“Afirmar um deus único é confessar
intolerância e aderir, quer se queira quer não, ao ideal
teocrático. No plano mais geral, as doutrinas da Unidade pertencem
ao mesmo espírito: mesmo quando utilizam ideias anti-religiosas,
seguem o esquema formal da teocracia, se reduzem mesmo a uma
teocracia secularizada. O proselitismo tirou grande partido dos
sistemas "retrógrados", dos quais só rejeitou o conteúdo
e as crenças, para melhor adotar o arcabouço lógico, a forma
abstrata.”
(Emil Cioran)
O texto acima, uma proposição do
filósofo romeno Emil Cioran, afirma que a crença em um deus único,
longe de ser apenas uma questão teológica, carrega consigo uma
estrutura de pensamento que conduz à intolerância e à teocracia. A
ideia central é que qualquer doutrina que afirme uma única verdade
absoluta (seja religiosa ou não) acaba seguindo um modelo
autoritário semelhante ao da teocracia, ainda que de maneira
secularizada.
Além disso, ele argumenta que os
movimentos religiosos ou ideológicos frequentemente rejeitam somente
os conteúdos tradicionais das crenças antigas, mas mantêm intacta
sua estrutura lógica e sua tendência ao dogmatismo. Isso implica
que mesmo os sistemas, supostamente laicos e “modernos” –
ideologias – podem reproduzir idênticos mecanismos de dominação
e intolerância das religiões monoteístas, que dizem superar.
Em resumo, o texto faz uma crítica
às doutrinas de "Unidade" – tanto religiosas quanto
seculares – por, segundo ele, perpetuarem uma lógica teocrática e
autoritária, ainda que sob disfarces diferentes.
Trazendo razão ao atormentado
Cioran -
O argumento apresentado contra o
monoteísmo se baseia em uma confusão conceitual entre a unidade da
verdade e a imposição autoritária. Defender um Deus único não
significa aderir automaticamente à intolerância ou à teocracia,
mas sim reconhecer uma ordem objetiva da realidade. Se há um
Criador, há uma verdade última, e negar isso em nome de uma suposta
pluralidade absoluta leva não à liberdade, mas descamba no
relativismo total e, ironicamente, no caos intelectual e moral.
A acusação de que toda afirmação
de unidade culmina em tirania ignora a distinção fundamental entre
“verdade” e “poder”.
Verdade -
O cristianismo, e em especial a
tradição católica, não impõe a fé pela força, mas a propõe
pela razão (vide Santo Tomás de Aquino e tantos outros Doutores da
Igreja) e pela revelação. A Igreja sempre distinguiu entre a ordem
espiritual e a ordem temporal, reconhecendo a autonomia do poder
civil. A própria história do Ocidente testemunha que as sociedades
que mais floresceram em liberdade, ciência e cultura foram aquelas
enraizadas no cristianismo, justamente porque compreenderam que a
unidade da verdade não anula a essência da consciência individual.
Poder -
Afirmar que sistemas seculares
herdaram a "forma lógica" da teocracia erra apenas no fato
de atribuir ao cristianismo uma culpa que pertence, na verdade, ao
espírito revolucionário moderno – o “plágio” descarado de
Karl Marx por sua vez, pode e deve ser citado, justificando parte do
título deste artigo, “Imitação e Atraso”.
Foram os sistemas ideológicos
modernos – comunismo, fascismo e outros totalitarismos – que
secularizaram um messianismo político, eliminando Deus para colocar
no lugar o Estado ou o partido, sempre encarnados na figura de um
único e todo-poderoso Líder. A fé católica sempre afirmou que a
salvação não vem de um poder terreno, mas de Deus e, neste
momento, cabe pequena digressão sobre a prova evidente desta
imitação: o “culto à personalidade” dos sistemas comunistas e
socialistas.
O culto à
personalidade -
Nada mais é do que o velho
espetáculo autoritário, em que um líder político é elevado à
condição de figura messiânica, infalível, quase divina. Ele não
apenas governa, mas se torna um símbolo absoluto da pátria, do
partido e do futuro glorioso da revolução. A propaganda estatal o
transforma em uma entidade acima do bem e do mal, incensada pela
mídia oficial, pela educação doutrinária e pela cultura
estatalizada. O resultado? Uma população doutrinada a venerar um
indivíduo, como se ele fosse a encarnação do próprio destino
nacional.
