quarta-feira, 7 de maio de 2025

NAHASH: INTROSPECÇÃO É UM EGO QUE SE CONTEMPLA?

 


Todos conhecem – ou, ao menos, deveriam conhecer – a passagem bíblica onde a serpente oferece à Eva a maçã, para que comesse o fruto proibido e soubesse o bem e o mal, sendo igual a Deus.

Tal passagem, entretanto, esconde diversos detalhes fora do alcance do cristão mediano, ou mesmo da maioria dos diletantes que, eventualmente, folheiam a Bíblia. Nos parágrafos abaixo levanto alguns questionamentos que julgo interessantes ter em mente, para uma maior compreensão daquelas linhas – do nome da serpente em hebraico – Nahash, que tanto significa “serpente” quanto “voltar-se sobre si mesmo” física e psicologicamente – até sua correlação com a introspecção e mesmo (no meu caso) com a solidão, por vezes causadora da mesma.

Em meu ponto de vista, a serpente foi escolhida – entre outros simbolismos – por sua malignidade e pela capacidade de dobrar-se sobre si mesma, voltar à si que, como disse, interpreto como "introspecção". Teria sido a desobediência de Eva uma "introspecção" da mesma, ao refletir e julgar - de acordo com si própria – que seria bom comer a maçã e saber o que é bom e mal? E mais: seria este ato, "saber", somente isso ou esta seria uma narrativa sutil para "determinar" o que é bom ou mal? A introspecção seria, de alguma forma, mal vista nos primeiros Livros?

É o que veremos.

Nahash, a introspecção e o pecado de Eva – entre o julgamento e a queda

Desde os primórdios da Revelação, a figura de Nahash, a serpente do Éden, carrega um simbolismo pesado, denso, quase viscoso. Não é apenas um bicho rastejante que um dia falou com Eva – isso seria alegoria simplória. Estamos diante de um ícone do intelecto corrompido, da astúcia preternatural, e – como observei – da capacidade de se voltar sobre si, de se enroscar, de fazer de si mesma o seu próprio horizonte. E aqui reside o ponto-chave: a introspecção que fecha o mundo em si.

A serpente é um símbolo ancestral e ambíguo. Em muitas culturas, é sabedoria; noutras, é veneno. Mas na tradição hebraica, e depois cristã, ela é a voz do cisma, a boca do engano, a oferta da autonomia que repele a Lei. O que ela oferece não é apenas o fruto – é o princípio de autonomia moral, o direito de Eva tornar-se “como Deus”, decidindo por si mesma o que é bem e mal.

Aqui entramos na tese que pretendo expor: seria essa escolha uma forma de introspecção? Sim, e perigosamente sim. Eva olhou para dentro, julgou a fala da serpente com seu próprio critério, e decidiu. Não obedeceu, interpretou; não creu, comparou. E ao fazer isso, rompeu com o princípio mais basal da fé: a confiança na ordem externa, na hierarquia recebida.

A introspecção como gênese da rebelião

A introspecção, no sentido moderno, romântico e pós-cartesiano, é quase sempre celebrada como virtude. Mas nos cânones antigos, tanto patrísticos quanto veterotestamentários (do Velho Testamento), ela era vista com muita desconfiança. A alma, deixada a si mesma, é uma floresta sombria. Não é à toa que os monges do deserto diziam: foge da tua própria opinião como foges da serpente. Veja só a ironia: fugir da serpente é fugir da própria opinião.

Quando Eva decide, introspectivamente, que aquilo é "bom para comer", "agradável aos olhos" e "desejável para adquirir sabedoria", ela assume o papel de legisladora moral. Isso é modernidade avant la lettre. Ou seja, não se trata apenas de “saber” o bem e o mal, como quem lê uma enciclopédia. Trata-se de determinar, ou pelo menos de se posicionar como igual a Deus nesse julgamento – uma precursora, séculos à frente, do Iluminismo.

O texto é claro: “sereis como deuses, conhecedores do bem e do mal”. Mas o hebraico pode sugerir também “determinadores” do bem e do mal, como quem edita uma nova versão da Lei, agora centrada no próprio umbigo.

A serpente: símbolo da introspecção caída

É fato que a serpente se enrola em si mesma, mas isso também é metafísico. O mal não é criativo – ele é reflexivo ao ponto de se tornar narcisista. Ele não sai de si, não reconhece um princípio externo, superior. A serpente é o intelecto fechado, a razão sem humildade, o logos sem telos. Ela oferece a Eva não o saber em si, mas o saber sem guia, o saber como posse, o saber como soberba.

Eva, ao ceder, pratica a primeira forma de existencialismo egoísta. Ela não pergunta a Deus, não consulta Adão, não reflete na comunhão dos santos – ela ouve, vê, decide. Isso é introspecção, sim. Mas é a introspecção herética, a que se volta para si não para corrigir-se, mas para julgar o mundo.

Introspecção ou confiança?

Os antigos Padres, sobretudo Santo Antão, São Basílio ou Santo Atanásio, deixaram claro que o maior perigo da alma não é o mundo, mas o próprio pensamento solto, sem guia, sem mestre, sem oração. A serpente sussurra dentro, e o pecado começa quando damos ouvidos a esse sussurro interno como se fosse oráculo.

Portanto, sim, a desobediência de Eva pode ser lida como um gesto de introspecção – mas de uma introspecção que se fez trono, um trono usurpado. Não é à toa que Cristo, o novo Adão, faz o caminho oposto: Ele obedece até a morte, não faz da sua vontade um critério absoluto, mas submete-se ao Pai.

Introspecção pode ser virtude, se for penitente. Mas quando é soberana, quando se fecha em si como a serpente que se morde o rabo, então é desgraça. É o Éden que se fecha para sempre.

Temperando um pouco mais a sopa:

A "introspecção" nos dias de hoje, para o homem moderno e que, por vezes, vê-se em posição solitária, de abandono e inevitavelmente volta-se sobre si mesmo, é quase um disfarce chique para uma série de problemas. Isso pode levá-lo a entender sua verdadeira força, sua resistência às adversidades e mesmo aproximá-lo com Deus, mas igualmente pode descambar para um excesso de auto-confiança e bloqueios em sua capacidade de socializar – até por enxergar o próximo sempre como alguém incapaz de atingir as profundidades que ele, via sofrimento e solidão, atingiu.

É o narcisismo existencial travestido de profundidade espiritual.

A introspecção moderna: espelho ou abismo?

O homem moderno, arrancado de suas raízes, sem comunidade verdadeira, sem família extensa, sem tradição viva, foi jogado nu no deserto da subjetividade. E o que ele fez? Sentou-se no chão da alma e começou a escavar. Chamaram isso de “autoconhecimento”, de “busca interior”, de “caminho espiritual”. Mas o que muitas vezes acontece é uma masturbação psicológica: o sujeito se contempla como um abismo cheio de ecos e acredita que, por ouvir sua própria dor repetida mil vezes, crê haver chegado à verdade.

Claro, há mérito no sofrimento que não reclama, na solidão que forma caráter. Como disse acima, às vezes é nesse silêncio imposto que o homem reencontra a força, a essência, e até ouve Deus – porque Deus fala baixo, e o mundo grita alto. Há santos que se fizeram no deserto, mártires que foram esculpidos pela ausência. Mas, atenção: o risco maior não está no deserto, mas na tentação de se crer faraó depois de atravessá-lo como peregrino.

A falácia do eleito pelo sofrimento

O homem que sofre sozinho, que enfrenta a si mesmo pode, sim, adquirir sabedoria. Mas também pode adquirir arrogância disfarçada de lucidez. Ele olha os outros e pensa: “Esses aí vivem na superfície, são banais, não me alcançam.” Pronto. Está feita a cisão entre ele e o mundo. A introspecção, que deveria gerar humildade, gera soberba. O deserto, que deveria conduzir à comunhão com Deus e ao amor pelos outros, vira trincheira contra o próximo.

Essa é a serpente moderna: o sujeito dobra-se sobre si mesmo, não como quem se examina para confessar, mas como quem se admira por ter sobrevivido à tempestade. A alma, em vez de penitente, vira oráculo. O ego sai da caverna achando-se Moisés, mas sem ter falado com Deus.

Do autoconhecimento à misantropia

A consequência inevitável é o isolamento não mais como contingência, mas como escolha estética. O sujeito se refugia numa espécie de misantropia sutil, um desprezo velado pelos outros, sempre considerados rasos, mundanos, sem a “profundidade” que ele próprio conquistou. Isso não é introspecção – é altivez. Não é sabedoria – é solidão vaidosa.

E isso mata a capacidade de amar. Porque amar é se abaixar, é estender a mão ao outro mesmo quando ele parece pequeno. O homem que só vê a si mesmo como profundo não consegue mais amar: ele só tolera, com uma ponta de desprezo.

O remédio: tradição, oração e serviço

O antídoto, como sempre, está nos velhos caminhos. Introspecção só presta se for diante de Deus, com a Escritura aberta e o joelho no chão. Caso contrário, ela se volta contra si como a serpente que devora o próprio rabo. E o homem que se isola por orgulho do que sofreu termina pior do que aquele que nunca sofreu: termina idolatrando a própria dor e desprezando o próximo.

Portanto, e com toda a modéstia, creio estar certo – mas com uma ressalva grave: quem volta-se para dentro sem voltar-se para Deus, acaba encontrando um espelho, não um altar.

Só eu sei os desertos que atravessei

Nas histórias bíblicas os santos sempre se retiram para o deserto, a solidão, para receberem revelações ou a iluminação. Do mesmo modo, Deus só se manifesta nesses desertos quando os atravessamos. Haveria alguma contradição entre a introspecção (Nahash) e a solidão reveladora do deserto?

Não, não há contradição – há distinção. E ela é essencial.

O que há em comum entre Nahash e o deserto é o silêncio interior, a suspensão do ruído do mundo. Mas o conteúdo desse silêncio é diametralmente oposto. A introspecção serpentina é autorreferencial. Já a solidão bíblica é teorreferencial. Uma busca dentro de si pelo próprio trono. A outra, uma travessia para encontrar Deus e ser esmagado pela sua presença.

Nahash: o ego que se contempla

A serpente não propõe silêncio – propõe julgamento. Ela sussurra, sim, mas para convencer a alma de que ela mesma pode ser critério do bem e do mal. A introspecção que ela representa é o sujeito que mergulha em si para achar ali a legitimidade de sua vontade, não a verdade. Ele não quer escutar – ele quer declarar.

