Há um instante, sempre há, em que a memória engana o tempo e faz a realidade brincar de nostalgia.
Hoje, ao andar pela cidade, vi um vinho na vitrine de uma loja e
senti uma presença antiga e familiar. Era um daqueles momentos que
têm cheiro, som, e até textura, como se eu estivesse novamente na
velha cozinha, assistindo alguém que misturava risos e temperos com
a mesma habilidade e silêncio com que pairava por sobre o comum dos
mortais.
Recordo o ritual: com precisão quase cirúrgica,
escolhia-se a taça certa, avaliava-se a cor do vinho com um olhar
atento, sempre meio séria, mas com um brilho de satisfação
impossível de não se notar. Eu, agarrado em textos e crônicas,
imaginava que toda essa análise não fazia sentido – afinal, o que
importava era o sabor, não?
Mas você sabia. E ensinou-me
a ver a beleza no detalhe, a apreciar a vida em suas pequenas
delicadezas como aquele vinho que, para mim, era apenas mais uma
garrafa mas que, para você, era um universo a ser explorado – sim,
“eu mereço!”
Sempre me pergunto quantos outros
universos deixei de notar, preocupado demais com as banalidades do
cotidiano e egoísmos. Quanto de nós ficou guardado como esse vinho,
à espera de um “depois”, para ser aberto, degustado,
compreendido?
Não, não se trata de voltar no tempo ou de
reviver o que ficou para trás. Certamente somos diferentes agora, e
isso é parte do que a vida exige de nós – mudança, aprendizado.
Mas gostaria que soubesse que guardo, com carinho, tudo o que fomos e
vivemos juntos.
Hoje, o tempo passou e não mais podemos brindar novamente.
Pudesse, brindaria – não ao passado ou ao futuro, mas ao que somos
hoje, à sabedoria que o tempo nos deu, e à gratidão por termos, em
algum momento, compartilhado a mesma taça.
Se a memória
é feita de instantes, que este seja mais um a nos lembrar que, mesmo
separados, um brinde restou por fazer: um brinde à sua saúde, às
suas conquistas, e ao que aprendemos – cada um de nós – sobre
como ver a vida com olhos diferentes.
Afinal, você sempre soube que o vinho, assim como a vida, merece ser apreciado com calma, e não apenas bebido às pressas.
Al di la.
Walter Biancardine
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