Essa prática foi emblemática em regimes como o
de Stalin na União
Soviética, Mao
Tsé-Tung na China,
Kim Il-Sung na
Coreia do Norte,
Fidel Castro em
Cuba, entre
outros. Fotos do líder em cada esquina, discursos eternos em rede
nacional, crianças recitando suas máximas como orações,
intelectuais bajulando suas "grandes obras" e qualquer
crítica sendo tratada como traição. Não é à toa que a figura do
"grande líder" é cercada por mitos absurdos: Stalin como
gênio supremo da estratégia, Mao como sábio celestial e Kim
Jong-il como “o cara que acertava hole-in-one” no golfe, toda vez
que jogava. Sim, acreditem.
Na prática, esse culto serve a dois propósitos
principais:
Justificar a ditadura – Se
o líder é um ser excepcional, quem poderia contestá-lo? A
oposição é automaticamente inimiga do povo.
Eliminar qualquer senso crítico
– Se a verdade vem do líder, questioná-lo é questionar a
própria realidade.
Os sistemas comunistas e socialistas se apoiam
nesse mecanismo porque, sem ele, suas promessas utópicas desmoronam
rapidamente. Quando a economia falha, a liberdade desaparece e o povo
começa a perceber que a igualdade prometida nunca chega, a única
saída do regime é criar um ídolo infalível para mascarar o
desastre. Afinal, se o chefe é perfeito, qualquer problema só pode
ser culpa de sabotadores, imperialistas ou traidores internos.
O culto à personalidade é um sintoma clássico
do autoritarismo, não importa o rótulo ideológico. O comunismo, no
entanto, o transformou em arte, usando-o como principal anestesia
para manter o povo hipnotizado e submisso.
O “horror à verdade” -
Rejeitar a unidade em nome de um
suposto pluralismo absoluto é abrir caminho para um mundo onde
nenhuma verdade pode ser sustentada, e onde qualquer imposição –
mesmo a do relativismo – se torna tirânica. Impossível ao homem
de juízo temer a unidade da verdade mas deve, antes, celebrá-la, pois
nela se encontra a harmonia da razão, da ordem e da liberdade
autêntica.
A obsessão em rejeitar a verdade ou
o absoluto origina-se de várias raízes, mas todas convergem para um
problema essencial: a tentativa de libertar o pensamento de qualquer
amarra, ainda que ao custo da própria razão.
Primeiro, há a rebeldia contra a tradição:
desde Descartes, passando pelos empiristas e culminando nos
pós-modernos, há um esforço constante para demolir qualquer
estrutura conceitual herdada. O absoluto, sendo o sustentáculo das
grandes civilizações e religiões, torna-se o alvo preferencial. E
por quê? Porque admitir verdades universais significa reconhecer que
há, sim, limites para a subjetividade humana; que existem princípios
que não dependem da moda intelectual do momento e, para muitos, isso
é intolerável.
Depois, há a influência do relativismo e do
historicismo. Nietzsche, Heidegger e Foucault são as vedetes,
verdadeiras “celebrities” dessa vertente, que encara a verdade
como um produto histórico, um discurso de poder, uma construção
social. É a velha máxima: “quem controla a verdade, controla o
mundo”. Se a verdade não passa de um jogo de linguagem, então
nada é fixo, tudo pode ser moldado conforme interesses de época. É
uma maneira astuta de justificar ideologias sem precisar lidar com
critérios objetivos – e certamente o amigo leitor já fez suas
devidas analogias.
E, claro, não podemos ignorar a simples covardia
intelectual. A verdade absoluta exige compromisso, esforço e até
sacrifício. É muito mais fácil se refugiar no relativismo
confortável, onde tudo é interpretável, tudo é fluido, nada
precisa ser levado às últimas consequências. Assim, a academia
moderna virou um grande baile de máscaras, onde cada um dança
conforme a música da subjetividade, evitando o peso das grandes
questões e, obviamente, seu compromisso com as mesmas.