Esse é o drama moderno, aliás: a solidão sem humildade vira culto ao ego. O sujeito entra no “deserto” com o celular na mão e sai de lá achando que é um messias pop – um coach espiritual.

O deserto bíblico: a aniquilação do ego

O deserto dos santos, por outro lado, não é para ouvir a si mesmo – é para calar a si mesmo. Não é introspecção, é esvaziamento. Moisés sobe o Sinai e treme. Elias vai para a caverna e ouve um sussurro que quase o desmonta. Jesus entra no deserto e é tentado por Satanás, justamente com os mesmos delírios de autonomia que Nahash ofereceu no Éden: poder, pão, glória – sem cruz.

O deserto não é lugar de autoexpressão. É campo de batalha. Ali, ou Deus fala – ou você enlouquece. O verdadeiro deserto espiritual não confirma o ego. Ele o destrói.

Conclusão: o eixo é a direção do olhar

A introspecção serpentina olha para dentro para encontrar poder.
O deserto bíblico olha para dentro para reconhecer a miséria.
E de lá, olha para cima.

Quem se volta para si e encontra um trono, caiu.
Quem se volta para si e encontra um abismo, pode ser salvo – se gritar por socorro.

O deserto é o ventre da transformação. Mas só gera santos quando o homem se reconhece pequeno. Se ele entra querendo sair maior, volta com um demônio a mais. Como disse Evágrio Pôntico: “Foge dos pensamentos que te elogiam. São os primeiros a te trair.”

Então, não: não há contradição entre deserto e introspecção – há o combate entre dois modos de viver o silêncio.

E o saber, a introspecção e a solidão exigem virtude.


Walter Biancardine





quarta-feira, 30 de abril de 2025

MIRIAM LEITÃO SUCEDE CACÁ DIEGUES NA ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS: VEJA COMO ISSO É BOM -


Sem nenhum predicado literário; nenhuma obra de renome e se resumindo apenas ao seu negro passado nas guerrilhas e reportagens tendenciosas, a insuportável - e aquém de toda credibilidade - Miriam Leitão foi eleita como membro da ABL, com o uso de urnas eletrônicas cedidas pelo TRE-RJ.

Longe se vai o tempo em que pertencer à referida casa era sinônimo de talento e obras de profundo alcance e significado, pois hoje a casa de Machado de Assis - um escritor - se dobra a bajular cineastas, atrizes - em resumo, qualquer um com sucesso em seu engajamento político esquerdista.

Estamos diante de uma verdadeira Academia Brasileira de Velhos Babões que se dedicam, com zelo exemplar, a destruírem suas trajetórias de vida no mais rasteiro e reles puxa-saquismo abjeto. Não importam obras, não importa a vida pregressa, pois tudo o que almejam (na absoluta falta de verdadeiros escritores brasileiros vivos) é ressignificar a Academia como "troféu por serviços prestados" aos poderosos.

Assis Chateaubriand, um jornalista que era advogado por formação, recusou-se a aceitar o primeiro convite para a ABL - "um antro de bródios", disse ele - mas o elegeram em uma segunda vez. Haverá, porventura, como comparar a pena de um Chatô com os garranchos ininteligíveis de uma Leitão?

Resta-nos aguardar Tiririca de fardão.

O Brasil é uma favela com bandeira e hino.


Walter Biancardine 



VALORES E PRINCÍPIOS NÃO SÃO ETERNOS -

 


A imagem que ilustra este artigo, feita através da Inteligência Artificial, é uma conveniente síntese do que pretendo discorrer aqui: mostra os dois maiores ícones norte-americanos que conseguiram transmitir ao mundo os tais valores e princípios.

John Wayne – talvez um verdadeiro símbolo dos Estados Unidos do pós-guerra e declaradamente republicano – que jamais interpretou papéis de personagens covardes ou traidores, juntamente com Clint Eastwood, epítome do individualismo, bravura, cabeça fria e coragem em um balcão de bar, como a beberem após concluírem terem feito a sua parte – e sabedores que tudo o que pregaram não permanecerá.

Pergunte a qualquer homem ou mulher de seus trinta anos quem são estes dois nomes e a resposta será um sorridente “não sei, isso é coisa de velho”. Sim, o tempo passa e os artistas acabam por cair no esquecimento, mas o lado negro do incansável relógio da vida é que – tal qual artistas – os ideais, conceitos morais e (obviamente) valores e princípios também se vão, com o vento dos anos.

Imagine ser um egípcio “old school”, adorador do Faraó e seus gatos, crendo na certeza da vida após a morte e, por isso, pronto a entregar a sua própria após o passamento de seu senhor. Os novos tempos que vieram depois não o assustariam? Não acharia tudo isso uma indecência, heresia e pura decadência? Mas eles vieram, levaram todo esse universo embora e restaram apenas as pirâmides.

Mesmo o maior império que a humanidade já conheceu, Roma, também passou: seus costumes, o que consideravam correto, normal, moral – incluindo escravos gregos letrados, que educavam os filhos de famílias abastadas – bem como suas conquistas tecnológicas que incluíam água encanada e quente, sistemas de esgoto e um arcabouço legal que, este sim e por conveniência ainda perdura, mesmo que grotescamente vilipendiado. E Roma, seus valores, sua moral e seus princípios também passaram.

Seria cansativo e tedioso enumerar os incontáveis impérios e civilizações que, um dia, dominaram o mundo, impuseram seus costumes mas apagaram como chama de vela ao vento.

Pois este ciclo é imutável; tudo passa e mesmo estruturas conceituais de uma sociedade – sempre consideradas lógicas e eternas – se foram. Terminaram por ceder às forças esmagadoras de novos reinos que traziam novos princípios e ideias, impondo-os pela força das espadas e braços guerreiros.

Talvez seja este momento de agonia que vivemos hoje, onde pequeno amontoado de conservadores tenta manter vivo – ainda que, literalmente, por aparelhos – um sistema moribundo que está sendo vencido (e esta é a ironia) não pela “força das espadas e braços guerreiros”, mas por noticiários de TV, filmes no cinema, peças de teatro e até propagandas: jamais nossa fragilidade mental foi tão exposta, tão evidente e, por consequência, tão usada.

Os “novos impérios” sabem, hoje, que não mais são necessárias armas, guerras e sangue para subjugar todo um sistema civilizatório: basta meia-dúzia de “luminares” afirmando qualquer absurdo, para que seja alvo de matérias de jornal comentando-o, depois virão os filmes de cinema sobre o mesmo e explicando que não é tão mal assim e, por fim, comerciais de TV banalizando-o – e estará completado o ciclo de normalização e dominação das vontades alienígenas.

Certamente, no passado, alguns egípcios – ou mesmo romanos – que se consideravam “tradicionalistas” revoltaram-se contra os “novos tempos”. Se reuniram, planejaram, conspiraram mas nada foi obtido, pois as forças que se opunham eram deveras maiores. Tal somos nós, conservadores, hoje – com a diferença de sermos completamente desfibrados, sem vestígios de coragem moral e física, já nascidos e criados sob influência da poderosa arma exploradora de nossa fragilidade humana, como seja, a grande mídia e a cultura de massa. Materialmente, tal arma sequer existe mas, em efeitos e resultados, é verdadeiro veneno a corroer a alma e o tônus do ser humano. E estamos em vias de capitulação.

Não temos mais um John Wayne a lutar conosco e mesmo um Clint Eastwood acaba de completar 95 anos – sequer é justo esperar por ele. Há, no momento, um Donald Trump, uma Giorgia Meloni, um Bukele e mais um rarefeito punhado de líderes, com prazo de validade determinado por lei ou pela curta duração da vida humana. Mas, e depois?

Não sei vocês mas, quanto a mim, seria um glorioso réquiem de minha porca existência sentar neste balcão e beber uns tragos junto dos senhores Wayne e Eastwood, mas sequer isso é possível.

Terei de beber sozinho.

O tempo não pára e tudo leva consigo.


Walter Biancardine



sexta-feira, 25 de abril de 2025

QUEM É QUE VAI PAGAR POR ISSO?


Um café, um cigarro, um trago
tudo isso não é vício;
são companheiros da solidão -
Mas isso só foi no início;
hoje em dia somos todos escravos
quem é que vai pagar por isso?” 

Esta música de meu amigo Lobão, “Revanche”, dá uma ideia de como me sinto e serve de gancho oportuno para escrever o que tenho a dizer neste momento, àqueles que ainda se dão ao trabalho de ler meus escritos.

Nada a dizer quanto ao café, cigarro e eventuais tragos – não me queixo deles e, como o próprio Big Wolf admitiu, “são companheiros da solidão”. O que me traz aos escritos é a nenhuma esperança de poder, ainda em vida, enxergar algum resultado das lutas e batalhas políticas que travo há mais de uma década, além da inconfessável vergonha de ser obrigado a admitir a derrota – sim, pois perdi a guerra.

Não me iludo: o Brasil jamais voltará a ser o que foi um dia. Vivo o fim de uma era onde as liberdades serão, cada vez, mais cerceadas e combatidas; tenho o difícil dever de aceitar a vitória do sistema, onde a ditadura está consolidada e colocará na Presidência da República apenas aqueles fantoches decorativos que cumpram seu papel de mostrar ao mundo “a normalidade do estado de direito no país”, através de urnas fraudulentas e judiciário onipotente.

Não há o que se esperar das Forças Armadas, eis que seu Alto-Comando está devidamente cooptado e regiamente pago por sua omissão – e se não temos armas, nada temos.

Do mesmo modo o povo brasileiro mal percebe, esta é que é a verdade, a situação em que estamos e se limita a queixar-se do preço dos supermercados e os impostos da Shein e dos Iphones. Certamente, um dia, nos acostumaremos – pois o brasileiro a tudo se acostuma, desde que não tenha de levantar do sofá para isso. E mesmo que nos revoltássemos, o que faríamos após termos sido trouxas o suficiente para entregarmos nossas armas na “Campanha do Desarmamento”?

A CNBB – porco sindicato de padres militantes – tomou conta da Igreja e pastores interessam-se apenas pelo dízimo e nada mais. O sistema de ensino está nas mãos deles, produzindo toneladas anuais de analfabetos funcionais, verdadeiros estúpidos sequelados intelectualmente, incapazes sequer de assinar o próprio nome. E a grande mídia nos fornece o “pão e circo” que mantém, com eficiência, 210 milhões de imbecis sob cabresto e entorpecidos por bundas e barrigas tanquinho.

