pessoa, amar é projetar uma ideia nossa, para Ortega amar é ver o outro com radical nitidez, de maneira quase hipnótica. Não há como amar sem se deter. O amor exige pausa, exige renúncia à pluralidade de opções — exatamente o que o narcisismo moderno detesta.

Ortega já havia percebido que o amor está em crise porque, digamos, o mundo moderno é centrífugo, e o amor é centrípeto. Enquanto a modernidade grita “experimenta tudo”, o amor sussurra “fica aqui”. O narcisista não aguenta isso, ele precisa circular, variar, consumir. E aí entra o colapso do amor como vínculo: a multiplicidade destrói a fidelidade.

II. René Girard – O desejo como imitação e a crise do amor autêntico

Agora entramos em René Girard: para ele, nós não desejamos por impulso interno, como dizia Freud, mas por imitação de um modelo. Ou seja: não desejamos o objeto, desejamos o desejo do outro.

A mulher que você ama? Talvez você a deseje porque alguém – seu amigo, a mídia, a cultura – ensinou que ela é desejável ou mesmo elevara seu status. O amor, então, torna-se mimético. Não é entre dois, é triangular: eu, o outro, e o modelo que me ensinou o que devo amar.

Agora pense nas redes sociais, nos influencers, na pornografia emocional da cultura de massa: tudo ensina o que deve ser amado. Resultado? Todo mundo ama o mesmo tipo de pessoa, busca o mesmo tipo de relação, o mesmo “ideal de amor” – que não é autêntico, mas vendido como comercial de automóveis. O amor vira teatro de vaidade e inveja.

Girard então mostra o passo final: quando todos desejam o mesmo, surge a rivalidade. O amor mimético vira guerra, ciúme, competição. O amor deixa de ser doação e vira campo de batalha simbólico. A sociedade mimética, saturada de desejos emprestados, já não ama – apenas disputa.

III. Os Padres do Deserto – O amor como ascese, a morte do ego

E agora, deixemos os salões dos filósofos e entremos nas cavernas dos Padres do Deserto. Aqui não há teoria, só combate espiritual. Amor? Só se for banhado em sangue – o do próprio ego.

Para os anacoretas egípcios dos séculos III e IV, o amor verdadeiro começa depois que o eu é esmagado. Eles sabiam que todo sentimento começa contaminado pela vaidade, pelo desejo de controle, pelo orgulho. Por isso, não confiavam em si mesmos. O amor, para eles, não é natural, é construído pela luta contra o ego.

Veja o que diz Evágrio Pôntico (busque no Google), o mais sistemático deles:

Não é possível amar o outro sem antes vencer os próprios pensamentos passionais.”

Eles chamavam esses pensamentos de logismoi — impulsos interiores que deformam a percepção do outro. Inveja, luxúria, ira, vanglória. E sabiam que, enquanto esses monstros vivessem dentro de nós, todo amor seria possessivo, mentiroso, projetivo — exatamente como Pessoa descreve.

A proposta deles é brutal, mas clara: mate o eu, e talvez você conheça o amor. Enquanto amar for sentir, desejar, projetar — é ilusão. O verdadeiro amor é caridade ascética, fruto da vigilância e da oração.


RETORNANDO À PERGUNTA CAPITAL: Se para amar de verdade é preciso matar o "eu", então… quem será amado?

Essa objeção aponta o risco de uma ascese que vira despersonalização. Se o amor exige esvaziamento total, não resta mais ninguém para ser amado. É como se dissessem: " Para te amar direito, eu preciso sumir." Ora, mas foi justamente esse "eu" – com seus gostos, sua voz, sua teimosia, seu jeito besta de andar de moto – que ela amou. Se você o apagar, talvez reste um santo, mas ela queria um homem. E um homem tem cheiro, vícios, limites, voz própria.

Mas eis o paradoxo – e a beleza: não é o eu autêntico que precisa morrer, é o eu inflado. O "eu" que precisa morrer é aquele caricato, teatral, autocentrado. O eu-avatar, não o eu-alma. É a persona do espelho, não o rosto que sangra.

