segunda-feira, 26 de agosto de 2024

O VINHO QUE FICOU NA TAÇA - DESPEDIDA


Há um instante, sempre há, em que a memória engana o tempo e faz a realidade brincar de nostalgia.  

Hoje, ao andar pela cidade, vi um vinho na vitrine de uma loja e senti uma presença antiga e familiar. Era um daqueles momentos que têm cheiro, som, e até textura, como se eu estivesse novamente na velha cozinha, assistindo alguém que misturava risos e temperos com a mesma habilidade e silêncio com que pairava por sobre o comum dos mortais.

Recordo o ritual: com precisão quase cirúrgica, escolhia-se a taça certa, avaliava-se a cor do vinho com um olhar atento, sempre meio séria, mas com um brilho de satisfação impossível de não se notar. Eu, agarrado em textos e crônicas, imaginava que toda essa análise não fazia sentido – afinal, o que importava era o sabor, não?

Mas você sabia. E ensinou-me a ver a beleza no detalhe, a apreciar a vida em suas pequenas delicadezas como aquele vinho que, para mim, era apenas mais uma garrafa mas que, para você, era um universo a ser explorado – sim, “eu mereço!”

Sempre me pergunto quantos outros universos deixei de notar, preocupado demais com as banalidades do cotidiano e egoísmos. Quanto de nós ficou guardado como esse vinho, à espera de um “depois”, para ser aberto, degustado, compreendido?

Não, não se trata de voltar no tempo ou de reviver o que ficou para trás. Certamente somos diferentes agora, e isso é parte do que a vida exige de nós – mudança, aprendizado. Mas gostaria que soubesse que guardo, com carinho, tudo o que fomos e vivemos juntos.

Hoje, o tempo passou e não mais podemos brindar novamente. Pudesse, brindaria – não ao passado ou ao futuro, mas ao que somos hoje, à sabedoria que o tempo nos deu, e à gratidão por termos, em algum momento, compartilhado a mesma taça.

Se a memória é feita de instantes, que este seja mais um a nos lembrar que, mesmo separados, um brinde restou por fazer: um brinde à sua saúde, às suas conquistas, e ao que aprendemos – cada um de nós – sobre como ver a vida com olhos diferentes.

Afinal, você sempre soube que o vinho, assim como a vida, merece ser apreciado com calma, e não apenas bebido às pressas.

Al di la.


Walter Biancardine










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