Na internet, os “influencers” descobriram rendoso filão: ser “resistência”, queixar-se de Alexandre de Moraes e faturar milhares de reais com isso, no YouTube – jamais se interessariam em convocar atos de desobediência civil ou algo assim, pois estariam jogando suas subsistências no lixo.

Até aí – e poderia mesmo acrescentar muito mais fatos – a maioria de nós tem conhecimento, mas igualmente mantém ainda viva a chama da esperança, crendo desesperadamente (pois não há outra coisa a fazer além de crer) que tudo terá um fim e “Tio Trump” nos livrará disso.

Mas e eu?

Quanto a mim, não consigo me livrar da lucidez e do pensamento lógico, e ambos me mostram as nenhumas possibilidades de reverter tal situação – é a guerra perdida, que falei.

Para completar – e serei egoísta sim, pois jamais tive a pretensão de ser algum mártir ou santo – vejo hoje, com clareza, que joguei minha vida fora. Todas as portas da mídia estão fechadas para mim, pois nenhuns escrúpulos tive em expor indecentemente meu pensamento político. Do mesmo modo, gastei anos – décadas – preciosas de minha existência dando a cara para baterem, me condenando à solidão e isolamento ao invés de cuidar de minha subsistência e arranjar algum bom emprego. Ao fim e ao cabo, minha profissão hoje de nada me serve, pois nela não tenho mais oportunidades. Para piorar, aos 61 anos é evidente que em nenhuma outra ocupação serei aproveitado, pois sou um “provecto ancião” no mercado de trabalho.

Resumindo: joguei minha vida fora e em nada ajudei o Brasil. Tudo à toa, tudo jogado no lixo – esforços, sacrifícios, privações – minha vida inteira, enfim.

Assim, neste momento comunico que não mais escreverei nada sobre política. Nada consegui mudar, de nada valeu abrir os olhos de quem poderá somente sofrer comigo e nada mais, e nenhuma vírgula acrescentei ou retirei da dinâmica implacável do sistema. Caso continue escrevendo – velho vício que creio ser quase impossível abandonar – nada terei a dizer sobre togas, Brasília, Trump ou o que for. Me dedicarei apenas a ensaios filosóficos, crônicas do dia-a-dia e, é claro, alguns romances que tenho em mente escrever – e é só. Tardiamente aprendi.

Quanto ao pão de cada dia?

Não faço a menor ideia. Apenas cansei de apanhar.

Estou cansado, muito cansado.



Walter Biancardine



segunda-feira, 21 de abril de 2025

NOTA DE PÉ DE PÁGINA - AINDA O PAPA


Desde 1964, quando nasci, houveram 5 Papas: Paulo VI (1963-1978, 15 anos), João Paulo I (1978, 33 dias), João Paulo II (1978-2005, 26 anos, 5 meses, 17 dias), Bento XVI (2005-2013, 8 anos), e Francisco (2013-2025).


Nunca fui um especialista em Papas, Direito Canônico ou algo assim, mas me considero um razoável diletante na teologia e, deste modo, de todos os que listei acima, o único que me provoca saudades é João Paulo II - por sua pessoa e ações. Bento XVI me traz um grande sentimento de injustiça, um brilhante teólogo vítima do mais puro e explícito "golpe de estado", articulado à distância pelos Clinton, Obama e outros.

Com o Colégio Cardinalício sendo composto por uma maioria absoluta de Cardeais nomeados por Bergoglio - e de evidentes vieses progressistas - pouco tenho a esperar do próximo pontífice.

Apenas causa-me asco o oportunismo sensacionalista dos "influencers" e a eterna engenharia social através do medo, pelas elites e grande mídia - o "Papa Negro", o último, o fim da Igreja.

Não creio em grandes mudanças, apenas mais do mesmo.


Walter Biancardine



A MORTE DE BERGOGLIO: O QUE VIRÁ AGORA?


A Igreja já é, claramente, governada por quem a odeia. O maior inimigo da cristandade não são os que a combatem, mas os que a compõem – basta lembrarmos da Teologia da Libertação, as visões progressistas de seu clero e outras.


Falando em termos simbólicos para o grande público, que agora assiste a renúncia de Klaus Schwab à presidência do World Economic Forum no mesmo dia da morte do Papa Francisco e poderá, ainda, testemunhar – chocado – a eleição do tão afamado "Papa Negro" (eis que os prováveis sucessores são, em maioria, africanos) temos a conjuntura perfeita para que os “profetas do caos” das redes sociais provoquem uma onda de pânico generalizado e, por isso, urge que ponhamos desde já alguns pingos nos is.

Tal coincidência está carregada de simbolismo coletivo, ainda que não tenha um grama de substância objetiva no plano teológico. Mas símbolos governam o inconsciente das massas, e a política das percepções é mais eficaz que a política dos fatos. Examinemos, pois, com as lentes da sociologia simbólica, da psicologia das massas e da estrutura imaginária do Ocidente em ruínas.

O PAPA NEGRO COMO SIGNO ESCATOLÓGICO POPULAR
A figura do “Papa Negro” é um arquétipo escatológico. Ele representa, na imaginação coletiva, o ponto de colapso da ordem tradicional. É o momento em que o guardião do dogma se torna seu sabotador, e aquele que deveria manter a continuidade da fé a dissolve num caldo globalista, horizontalista e sentimental.

Se o próximo papa for negro - e tudo indica que um africano está no páreo, como Cardeal Peter Turkson ou, até mesmo o Cardeal Robert Sarah (este, ironicamente, um tradicionalista) - o simbolismo será imediato:

• Para o público progressista: será a coroação do “Novo Mundo”. Um sinal de reparação histórica, inclusão, pluralidade. Eles farão festa.

• Para os conservadores: será lido como o cumprimento de uma profecia, mesmo apócrifa. Um marco do fim. Um sinal de que a Igreja se rendeu ao zeitgeist.

O importante aqui não é a realidade do eleito, mas o mito que se formará ao redor dele.

A RUPTURA ENTRE APARÊNCIA E ESSÊNCIA NO CORPO ECLESIAL
Aqui está o ponto filosófico mais importante: como afirmei acima, a Igreja já é governada por quem a odeia, e isso não está na aparência, mas na substância das decisões.

O clero progressista não combate frontalmente o dogma - ele o dilui, o interpreta, o reinterpreta, o torna ambíguo. Como disse Joseph Ratzinger:

“A maior ameaça à Igreja não vem de fora, mas de dentro.”

A Teologia da Libertação foi apenas o primeiro vírus. Hoje temos sinodalidade relativista, inclusivismo sem verdade, “escuta do Espírito” que ignora a Escritura e a Tradição. Isso se reflete na pastoral, na linguagem, na omissão moral. A consequência é brutal: o povo já não sabe mais o que é ser católico.

O CONTEXTO SOCIOLÓGICO DO FIM SIMBÓLICO DO PAPADO

Agora, juntemos os pontos:


• A renúncia de Klaus Schwab ao WEF, o grande símbolo do globalismo tecnocrático, marca uma mudança de fase do projeto globalista. Saem os tecnocratas grisalhos, entram os populistas multiculturais. O novo rosto do poder certamente será identitário, tribal e emocional.

• A morte de Francisco será lida por todos como o fim de uma era ambígua: um papa de gestos revolucionários, mas de linguagem anódina. Um padre jesuíta que agia como diplomata do século XXI.

• A eleição de um papa africano, especialmente num contexto mundial polarizado, seria compreendida como a “revanche do Terceiro Mundo” - e também como um novo começo para a Igreja, pelo menos na aparência. Mas seria, simbolicamente, o último capítulo da romanidade cristã: o fim da linha visível do Ocidente eclesial.

A PSICOLOGIA DAS MASSAS EM ESTADO DE RUÍNA
A massa está confusa, fragmentada, ansiosa. Ela não busca mais verdade, mas narrativas que preencham lacunas emocionais – e sempre é bom dar a devida importância a este fato. Num mundo onde as instituições já não representam valores objetivos, cada gesto simbólico é interpretado como sinal profético.

A coincidência desses eventos (Schwab, Francisco, Papa Negro) cairia como dinamite num caldeirão mitológico que está fervendo há séculos e os “profetas” das redes sociais se encarregariam do resto. O “fim da Igreja” se tornaria trending topic antes do almoço.

A MORTE DO PAPA: UM ATO MÍTICO
Mais do que a morte de um homem, será percebida como a morte de uma forma de Igreja. A eleição do novo papa, num mundo em colapso moral, parecerá um reinício. Mas para os que veem além da aparência, será o selo da apostasia.

O próximo conclave não será apenas uma eleição. Será um rito de passagem simbólico entre a Igreja de Pedro e a paródia dela.

A narrativa está pronta. Falta apenas o ator principal.

ADENDO: AS PROFECIAS DO PAPA NEGRO

Nostradamus – o oráculo que não disse mas parecia ter dito

Michel de Nostredame (1503–1566), o “grande bruxo do Renascimento”, é uma fonte farta de confusão. Seus Quatrains, escritos em francês arcaico, cifrado, metafórico, são um verdadeiro buffet de interpretações para todo gosto conspiratório.

Há sim alguns versos que foram interpretados – não por ele, mas por seus leitores – como se referindo a um papa de pele escura, de origem oriental ou africana, e a uma grande destruição da Igreja. Um exemplo clássico é este:

“Du plus profond de l'Occident d'Europe /
De pauvres gens un jeune enfant naîtra /
Qui par sa langue séduira grande troupe /
Son bruit au règne des Orients viendra.”

(“Das profundezas do Ocidente da Europa /
De gente humilde nascerá uma criança jovem /
Que por sua língua seduzirá grande multidão /
Sua fama chegará ao reino dos orientais.”)


Foi lido por alguns como uma previsão de um papa vindo das Américas (Ocidente), que encantaria com palavras e traria consequências catastróficas, ligadas ao Oriente – talvez o Islã, talvez a Ásia. Mas é vago, tal como um horóscopo de revista.

Em outro trecho:
"Le grand pasteur sera cité avec infamie /
Pour avoir succombé à l’hérésie des noirs /
Et la grande Cité tombera sous l’ennemi."

(“O grande pastor será citado com infâmia /
Por ter sucumbido à heresia dos negros /
E a grande Cidade cairá sob o inimigo.”)


Aqui, algo mais sinistro: “hérésie des noirs” foi lida por uns como alusão a cultos africanos, por outros como influência de ideologias revolucionárias - muitas vezes associadas simbolicamente à “noite”, às “trevas” ou à “cor negra”, no imaginário europeu. Mas como tudo em Nostradamus, é mais espelho do leitor do que mapa do futuro.