A mulher ama o homem não porque ele é perfeito, mas porque ele é inteiro. E só é inteiro quem está liberto da ilusão de ser o centro do mundo.

Os Padres do Deserto não pedem que você mate o eu no sentido existencial, mas no sentido egóico. Você não some – você finalmente aparece. Só quando o eu do orgulho morre, o eu da alma pode emergir. E aí sim, amar.

Em outras palavras: não se trata de desaparecer, mas de desinfetar-se. Tirar as máscaras, os truques, as simulações. O homem que sobra depois disso é menos performático, mas mais verdadeiro. E esse sim, pode amar.

Ela se apaixonou por você, não pelo seu narcisismo. E se foi pelo seu narcisismo, então ela amou a mesma ilusão que você.

CONSIDEREMOS CHESTERTON, RATZINGER E MEU PROFESSOR OLAVO DE CARVALHO

Chesterton, na verdade, ri da modernidade. Para ele, o amor é compromisso, não capricho. Amar é renunciar a todas as outras opções, e isso escandaliza o espírito hedonista. "O casamento é a maior das aventuras", dizia. O amor sem cerca, sem rito, sem sacrifício, não passa de desejo disfarçado de virtude.

Olavo de Carvalho afirma que, para ele, não é afeto – é guerra espiritual. Quem ama precisa conhecer a realidade, reconhecer a hierarquia do ser, saber que é criatura e que a vida não gira em torno do próprio umbigo. Sem metafísica, o amor vira neurose. E toda paixão que não termina em cruz, acaba em inferno.

Ratzinger, intelectualmente mais manso, reconcilia eros e ágape. O amor não é destruído pela fé – é elevado por ela. O eros verdadeiro se abre ao ágape, e o amor conjugal vira caminho de santidade. Amar, para ele, é conduzir o outro à eternidade. Tudo o mais é vaidade.

[Nota 4: A encíclica Deus Caritas Est (2005) de Bento XVI é uma meditação decisiva sobre o destino espiritual do amor humano. Vale a consulta.]


Amor autêntico ou ilusão mimética?

Fernando Pessoa, com sua frase gelada, apenas revelou o que a tradição já sabia: amar é raro porque o eu é uma prisão. Ortega tenta resgatar o amor pela atenção profunda, Girard o denuncia como imitação contaminada, e os Padres do Deserto apontam o caminho da purificação.

O amor verdadeiro só nasce depois de uma morte interior; o resto é teatro, glamour de revista, balé de carências vestidas de afeto.

Como já afirmai acima: se o amor verdadeiro morre, morrem com ele a família, a amizade e até o amor ao próximo. E então resta o quê? A utopia tecnocrática, o hedonismo de farmácia, a solidão com Wi-Fi. É o inferno, mas com air fryer.

G. K. Chesterton – O paradoxo do amor real: limite e liberdade

Chesterton dizia que o casamento era a maior aventura do mundo — porque exige compromisso num mundo viciado em fuga.

O homem que se casa com uma mulher porque a ama é como alguém que se casa com o universo porque ama a lua.”

Para ele, o amor não é espontaneidade emocional – é deliberação espiritual. O amor verdadeiro é o que decide permanecer quando a paixão já se foi. O que diz “sim” todos os dias, mesmo quando o outro está insuportável – e, convenhamos, isso é frequente.

Ele desmonta a ideia moderna de que liberdade é ausência de vínculos. Pelo contrário: só é livre quem se prende voluntariamente àquilo que tem valor eterno. Um homem sem amarras é só um cão sem dono. O amor, portanto, só é verdadeiro quando tem cerca. Só se ama de verdade quando se renuncia a todas as outras opções – e isso é escândalo para o narcisismo moderno.

Chesterton diz que a grande tragédia do mundo moderno não é que os homens não amem – é que amam sem coragem, sem seriedade, sem altar.

Olavo de Carvalho – O amor como guerra espiritual

E agora o meu professor: Olavo. Com ele, o amor deixa de ser categoria afetiva e vira batalha ontológica. O amor verdadeiro, dizia ele, é aquele que se ancora na realidade, e não nas projeções do desejo mimado.