Mas eis o problema: a verdade pode ser negada,
contestada, relativizada, mas nunca extinta. O real se impõe.
Pode-se passar séculos desconstruindo conceitos, mas, no fim das
contas, a gravidade continua puxando para baixo, o tempo continua
passando e os imbecis, coletivos ou não, continuam tropeçando na
própria inconsistência. E desta sina o velho Emil não escapou.
Quem é, afinal, Emil Cioran?
O atormentado romeno é um daqueles
pensadores que fascinam e, ao mesmo tempo, incomodam qualquer um que
tenha uma visão de mundo sólida e bem enraizada, especialmente sob
a ótica cristã e conservadora. Sua filosofia é marcada por um
niilismo quase fanático (!), um desencanto absoluto com a existência
e uma recusa categórica em aceitar qualquer sentido para a vida. Ele
não apenas duvida, mas debocha de qualquer esperança, de qualquer
fé, de qualquer estrutura que forneça ao homem um chão firme para
pisar.
Ora, para um cristão, o que pode haver de mais
contrário à verdade do que essa exaltação da desesperança?
Cioran é um adversário direto da esperança cristã, da crença na
redenção e da noção de Providência divina. Se para o
cristianismo o sofrimento tem um propósito e pode ser santificado,
para Cioran o sofrimento é um fardo inútil, um peso absurdo que nos
foi lançado sem motivo. Ele despreza a cruz e vê na existência um
erro, um acaso infeliz. Seu pessimismo radical o aproxima de
Schopenhauer, meu parceiro alemão, mas sem a nobreza estética do
germânico — Cioran é ácido, cínico e deliberadamente corrosivo.
Do ponto de vista conservador, há um problema
ainda maior: Cioran não apenas rejeita a fé, mas também despreza
qualquer tradição, qualquer laço com o passado que ofereça
identidade e continuidade ao homem. Considero que seu pensamento seja
um verdadeiro veneno para qualquer sociedade que deseje se manter de
pé, porque, no fundo, ele prega um ceticismo absoluto, um
desmoronamento de tudo o que mantém uma civilização unida. Se todo
sentido é uma ilusão e toda convicção é um delírio, como pode
uma cultura sobreviver? O conservadorismo se sustenta sobre a
transmissão de valores e a fidelidade a princípios perenes, mas
Cioran derrama ácido sulfúrico sobre qualquer pilar que se pretenda
duradouro.
Ainda assim, há nele algo que não pode ser
ignorado: a força de seu maldito estilo. Cioran não é um pensador
sistemático, mas um infeliz mestre da aforística, um escritor de
talento avassalador, para o mal ou para o bem – no caso, para o
mal. Sua lucidez sombria fascina justamente porque toca em algo que
todo homem experimenta em algum momento: a dúvida, o desencanto, o
esgotamento espiritual. A leitura de Cioran pode servir como uma
droga, alienando o pobre discípulo da realidade e conduzindo-o ao
prazeiroso nada, justificador do fracasso pessoal de cada um, ou como
exercício de imunização – uma espécie de vacina filosófica: ao
contemplar o desespero em sua forma mais pura, o cristão pode
reafirmar sua fé, e enxergar ainda mais claramente a necessidade de
Deus e da graça.
Em suma, Cioran é um demolidor. Sua obra não
constrói, apenas esfacela certezas. Para o cristão e o conservador,
sua leitura deve ser feita com (muita) cautela, nunca como um guia,
mas como um alerta. Ele nos mostra até onde pode chegar a alma que
rejeita Deus e abandona qualquer laço com a transcendência.
No fim, Cioran não tem respostas — apenas um
riso amargo diante do abismo.
Tal como muitos paisanos, nos dias atuais.
NOTA DO AUTOR: À título de correta
mensuração de seus danos, cito alguns filósofos que foram, por
ele, influenciados: Milan Kundera, Luiz Felipe Pondé, Fernando
Savater – este último, objeto de recente artigo meu.
Walter Biancardine