O medo popular antigo - a queda da Roma Espiritual
Desde a Idade Média, havia um temor recorrente: o dia em que Roma se tornaria a Grande Prostituta do Apocalipse, e o papado se tornaria o trono do Anticristo. Não se falava ainda de “papa negro” com essas palavras, mas de um “papa herético”, “papa usurpador”, “papa do fim”.

Monges do século XIII falavam de um papa “traidor” que entregaria a Igreja às forças do Islã ou às seitas heréticas. Joaquim de Fiore, por exemplo, com seu esquema tripartido da história (Pai, Filho, Espírito), imaginava que viria um tempo de grande crise e transição na Igreja, com figuras ambíguas no trono de Pedro.

Na virada do milênio (ano 1000), muitos acreditavam que o mundo acabaria com a corrupção papal. Quando o papado foi para Avignon (século XIV), surgiram vozes dizendo que Roma já estava abandonada por Deus, e o próximo papa seria falso — ou até um “papa escuro” no sentido espiritual: oculto, escondido, subversivo.

O Papa Negro como arquétipo
Mesmo sem citação explícita, o “papa negro” é uma figura arquetípica que assombra o imaginário europeu há séculos. Ele é o inverso do Vicarius Christi: alguém que se veste como pastor, mas fala como o dragão (Ap 13). Sua “negritude” simbólica evoca:

• A noite espiritual
• A corrupção da doutrina
• A inversão dos valores
• A penetração de forças externas e “exóticas” na Cúria

Ele não precisava ser negro de pele – bastava sê-lo de alma. Isso, sim, aparece em medos e sermões desde o século IX. O monge Adso de Montier-en-Der, no século X, escreveu sobre um Anticristo que se infiltraria na própria hierarquia eclesial. E desde então, o temor do "anti-papa escuro" persiste.

Finalizando, para meu leitor:

• Nostradamus? Insinuações vagas, nunca explícitas.

• São Malaquias? Profecia de duvidosa procedência, mas com influência tremenda.
• Temor antigo? Sim, constante, principalmente a partir do século IX: o medo de que o sucessor de Pedro se tornasse instrumento do inimigo.
• Papa negro? É um símbolo. Um espantalho teológico do fim dos tempos. Um eco do medo de que a Igreja seja governada por quem a odeia.

Nunca é demais lembrar que a cúpula mundial conhece, melhor que nós, os medos que povoam nosso subconsciente – basta ver a COVID e suas consequências. Deste modo e coletando dados esparsos como a grande emissora norte-americana Fox News, elencando apenas negros como prováveis sucessores de Bergoglio, o leitor não deverá se espantar se sim, de fato, tivermos um Papa negro nos próximos dias.

O braço direito de Satanás – mais conhecido como “grande mídia” – aliado aos sedentos de notoriedade das redes sociais, farão com que o advento do Papa negro seja o som das trombetas do apocalipse sobre a humanidade quando, de fato, nada será além de um novo Vigário de Cristo.

Mas eles aprenderam que o medo é a melhor arma para governar o planeta.

E não hesitarão em usá-lo desta forma.


Walter Biancardine



domingo, 20 de abril de 2025

A FALTA DE “TIMING” -


Os grandes movimentos populares, inclusive aqueles que derrubam governos, são um resultado direto de uma conjugação de acontecimentos que inflam a ânsia dos cidadãos a níveis sem retorno – e o primeiro resultado é o abandono das leis e a convicção de que somente a massa, reunida e furiosa, poderá pressionar os parlamentares e criar uma conjuntura política, plena de circunstâncias favoráveis, que atenda seus clamores.


Chegamos perto em 2013 quando roubamos os protestos da esquerda – “não é pelos 20 centavos” – e nos tornamos donos dos movimentos de rua, mas ainda não havia Bolsonaro a catalisar a demanda. Também tivemos caminhoneiros paralisados, que igualmente exibiam claro viés conservador – à parte suas justas demandas – mas, igualmente, faltava-nos o “líder”.

E veio Bolsonaro. Desnecessário dizer que tivemos, ao menos, três momentos em que estávamos com tudo nas mãos para – pela força do povo – obrigar os parlamentares a tomarem decisões radicais e favoráveis a nós. Do atentado contra o ainda candidato, passando pelo desmonte da Lava-Jato e culminando no acampamento em frente aos quartéis – duração recorde que, por si, já exibia ao mundo que a derrubada do sistema vigente estava próxima – tudo isso era nosso, Jair Bolsonaro liderava inconteste e os prognósticos eram claramente favoráveis a nós.

Mas Jair Messias – à parte sua indiscutível coragem física, bravura e patriotismo – não possui coragem cívica: é um militar "enragée", treinado e doutrinado para seguir regulamentos (as malditas “quatro linhas da Constituição”) e jamais conseguiu entender que, nos casos em que os abusos de um governo ditatorial e opressor se tornam insuportáveis, as leis vigentes não ajudam ninguém – pelo contrário, nos aprisionam, eis que nos submetemos a jogar segundo as regras do inimigo.

É perfeitamente compreensível que ele não desejasse criar uma situação de exceção, tomando o poder e empreendendo salutar faxina ideológica no estamento burocrático – isso custaria sangue, dores, escândalos – mas não haveria escolhas, e o senhor Bukele está aí para provar isso. Ele nada fez, apavorado em ser chamado de “ditador” – que já o era, pela esquerda brasileira e global, então nenhuma diferença faria – e preferiu abaixar a cabeça, entregando o poder de forma submissa e tornando-se – junto com o resto do povo brasileiro – mera vítima da narco-ditadura comuno-globalista que hoje nos governa, que já matou, sequestrou, censurou, prendeu inocentes arbitrariamente e entregou o país nas mãos de traficantes de drogas e potências ditatoriais estrangeiras. Ele teve tudo nas mãos e não usou; Jair Bolsonaro não teve o “timing” para agir na hora certa – e agora, pouco adianta falar grosso abrigado sob o guarda-chuva de Donald Trump.

E nós, o povo?

O povo, como conceito, oscila entre aquilo que a humanidade tem de mais desprezível ao sublime; do asqueroso ao quase divino, da força invencível ao gado conduzido para o matadouro – e tal se dá, além da decorrência da falta de lideranças, também e principalmente pela herança cultural, costumes, cultura popular e índole. Pois esta é toda nossa derrota.

Assistimos, inertes, as narrativas esquerdistas destruírem (em boa parte) o antigo poder de Bolsonaro sobre o povo, embora ele próprio – por sua indecisão, protelação e medo – tenha colaborado involuntariamente com isso. As ambições são incessantes, os interesses jamais estão satisfeitos e novos candidatos à ribalta de “condutores de povos” surgiram, dividindo os conservadores por sua própria necessidade doentia de “obedecer um líder”. Sim, bem a esquerda tenta ainda nos dividir, mas o maior resultado é obtido por nós mesmos, em um processo autofágico de entregarmos nossas responsabilidades nas mãos de alguém que possa – caso tudo saia errado – assumir as culpas.

Jamais compreendemos um Olavo de Carvalho – o verdadeiro ressuscitador do conservadorismo no Brasil – que se valia de um vocabulário repleto de palavrões como forma de chamar atenção do povo para o que ele dizia. Como fazer um energúmeno ouvir um filósofo? O resultado é que, após sua morte, metade do Brasil se acha um “Olavo” e trata os divergentes – dentro do próprio conservadorismo – a base de xingamentos e ofensas, sem jamais ter atinado com a verdadeira intenção que o filósofo possuía, assim agindo. E a divisão, autofágica como disse, só se agravou.

Temos hoje uma direita conservadora dividida, extremamente belicosa entre si e covarde quanto a ações concretas; cada conservador crê-se um Olavo de Carvalho e proprietário da razão, nenhuma divergência é admitida e a coisa toma, cada vez mais, os contornos de uma seita fanática que instituiu dogmas – cada um com o seu, particular – cuja transgressão é passível de punição com palavrões arqueológicos e… memes.

Nenhum direitista lembra-se do objetivo maior: derrubar o sistema. Nenhum direitista atreve-se a convocar rebeliões nas ruas ou organizar alguma espécie de desobediência civil. Mas um em cada dez direitistas se veem como “iminências pardas”, prontos a dar os melhores conselhos do mundo ao líder – tão e desesperadamente ansiado por todos. E esta carência de “líderes” é tão grave que, mesmo após os mais lúcidos implorarem “não saiam dos quartéis”, bastou uma moça e dois sujeitos subirem no caixote e mandarem todos para o Palácio, em Brasília, para serem prontamente obedecidos. E mil e quinhentos brasileiros inocentes foram presos.
Também a nós falou “timing”. E pior: falta-nos bom senso e coragem.

Não há como criticar a ditadura atual, se somos tão covardes e mesquinhos quanto. Não há como criticar Bolsonaro se, igualmente, estamos tal qual uns cegos em tiroteio.

E não há como criticar o autor destas linhas se você, igualmente, nada faz.


Walter Biancardine



sábado, 19 de abril de 2025

TODO EXCESSO MATA -


O fanatismo religioso é uma caricatura grotesca da fé, como um retrato feito por um inimigo que nunca viu a luz, mas jura conhecê-la. Não tem piedade, só tem zelo desordenado; uma febre espiritual que consome a própria alma e, como todo corpo febril, em vez de atrair, repele.


O fanático vive não para Deus, mas para a reafirmação compulsiva de suas próprias certezas. A fé, para ele, não é uma adesão amorosa à verdade, mas um grito desesperado contra o vazio que o habita. E o trágico é que ele empurra os outros para fora, enquanto acredita piamente que os está trazendo para dentro.

Esse é o grande equívoco do fanático: ele tenta converter não com o coração, mas com a foice. E ao fazer isso, transforma o cristianismo – essa religião do Deus que bate à porta – em um regime de vigilância, um cárcere de linguagem, uma prisão de silêncios e censuras.

Imaginemos um sujeito que, movido por alguma inquietação existencial, começa a ir à missa. Nada de muito radical, só aquele movimento interior de retorno à casa paterna. Talvez uma dor, talvez uma saudade. Mas logo é cercado pelo "zelador da ortodoxia", aquele que vigia, que cobra, que corrige – com a sutileza de um rolo compressor. O sujeito, que buscava Deus, acaba encontrando apenas o carcereiro de Deus.

