Qualquer ser humano se aborrece quando escreve algo pensado, ponderado – grave e profundo, mesmo – e a seriedade do que expôs não é compreendida obtendo, em resposta, algumas palavras de consolo, estímulo ou mesmo críticas, sem que as houvesse pedido.
Tais contratempos, eventuais na vida dos indivíduos, tornam-se uma constante quando nascemos com o incômodo traço de personalidade que nos leva a sempre perguntar o porquê de tudo, a buscar a verdade primeira e a expressá-la com as palavras exatas, cuidadosamente escolhidas para que não existam interpretações dúbias – estas pessoas adotaram, conscientemente ou não, a filosofia como modo de vida.
Sim, a filosofia é um modo de vida e nunca uma profissão. Quem assim se intitula não passa de um arrogante pretensioso pois, já dizia meu professor Olavo de Carvalho, “o verdadeiro filósofo filosofa para sua própria salvação”.
Assim, tal traço de personalidade – que, nos dias de hoje, mais soa como um desvio irritante de caráter – nada mais é do que o resultado da liberdade que alguns adultos se deram ao manter uma das principais e melhores características humanas, manifestadas a princípio na juventude de seus cinco, seis anos de vida – sim, crianças nascem com o germe da filosofia, é a “idade dos porquês” e quem é pai ou mãe bem sabe disso.
Abro aqui um parêntese para recordar minha infância, repelido de quaisquer círculos de conversas adultas (que eu adorava imiscuir-me) pelo meu deseducado hábito de sempre perguntar – “Mas, por quê?”
Tão exasperante era esta minha característica que, em boa hora, minha mãe lembrou-se da enorme enciclopédia “Tesouro da Juventude”, cujos fascículos colecionara dedicadamente de 1956 até 1960, a fim de saciar a mesma sede de porquês (embora infinitamente menor, ou seja, uma sede normal) de meus irmãos mais velhos. E tais volumes foram meus “amigos imaginários” da infância, cujos ensinamentos reli incontáveis vezes, principalmente seu conveniente tópico, o “Livro dos Porquês” – para alegria e sossego de meus pais e irmãos.
Tal enciclopédia abriu-me as portas para, ao fim e ao cabo, com menos de 13 anos de idade já haver lido toda a vasta biblioteca que dispúnhamos em casa, pouco me importando se os livros abordavam temas adultos (sic) como sociologia, política (e mesmo aí cabe um Shakespeare, os Anais de Tácito, etc.) ou ainda voltados à medicina, psicologia e direito – verdadeiro cupim de livros, a tudo devorei, quis mais e meu contágio pelo germe da alta cultura tornou-se irreversível. Cresci e a patologia permaneceu: praia de dia, Platão de noite – ou Platão de dia mesmo, a depender de quem estivesse lá no Posto 4, em Copacabana.
Pessoas com a mesma trajetória de vida pagam um preço e ele é cobrado de duas formas: primeiramente, seus dias serão escassos de amigos, companhias, gente em torno – na verdade os interesses deslocam-se, deslocando também os assuntos e conversas; as amizades, se não impossíveis, tornam-se raras e difíceis. E, em segundo lugar, quem muito quer saber precisa igualmente muito bem saber expressar o que aprendeu, e aí entra o inevitável mergulho de cabeça na língua portuguesa e seus luminares. Adicione-se a isso a precisão no expressar-se, exigida por qualquer tese ou mesmo pensamento, criado desde jovem em cultura filosófica (ou mesmo para os que se aventuram na área jurídica), e você certamente ficará bastante irritado quando seus interlocutores não derem o devido peso e significado a cada palavra que você escolheu, ainda que manifestando um sentimento aparentemente banal como, por exemplo, “- Estou no limite de minha solidão”.
Ora, fosse banal para mim e eu não o manifestaria!
A absoluta maioria das pessoas se valeria da expressão acima apenas para dizer que está sentindo falta de uma namorada/namorado, que os amigos estão longe há tempos e que uma mistura de vazio e tédio os irrita, ou ainda outras desventuras de nossas vidas sociais ou mesmo amorosas.
Mas não aqueles que trilharam o mesmo tortuoso caminho intelectual que eu: a palavra “limite” é literal, expressa horas, dias, meses ou anos sofrendo, cumulativamente, os efeitos psicológicos e emocionais que tal condição impõe e nossa inevitável incapacidade de continuar lidando com isso, racionalmente, dentro de pouco tempo. Um fusível psíquico queimado será algo certo de acontecer, não se trata de usual desabafo, tal como um “estou de saco cheio” que, à primeira vista e normalmente, todos interpretariam.
Do mesmo modo emprego a palavra “solidão” tendo o significante apontado, explicitamente, para o significado: um cotidiano sem seres humanos interagindo, sem um trivial “bom dia” ou – pior – sem tê-los em seu campo de visão, para assegurar que você ainda vive em um planeta habitado. As consequências em seu estado emocional e psíquico sempre serão quase impossíveis de avaliar, por terceiros, dado que pouquíssimos seres humanos neste planeta enfrentaram – compulsoriamente, não por livre desejo de isolar-se – tal deserto em suas vidas.
Até recentemente atrevia-me, ainda, a escrever sobre temas de minhas desventuras pessoais, mas os aboli tão logo dei-me conta do quanto de autopiedoso e narcisista tal comportamento se afigurava. Entretanto e por óbvio, não apenas em meus antigos queixumes tencionava eu empregar a palavra exata, o termo preciso e insubstituível – cheguei mesmo a escrever artigo no qual ressentia-me do desconhecimento em línguas estrangeiras, por impedir-me redigir com a mesma pontaria que possuo, na língua portuguesa – mas tais termos, precisos e exatos, igualmente uso ao compor (é a palavra certa: textos são compostos, não escritos. Precisam de métrica, ritmo, sonoridade e conteúdo) meus artigos sobre política, sociologia, filosofia ou teologia.
Creio que, para aqueles dotados de infinita paciência e que acompanham meus escritos há anos, seja algo de fácil identificação o momento em que escrevo algo sério ou – também sou humano – apenas divirto-me, publicando descalabros e bobagens diversas nas redes sociais. A diferença de “clima”, de ritmo ou, por vezes, até de linguagem são evidentes, quero crer que ninguém fará tal confusão – embora, quando da publicação de meu livro “Pretérito Perfeito”, algumas pessoas tenham me perguntado se tentei me suicidar ou, pasmem, se o governo militar havia me perseguido.
A intenção deste artigo é, em suma, pedir aos mesmos seres excepcionais, dotados de paciência infinita para lerem o que escrevo, que entendam os artigos que produzo sempre em seu sentido literal – raramente usarei expressões de “sentido figurado” e, se o fizer, as destacarei com as devidas aspas.
Ao lerem meus artigos, peço que assim façam lembrando-se de Maria Bethania e seu “Grito de Alerta”:
Veja bem, eu usei a palavra mais certa,
Vê se entende o meu grito de alerta.
Walter Biancardine
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