Olavo denunciava com veemência a cultura do afeto autocentrado. Para ele, a “afetividade moderna” era puro sentimentalismo, masturbação emocional, incapaz de sustentar um casamento, criar filhos ou enfrentar a morte. O amor virou “sensação”, quando deveria ser força estruturante do ser.

Amar é um ato da inteligência espiritual, não do estômago emocional.”

E mais: amar alguém exige conhecimento de si mesmo e da realidade objetiva. Sem metafísica, não há amor – só neurose. O amor é possível quando há verticalidade, quando o ser humano sabe que é criatura, limitado, pecador e, mesmo assim, capaz de doar-se.

Ele dizia que o primeiro gesto de amor verdadeiro é o reconhecimento da hierarquia do ser. O narcisismo moderno tenta abolir isso, e assim destrói o próprio chão onde o amor poderia nascer. Para Olavo, todo amor que não tem Deus como fundamento é veneno com sabor de mel.

Joseph Ratzinger (Bento XVI) – O amor como caritas, doação divina

Ratzinger é a voz mais serena e mais profunda dessa lista. Em sua obra Deus Caritas Est, ele reconcilia eros e ágape — desejo e doação, como já disse acima. Ele não os separa, mas os purifica e ordena. O amor humano, diz ele, é bom, mas precisa ser elevado.

O amor entre homem e mulher, quando é verdadeiro, leva além de si mesmo: leva a Deus.”

O eros que se fecha em si vira luxúria, possessão, destruição. Mas o eros que se abre ao ágape torna-se caminho de salvação. O amor conjugal, então, não é obstáculo à santidade – é meio. E isso vale também para a amizade, a família, o amor ao próximo.

Ratzinger é claro: o amor só é real quando assume a forma de cruz. Do contrário, é só desejo travestido de virtude.


CÁ ENTRE NÓS E DO ABISMO À MESA: o amor na prática é sempre ao contrário?

Contestando a afirmação do meu falecido amigo, o cantor Cazuza: como amar de verdade neste mundo degenerado?

1. Escolha alguém que também esteja disposto a morrer para si

Se você ama alguém que está em adoração permanente de si próprio, corra. Não é amor, é campo de batalha narcísica. O amor exige duas almas dispostas à verdade e ao sacrifício.

2. Não espere “sentir”. Decida.

Amor verdadeiro não é impulsivo. É ato de vontade, repetido diariamente. Quem só ama quando sente, já está com outro pé fora da porta.

3. Estabeleça ritos

Rotina não mata o amor, mantém-o aceso. Jantar à mesa, oração juntos, silêncio partilhado, olhar atento. Amor sem rito vira fast-food, e quem está disposto a encarar um “podrão” durante vinte anos?

4. Fuja das telas

O amor morre nos detalhes. E os detalhes desaparecem quando você vive com a cara enfiada no celular – ou se casa com um jornalista, acrescento meio brincando, meio sendo verdadeiro. O demônio moderno mora nas notificações, não se esqueça.

5. Sofra com dignidade

O amor vai doer. A outra pessoa vai te ferir. Você vai decepcioná-la. Mas essa dor é parteira da maturidade. Quem foge da dor, nunca chega ao amor verdadeiro.

6. Eduque para a eternidade

Se você ama alguém, seu objetivo não é fazê-la feliz – é ajudá-la a salvar a alma. Amar é preparar o outro para encontrar Deus, todo o resto é circo.


RESUMO PRÁTICO: COMO AMAR NA ERA DO DESCARTE

  1. Escolha alguém disposto a morrer para si. Narcisistas são bons de cama, mas péssimos de eternidade.

  2. Não espere sentir. Decida. Sentimento vem depois da escolha.

  3. Estabeleça ritos. O amor se sustenta na liturgia do cotidiano.

  4. Fuja das telas. Como já disse, o demônio mora nas notificações.

  5. Sofra com dignidade. O amor vai doer. Aceite isso ou case com um travesseiro.

  6. Eduque para a eternidade. Amar é preparar o outro para encontrar Deus.

Por fim, creio não ser demais e tampouco soar piegas publicar algumas pulsações de um coração que já bateu verdadeiramente por alguém. Diante de todo o palavrório que destilei acima, sempre será bom deixar claro que o verdadeiro amor é aquele que nos coloca prontos para morrer – de verdade – pela pessoa amada, oferecer sua vida pela dela, abdicar de sua felicidade pelo sorriso que o cativou, enxergar o brilho naqueles olhos – os benditos olhos, que jamais serão esquecidos:


ORAÇÃO PELA MULHER AMADA

Senhor dos corações inquietos e das promessas eternas,
diante de Ti coloco o nome dela, como fosse incenso no altar.