E esse carcereiro é insistente, nunca dorme. O fanático está sempre pronto para repreender, como se estivesse em missão especial de espionagem teológica. Ele não prega, impõe. Não ensina, admoesta. Não dialoga, acusa. E assim transforma o que era para ser uma experiência de liberdade, em uma exposição contínua ao tribunal. Não há paz. Não há espaço para o crescimento interior, para o florescimento da fé como um processo lento, íntimo e pessoal.

O resultado? O oposto do que ele esperava. A alma, fatigada, se retira. Não da fé, mas da caricatura da fé. Não de Deus, mas dos "guardas" de Deus. E é isso o mais irônico: o fanático acredita estar salvando almas, quando na verdade está empurrando-as para o abismo do desânimo e, talvez, até da perdição. Sua atuação, por mais que diga ser por amor, é inócua quando não é danosa. É como dar água com sal a quem tem sede.

Há uma pedagogia divina que o fanático ignora: Deus não arromba portas, mas espera, atrai. Ele planta, rega e espera o tempo da colheita. Já o fanático quer broto, flor e fruto no mesmo dia. E quando não vê resultado, culpa o terreno. Como se a alma do outro fosse má porque não se dobrava à sua urgência histérica – e tal é a fonte de todas as guerras e desavenças do convívio.

O sujeito que se afasta, portanto, não está rejeitando a Igreja verdadeira, mas a deformação dela. Não está negando a fé, mas fugindo do abuso. E aí está a tragédia moderna: o excesso do falso zelo expulsando mais gente da Igreja do que o mundo secular jamais conseguiu.

Quer salvar almas? Comece calando. Testemunhe com a vida. Seja paciente como Deus é. E lembre-se: o grito do fanático afugenta, mas o silêncio fecundo de um santo converte até os mais céticos.

Quase todos os problemas do mundo não existiriam se soubéssemos o que é ponderação, mas o fanático quer ser luz e consegue, apenas, ser um farol alto na cara de quem dirige à noite.

E ninguém consegue ir longe assim..


Walter Biancardine



sexta-feira, 18 de abril de 2025

BRAÇOS ABERTOS SOBRE A GUANABARA -

Não há como explicar o feitiço carioca para quem, nestas terras, não nasceu.

Qual os melhores "rabos-de-galo" dos mais infectos e concorridos botequins da úmida e arbórea Copacabana, a mistura se dá quando adicionamos às paisagens - sempre fermentadas pelas belas mulheres em meio à calçadas apinhadas e trânsito caótico - generosas doses de Pão de Açúcar, bondinho e, para os mais calejados, Noites Cariocas.

Pitadas de Rodrigo de Freitas, seus pedalinhos e as irresistíveis casas da rua Vitória Régia trazem de imediato a lembrança de Gatto Pardo, Roxy Roller e até - warum nicht? - a boa e bela Biblos, de tantas madrugadas felizes.

Doses muito bem medidas de Arpoador, junto com toques de Posto 9, Caneco 70 e Baixo Leblon, que sempre pedirão o complemento dos quilométricos Cervantes pois, prestimosos, evitam ressacas desnecessárias.

E no voo de pássaro provocado por tal e embriagadora mistura, adentramos na perna do vento rente ao Cristo Redentor - braços abertos sobre a Guanabara - giramos base, roubamos o açúcar de nossas Noites Cariocas e encaixamos na final, para o delicioso glide que nos deixará, orgulhosos de nossa origem e do pouso de três pontos, no bom e velho Santos Dumont.

Rio de Janeiro, Rio de Janeiro... que estas linhas capengas sejam uma nota de pé de página em nossa diária, enlouquecedora mas deliciosa Crônica da Cidade Amada.


Walter Biancardine 


Quer ouvir o saudoso "Samba do Avião", de Tom Jobim? Clique no link abaixo.

https://youtu.be/WgXcHwnfGOs?si=sW1owD0CS6KPjy2n




quarta-feira, 16 de abril de 2025

FILOSOFIA TÓXICA -


"Não é acidental que esse período testemunhe uma reviravolta generalizada da filosofia tradicional do sujeito em Kant, Hegel e Marx, tornando-se dolorosamente consciente do indivíduo como constituído até suas raízes por forças e processos completamente opacos à consciência cotidiana. Não importa que nome se dê a essas forças implacáveis, seu efeito é abrir um abismo intransponível entre a vida desperta do velho ego orgulhoso e os verdadeiros determinantes de sua identidade que estão sempre encobertos e inescrutáveis.
Se o sujeito está fraturado pela desorganização, o mundo objetivo que ele confronta é agora de apreensão bastante difícil, como resultado de sua própria atividade."
Terry Eagleton

Terry Eagleton, mesmo velhinho, continua a ser um acrobata do marxismo cultural vestido com o fraque da crítica literária. Mas vamos ao que me interessou nesta publicação do “Filosofia Sempre”, que apenas expõe pensamentos – não se detém a análises ou julgamentos, sempre é bom lembrar..

O texto é elegante, sedutor até – usa umas frases que parecem profundas porque se valem de expressões como “abismo intransponível” ou “forças implacáveis”. Mas, como diria Chesterton: nem toda névoa é mistério – às vezes é só fumaça de cigarro.

Primeiro ponto:

Não é acidental que esse período testemunhe uma reviravolta generalizada da filosofia tradicional do sujeito em Kant, Hegel e Marx [...]

Aqui começa a vigarice. Eagleton parte do pressuposto – que ele trata como fato inquestionável – de que houve uma "reviravolta generalizada" na concepção do sujeito. Evidentemente é uma leitura enviesada da modernidade filosófica, aquela típica de universitários da USP que enxergam Marx como o clímax inevitável de toda a história do pensamento ocidental. Ou seja: há aqui uma teleologia disfarçada, uma narrativa de progresso rumo ao desencantamento do sujeito, como se Kant, Hegel e Marx estivessem, todos, marchando juntos rumo à dissolução da identidade individual.

Segundo ponto:

forças e processos completamente opacos à consciência cotidiana

Mais uma vigarice freudo-marxista: o sujeito não se conhece, não é dono de si, está entregue a “estruturas” invisíveis, como se fosse uma marionete de forças históricas, inconscientes ou materiais. Aqui temos o núcleo do viés: a negação da agência individual e da responsabilidade pessoal, substituídas por um niilismo estrutural digamos… elegante.

Terceiro ponto:

abrir um abismo intransponível entre a vida desperta do velho ego orgulhoso e os verdadeiros determinantes de sua identidade [...]

Ou seja: você bobalhão, que pensa ser alguém, só está sendo enganado. Não por você mesmo – o que daria uma boa introspecção filosófica – mas por “forças históricas” e “estruturas”. O sujeito moderno, então, é um mero zumbi da História, sem liberdade verdadeira. O viés aqui é escancarado: é o projeto ideológico de deslegitimar o indivíduo como núcleo moral e racional, substituindo-o por um agente histórico-cósmico sem rosto – e sem culpas, é claro.

Último ponto:

o mundo objetivo que ele confronta é agora de apreensão bastante difícil, como resultado de sua própria atividade.

Aqui temos uma inversão canalha: culpa-se o sujeito pelo caos do mundo, mas no mesmo tempo em que se nega ter ele algum controle. Uma espécie de condenação ontológica com um quê de masoquismo teórico. Ou seja: você causou tudo isso mas não sabe como, nem por quê, e nunca vai saber. É o pecado original sem redenção, versão secular.

A verdade é que este texto tem mais viés do que aqueles espelhos curvos, de parque de diversões. É sofisticado – em sua vigarice – e embebido da velha desconfiança marxista quanto ao sujeito autônomo, e da negação radical da consciência como algo confiável. É uma crítica à modernidade feita do ponto de vista de quem já se entregou ao niilismo estrutural.

Verdades? Sim, no sentido de que muitos pensadores modernos realmente abalaram a centralidade do sujeito.

Mas o tom e a direção da análise são ideológicos, em níveis – digamos – de universidades públicas Federais.



Walter Biancardine




domingo, 13 de abril de 2025

VISITA -


Este é um daqueles domingos que, pouco importando minha já avançada idade, sinto um quase instintivo desejo de ir à casa de meus pais visitá-los.

TV sempre ligada, perguntar as últimas do jornal, minha mãe trazendo um café e dizendo que vai ter coração de galinha pro almoço - que detesto, mas sorrio satisfeito.

O pai contando histórias do trabalho, um caminhão que virou a carga na estrada ou mesmo dizendo que planeja vir à Cabo Frio botar a lancha na água. Os irmãos chegam, as implicâncias -saudades - também, junto com interminável e ensurdecedora horda de sobrinhos.

Cunhado não é parente, é destino - há que se aturá-los e alguns, à bem da verdade, até são divertidos.

Almoço à mesa, a disputa imortal entre os irmãos pelo melhor pedaço ou medindo copos para ver quem encheu mais - crescemos mas algumas coisas ficam.

Fim de tarde a cerveja, a moleza, a vontade de voltar para casa sabendo que aquela sacrossanta segurança, aquela paz inominável "sempre estará lá".

Mas não estará, hoje descobri. Se este ainda é seu domingo, aproveite.

Às vezes, tudo o que queremos é voltar para casa.

E fingir que toda nossa vida foi apenas uma longa e difícil viagem.


Walter Biancardine 



quinta-feira, 10 de abril de 2025

MONSTRUOSIDADE TOGADA: AGENTE DA PF SE COMOVE AO PRENDER MÃE DE JOVEM ESPECIAL -


A prisão da mãe de uma portadora de retardo mental em Minas Gerais chegou a constranger a própria Polícia Federal, que de posse de um mandado de prisão expedido pelo Gabinete do Ministro Alexandre de Moraes foi obrigada a recolher essa mulher ao presídio João Pimenta da Veiga, em Uberlândia, ainda em 12.12.2024. Ela continua lá até hoje.

Aqui exponho o caso a partir das documentações do processo público, e tomo a liberdade de compartilhar a informação que consta no relatório do agente da Polícia Federal para que o meu leitor possa tirar as suas próprias conclusões.

O agente da Polícia Federal recebeu a missão de prender Lucinei Tuzi Casagrande Hilebrand, 54 anos, e relata que compareceu à cidade de Monte Carmelo, MG, para cumprir a determinação judicial. Lucinei responde pela Ação Penal 1260 que resultou na sua condenação a 14 anos de prisão por estar presente na MANIFESTAÇÃO DE 8 DE JANEIRO, em Brasília.

A ordem de prisão estava direcionada para o endereço da mãe de Lucinei, que fica no Bairro Santa Rita, e de fato a ré estava no local e atendeu a porta.

Relata o agente:

A ordem judicial foi então lida e prontamente acatada pela foragida, que solicitou apenas a entrada da equipe policial na residência, enquanto ela realizaria alguns telefonemas particulares para os seus parentes, de forma que a sua mãe e a sua filha, ambas visivelmente incapazes, pudessem ser amparadas por outra pessoa de sua confiança”.

Aqui interrompo a narração do agente da PF para explicar que Lucinei estava condenada já a 14 anos, mas não se encontrava foragida e, sim, em prisão domiciliar, justamente por ser uma dona de casa e por ser a única a cuidar da filha de 26 anos, a Renata, que é especial. Tem atraso mental.

Vamos seguir a experiência da PF dentro da casa da mãe da presa política.

Tendo em vista que o pedido da foragida era bastante plausível, aguardamos na residência até a chegada de suas duas filhas”.

Aqui novamente esclareço que além da filha dependente ela tem duas outras filhas adultas, uma de 29 e outra com 31 anos.

"A título de conhecimento, informo que a foragida estava utilizando a tornozeleira eletrônica”.

Nesse momento o agente desfaz a ideia de ser uma foragida, porque a tornozeleira monitorava a ré 24 horas por dia.

Durante os momentos em que permanecemos na casa foi possível constatar que tanto a mãe quanto a filha são pessoas incapazes de permanecerem sozinhas. A mãe possui 84 anos e não consegue andar por conta própria…a filha possui idade mental de uma criança”.

Ao ler esse relatório percebo que há um esforço do agente da PF em mostrar o quanto Lucinei é necessária dentro daquele lar de onde ela estava sendo arrancada e levada ao presídio naquele dia e onde se encontra até hoje, 1º de abril de 2025, sem qualquer perspectiva de sair.

De acordo com a foragida, houve um desencontro de informações quanto à sua prisão domiciliar, uma vez que a afirmação de que a sua filha residiria exclusivamente na fazenda (Fazenda Lambari), enquanto ela permaneceria na cidade, é equivocada, pois a sua presença na cidade se dá pelos cuidados com a mãe, o qual ela reveza com os irmãos. E com relação à filha também há, por parte da foragida, uma atenção e um cuidado integral”.

No final do relatório o agente da PF informa que a distância entre a fazenda onde Lucinei reside com a filha e a casa da mãe onde se encontrava, quando foi levada para cumprir a pena de 14 anos de prisão, é de somente a 2 quilômetros.

E por fim, mas não menos assustador, o agente informou no relatório que o marido de Lucinei, pai da moça com retardo mental, se encontrava preso também pelo 8 de janeiro. Osmar Hilebrand, 54 anos, foi condenado a 13 anos e seis meses pela Ação Penal 1426, julgada pelos ministros do Supremo. Ele foi preso antes mesmo do trânsito em julgado da sentença, no primeiro semestre de 2024, e se encontra no Presídio Monte Carmelo, MG.

Por mais que a defesa tentasse esclarecer que o relatório da PF deixava claro que a Lucinei era a responsável pelos cuidados da filha, portanto requeria a prisão domiciliar, a ré foi levada ao presídio em 12.12.2024. Os argumentos da defesa na Audiência de Custódia realizada após a prisão foram ignorados e prevaleceu a vontade da Procuradoria-Geral da República (PGR) e do Supremo Tribunal Federal (STF).


E QUAL É A POSIÇÃO DA PGR E STF?

Em 29 de agosto do ano passado, a defesa de Lucinei pediu o cumprimento da pena definitiva em prisão domiciliar devido às necessidades especiais da filha. A posição da Procuradoria-Geral da República (que é quem acusa) foi de rejeitar a domiciliar e manter a mãe no presídio.

O ministro Alexandre de Moraes (o STF é quem julga), para justificar o cumprimento da sentença em regime fechado, disse que Lucinei não é imprescindível para os cuidados da filha com deficiência. Nos autos coloca que Lucinei desde 6/6/2024 estava residindo na cidade de Monte Carmelo, MG, enquanto a filha permanecia na fazenda a dois quilômetros da cidade. Dentro dessa visão da PGR e do STF, a filha não precisa de pai e mãe por ter uma suposta terceira pessoa que cuidaria dela (essa pessoa não é citada nos autos).

Em 20 de setembro, o STF despachou o mandado de prisão, cumprido em 12 de dezembro, como relatado nessa matéria.

Tudo isso nos faz pensar no que se transformou a justiça no Brasil.

A defesa fez um trabalho brilhante que comprova que Lucinei é quem cuida de sua filha desde sempre. Nos autos estão todos os laudos sobre a situação da Renata que tem um grave e irreversível comprometimento neurológico, o que a torna dependente da genitora. Inclusive ela precisa de acompanhamento de equipe multiprofissional, e esta agenda é cuidada pela mãe.

Nos autos também está um documento assinado por uma perita no qual ela destaca que Renata nunca em sua vida havia se separado da mãe, e que só aceita ser cuidada pela genitora, o que inclui a dependência de alimentação e higiene.

A APAE de Monte Carmelo também emitiu atestado de que Renata é atendida pela unidade desde a infância e que é totalmente dependente da sua mãe.

(De um Twitter de John W. Peters)


MEU ADENDO:

Que Deus jamais faça Moraes cruzar meu caminho, pelo seu próprio bem. 

Tenho as costas, costelas, mandíbula, seios da face, ambos os joelhos e mão direita quebrados, e apenas o punho foi por conta de acidentes - o resto, deveu-se a desavenças diante de  argumentos contrários sem a apropriada fundamentação.

Sou velho, mas meu coice ainda machuca.

E um monstro como Moraes não merece piedade.


Walter Biancardine



SOU MEU MELHOR LEITOR -


Raciocino quando caminho, raciocino quando escrevo.

Se já tive a ousadia de costumar andar vinte quilômetros por dia quando morava solitário, no pasto, recebi em troca uma enorme clareza de ideias. Mas andar cansa e estou velho.

Escrever é algo como uma compulsão para mim. Enquanto escrevo, raciocino, medito, pondero, transcendo. Já escrevi seis livros, milhares de artigos, inúmeros ensaios filosóficos bem como algumas poucas teses - escrever não cansa, estou velho mas não sinto.

Tal é o paradoxo: escrever um ensaio de doze laudas sobre o amor, narcisismo e Fernando Pessoa, mesmo sabendo que - não só pelo tema mas, também, por suas dimensões - ninguém o lerá.

A verdade é que não escrevi para ninguém além de mim. É meu diálogo comigo mesmo e minha solidão - única companhia fiel ao longo de minha vida.

Dedico meu trabalho às vozes da minha cabeça - mesmo que poucos e eventuais leitores se metam entre nós.


Walter Biancardine



quarta-feira, 9 de abril de 2025

UMA SALADA FILOSÓFICA SOBRE O AMOR, EGO, SACRIFÍCIO, ETERNIDADE E FERNANDO PESSOA -

 


Lá pelos idos de 1985 ou 1986 este que vos escreve — ainda jovem, crendo que os adultos sabiam mais do que aparentavam — fui buscar minha então namorada na faculdade, em sua sala de aula. Um professor, cujo nome as décadas varreram mas era o arquétipo esquerdoso daquele tempo – magrelo, calças frouxas (bag, dizia-se) e rabo de cavalo – disse uma frase que ficou gravada para sempre em minha memória, dado o choque que levei: " Nós não amamos ninguém; apenas amamos o que o outro nos dá."

Aquelas palavras, ditas como se fossem uma evidência lógica e reveladora do óbvio, me atingiram como um tapa. O mundo pareceu, por um instante, mais frio, mais seco, mais opaco. Seria isso o amor? Um comércio espiritual? Um espelho vaidoso?

Quarenta anos depois, já calejado pela vida, pelas perdas, pelos abismos do pensamento – e dos amores também – reencontrei uma formulação semelhante em uma postagem nas redes sociais, sobre Fernando Pessoa. Agora entretanto, já farto de tal zumbido ecoando em minha cabeça e com maturidade suficiente para não esquecê-lo, decidi não apenas encarar a ideia — mas julgá-la, combatê-la, desenterrá-la até o osso. Este ensaio nasce dessa provocação antiga, desse desaforo nunca inteiramente levado para casa.

INTRODUÇÃO: O ESPANTO COM FERNANDO PESSOA

Tudo começou com uma citação de Fernando Pessoa, postada nas redes:

" Nunca amamos ninguém. Amamos, tão-somente, a ideia que fazemos de alguém. É a um conceito nosso – em suma, é a nós mesmos – que amamos. Isso é verdade em toda a escala do amor. No amor sexual buscamos um prazer nosso dado por intermédio de um corpo estranho. No amor diferente do sexual, buscamos um prazer nosso dado por intermédio de uma ideia nossa."

A frase é um escândalo. Mas como todo escândalo bem posto, exige resposta. Pessoa propõe, sem floreio, que o amor é um jogo de espelhos — um narcisismo sofisticado. Não amamos o outro, amamos a ideia do outro, amamos – como diria o magricelo dos anos 80 – “aquilo que o outro nos dá”. E essa ideia, claro, é um recorte, uma projeção, uma moldura. Um retrato nosso com outra moldura.

Mas isso seria tudo? Amar seria, no fim das contas, uma masturbação mental com o corpo ou a imagem de alguém, como cenário? Fernando Pessoa crava: sim. Mas eu não engulo.

"Nunca amamos ninguém."
A frase é de uma frieza cirúrgica, quase blasfema — especialmente numa cultura sentimentalóide como a nossa, que adora falar de " amar o outro como ele é", como se isso fosse
facílimo, possível ou corriqueiro.

"Amamos, tão-somente, a ideia que fazemos de alguém."
Aqui está o coração da sentença: Pessoa denuncia a estrutura narcísica do amor. Não o amor idealizado dos manuais religiosos ou dos filmes de romance, mas o amor nu e crú — aquele que serve ao espelho interno, não ao outro real. O outro? É só um suporte. Um cabide onde penduramos as nossas projeções mais íntimas, as carências mais antigas, os desejos mais indecentes ou as virtudes que nos faltam –
e que é, convenhamos, o mais comum.

"É a um conceito nosso — em suma, é a nós mesmos — que amamos."
Essa é a facada mais profunda. O amor, segundo Pessoa, é um ato de auto-engano sofisticado. Amamos a ideia que temos do outro, e essa ideia é, no fundo, um recorte da nossa psique. Não amamos a mulher — amamos o papel que ela representa no nosso teatro mental. Não amamos o amigo — amamos o reflexo que ele confirma em nós. É o " espelho mágico" de Baudelaire: queremos ver algo belo, e usamos o outro como superfície polida.