Tu a criaste em segredo, lapidando uma pérola no ventre do tempo.
Eu a encontrei já feita mas antes grão, já linda mas antes bela, já misteriosa mas antes inocente.

Confesso, tremi.

Não permitas que eu a ame como o mundo ama – com olhos de devorador,
mas como Tu a sonhaste: com reverência, com temor e fogo justo.

Livra-me de ser um menino apaixonado por espelhos.
Livra-me de fazer dela um ídolo, ou de tratá-la como simples prazer.
Dá-me a coragem de vê-la com os olhos da eternidade.

Que eu a proteja sem dominá-la,
que eu a conduza sem oprimi-la,
que eu a deseje sem corrompê-la,
que eu a admire sem me curvar.

Que o meu amor seja mais cruz que abraço,
mais silêncio que discurso,
mais pão que poesia.

Ensina-me a morrer um pouco todos os dias, para que ela viva mais plenamente.
E que, no fim, quando estivermos velhos e já quase do lado de lá,
ela possa dizer:
" Fui amada como se ama o sagrado: com força, com verdade, com Deus no meio."

Amém.


TRATADO BREVE PARA A MULHER AMADA

I. Não te amo com a pressa dos fracos, mas com a paciência dos eternos.

O amor que tenho por ti não é fome, é vocação.
Não me aproximo de ti como um lobo farejando carne, mas como um homem buscando uma alma.
Se te amo, é porque reconheço em ti um eco de algo que vem do Alto.
Tu não és minha, e por isso mesmo posso te amar com liberdade.

II. Não quero que sejas um espelho, mas um mistério.

Não me atraio por ti porque te entendo – mas porque não te entendo.
És outra, e nisso reside tua beleza.
Não desejo te moldar à minha imagem, mas me despojar para te merecer.
Não quero que completes meu ego – quero que me desafies a sair de mim.

III. Não te prometo um amor fácil, mas um amor verdadeiro.

Sim, vou falhar contigo. E tu comigo.
Mas prometo levantar depois de cada queda com mais fé do que orgulho.
Prometo não fugir quando tua beleza escurecer, ou tua alegria silenciar.
Porque te amo com os pés no chão, e o coração no alto.

IV. Quero te conduzir, não te arrastar.

Se caminho à tua frente, é para abrir caminho.
Se caminho ao teu lado, é para proteger-te.
Se caminho atrás, é para empurrar-te
no vacilo.
Mas em todos os casos,
caminho contigo. E com Deus entre nós.

V. Amar-te é minha penitência, minha honra e minha aventura.

Não preciso de ti para ser feliz – mas contigo, a felicidade se torna possível.
Te amo não porque preciso, mas porque escolhi.
Te amo não com emoção passageira, mas com o peso da eternidade.
E te digo, olhando firme nos teus olhos:

Se Deus permitir, serei teu homem até o último suspiro.
E mesmo depois dele, serei ainda tua lembrança – firme, presente, eterna.


AO FIM E AO CABO

Quem ama de verdade morre de pé, com os olhos voltados ao céu e os pés fincados no chão. O amor não é fuga, não é posse, não é reflexo. É cruz, é altar, é combate. E como dizia um santo antigo: Amar é olhar para o outro e dizer: Tu não morrerás.

Que o mundo nos chame de loucos. Que Pessoa nos chame de ingênuos. Mas entre o niilismo elegante e a santidade oculta, ficamos com a cruz.

Fernando Pessoa foi um grande poeta, um dos maiores da língua portuguesa.

Mas jamais amou ninguém.

Amar é morrer de pé – e ressuscitar junto.


Walter Biancardine



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