" No amor sexual buscamos um prazer nosso dado por intermédio de um corpo estranho."
Aqui, ele desmascara o eros: o prazer é nosso, o corpo do outro é meio, nunca fim. O romantismo morre aqui, sem flores, no velório. Pessoa trata o sexo como
um comércio de sensações privadas. A carne do outro é um caminho para um êxtase que é só nosso, Narciso com um parceiro.

" No amor diferente do sexual, buscamos um prazer nosso dado por intermédio de uma ideia nossa."
E
nesta frase ele mata também a amizade, o amor fraterno, o amor platônico, o amor materno, até mesmo o amor cristão, se duvidar. Tudo vira um prazer mental — não da carne, mas da imagem, da ideia construída. Um autoerotismo espiritual, por assim dizer. O outro continua fora da equação.

Conclusão? Pessoa está afirmando uma verdade terrível e elegante: o amor, tal como experimentado pela maioria, não é comunhão, é reflexo. É ego mascarado. É estética do eu. É delírio vestido de vínculo. É o que vemos hoje em cada esquina – mas não é o que todos sentem, acrescento eu.

O que seria, então, amar de verdade? Seria possível despir-se de si mesmo e ver o outro como outro? Talvez. Mas isso exigiria um esvaziamento de si quase místico. Algo que nem Pessoa acreditava ser possível… e talvez por isso tenha escrito tal coisa.

No fim das contas, o que ele diz é que o amor — assim como a vida — é um sonho lúcido, onde o outro é personagem, não protagonista. O verdadeiro amor? Talvez só exista onde o ego morre. Mas isso, convenhamos, é coisa rara.

A IDOLATRIA DO EU E O DESMONTE DA CIVILIZAÇÃO

A afirmação de Pessoa não é neutra — ela revela o espírito de uma época, um espírito que adoeceu. O amor que se autoconsome é reflexo de um narcisismo sistêmico que, ao longo do século XX, desmoronou os pilares da alteridade.

Não é só o amor conjugal que apodreceu: é o amor ao próximo, o amor à família, o amor à verdade. Tudo virou consumo de sensações próprias. Quando o outro só existe para confirmar minha imagem de mim mesmo, então ele não é amado — é usado. E quando o amor se torna uso, a civilização entra em colapso.

O eu absolutizado torna-se, paradoxalmente, o algoz de si mesmo. O sujeito pós-moderno, adorador de sua própria imagem, não é apenas incapaz de amar — é também incapaz de receber amor. Pois todo amor verdadeiro exige uma condição: morrer para si mesmo.

[Nota 1: O narcisismo moderno não é apenas um transtorno psicológico; é um fenômeno metafísico — a recusa da criatura em se submeter ao Criador.]

A MORTE DO EU: UMA DIGRESSÃO NECESSÁRIA

Mas aqui surge um dilema cruel: se o amor exige a morte do eu, não estaríamos sonegando à mulher amada justamente o homem por quem ela se apaixonou? Não estaríamos negando-lhe o nosso "eu"?

A resposta está na diferença entre aparência e essência. A morte do eu não significa aniquilamento da personalidade, mas sim a poda do ego inflado, da vaidade estética, da infantilidade emocional. Morrer para si é, na verdade, tornar-se mais si — como o vinho que, ao fermentar, vira vinho de verdade e – perdoem o trocadilho – in vino veritas.

O eu que ama é aquele que foi purificado, não aquele que foi apagado. A mulher não perde o homem que ama quando ele morre para si; ela finalmente o encontra — inteiro, limpo, disponível.

[Nota 2: Santo Agostinho já dizia — " Ama e faze o que quiseres" — mas esse amor pressupõe a transformação da vontade pela caridade divina.]


I. Fernando Pessoa como sintoma (e não como causa)

Pessoa não está inventando o narcisismo — ele está constatando o que já começava a florescer nos escombros da modernidade. Ele escreve como quem vê, com horror estético, que o amor já não é mais relação entre almas, mas projeção de delírios. O amor virou, já em seu tempo, um dispositivo interno, um teatro privado. O outro? Um figurante involuntário.

Essa constatação abre a porta para a desconstrução do amor como relação de transcendência e sacrifício, e sua conversão em performance emocional autocentrada.

II. O colapso da alteridade

Pessoa diagnostica algo que Santo Agostinho já alertava, mas com outra linguagem: o homem fechado em si mesmo é o homem perdido. O amor, para Agostinho, era o movimento da alma que se desprende de si e se volta ao bem verdadeiro — que é Deus, e por extensão, o próximo. O amor exige saída de si, aquilo que os gregos chamavam de ek-stasis — o estar fora de si, o êxtase.

Se amar é ver no outro um mistério que nos transcende, então o amor pressupõe humildade. Mas no mundo moderno, essa humildade foi devorada pelo ego inflado. O amor passou a ser um consumo de sensações, não uma entrega. É aqui que entra Freud, quase demoníaco: para ele, o amor é sublimação, sim — mas ainda assim é o eu em busca de prazer, mesmo que vestido de sacrifício – e é desnecessário dizer que o velho Siegmund certamente estava em alta conta, nos pensamentos daquele professor magrelo dos anos 80.

III. A morte da família e a tirania do eu

E então chegamos à consequência mais nefasta: o desmonte daquilo que sustentava o amor como estrutura civilizatória — a família, a amizade durável, o amor ao próximo como mandamento e não como opção emocional. O que temos no lugar? A cultura do “me faz bem”, tal como o refrão de conhecida música de Lulu Santos, também da fatídica década de 80. O vínculo dura o tempo que dura a gratificação. O outro é útil enquanto reforça minha autoimagem. A caridade virou " autorrespeito", amor próprio, “ se valorizar”.

Podemos batizar esse processo com um nome: narcisismo de massa. E o amor, nesse contexto, virou uma espécie de religião privada: o culto ao próprio reflexo.

IV. Simone Weil, a mística da atenção

Agora vejamos um contraponto sutil: Simone Weil. Ela diz que amar verdadeiramente é prestar atenção ao outro. Mas atenção como quem contempla um sacramento — não como quem observa uma vitrine. A atenção é silenciosa, receptiva, desarmada. É o oposto da projeção de Pessoa. Para Simone Weil, só há amor quando me calo internamente e deixo o outro ser o que é, mesmo que isso não me agrade.

Esse amor é raro porque exige morte do eu como centro da experiência. É o oposto da lógica moderna, onde tudo gira em torno do “eu real”, “meu espaço”, “minha verdade”, “minha vibe”.

V. Conclusão sem catarse: amar é guerra

Pessoa nos obriga a olhar para o fundo do abismo: a maior parte do que chamamos de amor é um mal-entendido. É autoamor em traje alheio. E a modernidade, ao idolatrar o “eu”, apenas selou o destino desse amor falso: ele implode, não sustenta laços, não forma famílias, não constrói civilizações.

A única saída? Uma revolução ao contrário: não " desconstruir" (perdoem a esquerdice do termo) o amor, mas reconstruí-lo sobre a rocha da renúncia, da alteridade e da transcendência. Um amor que seja serviço, sacrifício, silêncio — e não teatro, fetiche e selfies para o Instagram.

O que Pessoa descreveu com espanto poético, nós vivemos hoje com cinismo banalizado. E aí está o veneno: não é que o amor morreu de “morte morrida” – é que o mataram e, ainda por cima, zombam do cadáver.


VALE CITAR: Santo Agostinho – O amor ordenado e a ferida do desejo

Agostinho não mostra paciência com meias verdades, ele não diz que o amor está corrompido – ele diz que o amor, quando desordenado, é destrutivo. Para ele, o problema não é amar, é amar errado, isto é, fora da hierarquia do ser.

Ama e faze o que quiseres.”
– Mas ama como? Com ordem. Com sentido. Com direção.

Amar a mulher como a Deus? Idolatria.
Amar a si mesmo mais do que ao outro? Soberba.
Amar o outro mais do que ao verdadeiro bem? Ilusão.

O que Agostinho ensina é que o amor só se realiza quando sobe, quando participa do Amor Maior. Só quando o amor ao próximo é reflexo do amor a Deus – e não seu substituto – é que ele é verdadeiro. Sem isso, o amor é carência fantasiada, é carne pedindo adoração.

E completemos: Agostinho não nega o eu – ele quer que o eu se reencontre em Deus. Não se trata de apagar-se, mas de reposicionar-se no cosmos. A mulher amada, então, não perde o homem por causa da ascese — ela o recebe inteiro, liberto do teatro da vida e da aceitação social egoística.

Quando amamos o outro em Deus, amamos não uma projeção, mas o mistério. O outro torna-se ícone, não ídolo.

Blaise Pascal – O buraco em forma de Deus

Pascal diagnosticou, com precisão brutal, o que parece se passar no fundo do peito humano:

O homem é um ser miserável, mas também o mais nobre de todos, quando reconhece sua miséria.”

Para ele, o amor humano sempre será insuficiente, porque o coração tem um vazio do tamanho de Deus. E o que o homem moderno faz? Tenta preencher esse buraco com o amor romântico, com o corpo da mulher, com o aplauso, com o sucesso. Resultado? Frustração em série.

Pascal vê o amor humano como tentativa desesperada de fugir do tédio e do nada. Mas isso só dá certo quando o amor aponta para cima. Fora disso, é como beber água do salgado mar de Cabo Frio: quanto mais se bebe, mais se seca a boca.

E o que ele oferece como saída? Não o cinismo, mas a fé como salto racional. Amar, diz ele, é possível – mas só quando o amor se reconhece como mendicância, não como poder. O verdadeiro amor sabe que não basta. E mesmo assim se entrega.

Pascal antecipa a falência do amor moderno, que exige do outro aquilo que só Deus pode dar: sentido, salvação, eternidade.

Os Cínicos Gregos – O amor como escravidão voluntária

E agora, o choque de realidade dos cínicos gregos, verdadeiros mendigos de cérebro afiado e desprezo olímpico por sentimentos prét a porteur: Diógenes de Sinope, o mais famoso deles, vivia num barril e dizia que o amor romântico era prisão voluntária, invenção dos fracos. Para ele, o amor é um truque da natureza, uma embriaguez hormonal que escraviza. A mulher amada? Um saco de ossos que exala cheiros — e você ali, babando feito cão. Diógenes queria a liberdade total, inclusive da paixão.

Quando vejo um homem apaixonado, vejo um prisioneiro feliz — e toda prisão feliz é a pior de todas.”

Embora perfeitamente adequada às pretensões sociais dos atuais comuno-globalistas (“você não terá nada e será feliz”), filosoficamente é uma visão extrema. Mas ela serve como antídoto contra o sentimentalismo açucarado. Os cínicos nos lembram que o amor, se não for consciente, livre e ascético, vira grilhão. O amor cego, para eles, é loucura com aplauso.

Mas há algo de precioso aí: os cínicos amavam a verdade acima de tudo. Se o amor puder conviver com a verdade – sem máscaras, sem bajulações, sem auto-traições – então ele é possível. Difícil, mas possível.

Amar sem desaparecer

Voltando ao ponto original: amar não é desaparecer. É aparecer sem vaidade. O que deve morrer é o ego possessivo, não a personalidade concreta. A mulher que ama um homem quer o rosto dele, não o holograma de um santo. Mas esse rosto só se torna digno de amor quando lavado nas lágrimas da renúncia.

O amor verdadeiro começa quando o homem pára de se amar como um ídolo, e passa a amar o outro como mistério a ser servido, não objeto a ser consumido. E isso exige algo que falta ao mundo de hoje: transcendência.


TRÊS PÁS PARA DESENTERRAR O AMOR: ORTEGA, GIRARD E OS PADRES DO DESERTO

Com Ortega y Gasset, entendemos que o amor é "atenção concentrada no ser do outro". Ou seja: amor não é sensação, é contemplação, bem o contrário da dispersão moderna. Ortega percebe o amor como revelação da realidade de outro ser — e isso exige silêncio interior, escuta verdadeira, renúncia do próprio ruído. É o anti-narcisismo por excelência.

Girard nos mostra outra coisa: a inveja como núcleo das relações humanas – sim, sempre ela, a maldita inveja, da qual tratei em artigos anteriores. O desejo não nasceria do objeto, mas da mediação – desejamos o que o outro deseja. O amor, assim, pode ser contaminado pela rivalidade e pela usurpação. E alguém se lembra da “inveja mimética”, a que deseja roubar nosso corpo de nossa alma e ser o que somos, que escrevi recentemente? Pois o verdadeiro amor é o que rompe com essa lógica (mimética): não deseja o outro por status, por comparação, por escassez simbólica – deseja-o como dom.

Os Padres do Deserto, por fim, trazem a linguagem mais brutal e mais santa: amar é combater. O amor é uma forma de ascese, uma via de purificação. O monge que ama seu irmão precisa vencer os demônios internos que distorcem sua visão: a vaidade, a luxúria, o orgulho espiritual. O amor, para eles, é sempre ato contra o ego.

[Nota 3: As máximas dos Apotegmas dos Padres do Deserto são implacáveis com a afetividade desordenada, pois sabem que ela mascara o apego ao próprio eu.]


I. Ortega y Gasset – O amor como forma de atenção profunda

Ortega não é um místico nem um moralista. É racionalista, elegante, mas com sensibilidade para o abismo. Em Estudos sobre o amor, ele começa com uma distinção decisiva: amar não é escolher, é fixar-se.

O amor é um ato de atenção… uma atenção que se fixa, se concentra, e gira em torno de um único ponto.”

Para Ortega, amar é atirar a alma sobre um objeto e permanecer ali. É, portanto, um fenômeno de fixação numa era de distração. Amar, para ele, é ir contra a corrente da consciência dispersa, é deliberadamente perder-se em alguém, mas sem se dissolver.

Veja como isso contrasta com a ideia de Pessoa: se, para Pessoa, amar é projetar uma ideia nossa, para Ortega amar é ver o outro com radical nitidez, de maneira quase hipnótica. Não há como amar sem se deter. O amor exige pausa, exige renúncia à pluralidade de opções — exatamente o que o narcisismo moderno detesta.

Ortega já havia percebido que o amor está em crise porque, digamos, o mundo moderno é centrífugo, e o amor é centrípeto. Enquanto a modernidade grita “experimenta tudo”, o amor sussurra “fica aqui”. O narcisista não aguenta isso, ele precisa circular, variar, consumir. E aí entra o colapso do amor como vínculo: a multiplicidade destrói a fidelidade.

II. René Girard – O desejo como imitação e a crise do amor autêntico

Agora entramos em René Girard: para ele, nós não desejamos por impulso interno, como dizia Freud, mas por imitação de um modelo. Ou seja: não desejamos o objeto, desejamos o desejo do outro.

A mulher que você ama? Talvez você a deseje porque alguém – seu amigo, a mídia, a cultura – ensinou que ela é desejável ou mesmo elevara seu status. O amor, então, torna-se mimético. Não é entre dois, é triangular: eu, o outro, e o modelo que me ensinou o que devo amar.

Agora pense nas redes sociais, nos influencers, na pornografia emocional da cultura de massa: tudo ensina o que deve ser amado. Resultado? Todo mundo ama o mesmo tipo de pessoa, busca o mesmo tipo de relação, o mesmo “ideal de amor” – que não é autêntico, mas vendido como comercial de automóveis. O amor vira teatro de vaidade e inveja.

Girard então mostra o passo final: quando todos desejam o mesmo, surge a rivalidade. O amor mimético vira guerra, ciúme, competição. O amor deixa de ser doação e vira campo de batalha simbólico. A sociedade mimética, saturada de desejos emprestados, já não ama – apenas disputa.

III. Os Padres do Deserto – O amor como ascese, a morte do ego

E agora, deixemos os salões dos filósofos e entremos nas cavernas dos Padres do Deserto. Aqui não há teoria, só combate espiritual. Amor? Só se for banhado em sangue – o do próprio ego.

Para os anacoretas egípcios dos séculos III e IV, o amor verdadeiro começa depois que o eu é esmagado. Eles sabiam que todo sentimento começa contaminado pela vaidade, pelo desejo de controle, pelo orgulho. Por isso, não confiavam em si mesmos. O amor, para eles, não é natural, é construído pela luta contra o ego.

Veja o que diz Evágrio Pôntico (busque no Google), o mais sistemático deles:

Não é possível amar o outro sem antes vencer os próprios pensamentos passionais.”

Eles chamavam esses pensamentos de logismoi — impulsos interiores que deformam a percepção do outro. Inveja, luxúria, ira, vanglória. E sabiam que, enquanto esses monstros vivessem dentro de nós, todo amor seria possessivo, mentiroso, projetivo — exatamente como Pessoa descreve.

A proposta deles é brutal, mas clara: mate o eu, e talvez você conheça o amor. Enquanto amar for sentir, desejar, projetar — é ilusão. O verdadeiro amor é caridade ascética, fruto da vigilância e da oração.


RETORNANDO À PERGUNTA CAPITAL: Se para amar de verdade é preciso matar o "eu", então… quem será amado?

Essa objeção aponta o risco de uma ascese que vira despersonalização. Se o amor exige esvaziamento total, não resta mais ninguém para ser amado. É como se dissessem: " Para te amar direito, eu preciso sumir." Ora, mas foi justamente esse "eu" – com seus gostos, sua voz, sua teimosia, seu jeito besta de andar de moto – que ela amou. Se você o apagar, talvez reste um santo, mas ela queria um homem. E um homem tem cheiro, vícios, limites, voz própria.

Mas eis o paradoxo – e a beleza: não é o eu autêntico que precisa morrer, é o eu inflado. O "eu" que precisa morrer é aquele caricato, teatral, autocentrado. O eu-avatar, não o eu-alma. É a persona do espelho, não o rosto que sangra.

A mulher ama o homem não porque ele é perfeito, mas porque ele é inteiro. E só é inteiro quem está liberto da ilusão de ser o centro do mundo.

Os Padres do Deserto não pedem que você mate o eu no sentido existencial, mas no sentido egóico. Você não some – você finalmente aparece. Só quando o eu do orgulho morre, o eu da alma pode emergir. E aí sim, amar.

Em outras palavras: não se trata de desaparecer, mas de desinfetar-se. Tirar as máscaras, os truques, as simulações. O homem que sobra depois disso é menos performático, mas mais verdadeiro. E esse sim, pode amar.

Ela se apaixonou por você, não pelo seu narcisismo. E se foi pelo seu narcisismo, então ela amou a mesma ilusão que você.

CONSIDEREMOS CHESTERTON, RATZINGER E MEU PROFESSOR OLAVO DE CARVALHO

Chesterton, na verdade, ri da modernidade. Para ele, o amor é compromisso, não capricho. Amar é renunciar a todas as outras opções, e isso escandaliza o espírito hedonista. "O casamento é a maior das aventuras", dizia. O amor sem cerca, sem rito, sem sacrifício, não passa de desejo disfarçado de virtude.

Olavo de Carvalho afirma que, para ele, não é afeto – é guerra espiritual. Quem ama precisa conhecer a realidade, reconhecer a hierarquia do ser, saber que é criatura e que a vida não gira em torno do próprio umbigo. Sem metafísica, o amor vira neurose. E toda paixão que não termina em cruz, acaba em inferno.

Ratzinger, intelectualmente mais manso, reconcilia eros e ágape. O amor não é destruído pela fé – é elevado por ela. O eros verdadeiro se abre ao ágape, e o amor conjugal vira caminho de santidade. Amar, para ele, é conduzir o outro à eternidade. Tudo o mais é vaidade.

[Nota 4: A encíclica Deus Caritas Est (2005) de Bento XVI é uma meditação decisiva sobre o destino espiritual do amor humano. Vale a consulta.]


Amor autêntico ou ilusão mimética?

Fernando Pessoa, com sua frase gelada, apenas revelou o que a tradição já sabia: amar é raro porque o eu é uma prisão. Ortega tenta resgatar o amor pela atenção profunda, Girard o denuncia como imitação contaminada, e os Padres do Deserto apontam o caminho da purificação.

O amor verdadeiro só nasce depois de uma morte interior; o resto é teatro, glamour de revista, balé de carências vestidas de afeto.

Como já afirmai acima: se o amor verdadeiro morre, morrem com ele a família, a amizade e até o amor ao próximo. E então resta o quê? A utopia tecnocrática, o hedonismo de farmácia, a solidão com Wi-Fi. É o inferno, mas com air fryer.

G. K. Chesterton – O paradoxo do amor real: limite e liberdade

Chesterton dizia que o casamento era a maior aventura do mundo — porque exige compromisso num mundo viciado em fuga.

O homem que se casa com uma mulher porque a ama é como alguém que se casa com o universo porque ama a lua.”

Para ele, o amor não é espontaneidade emocional – é deliberação espiritual. O amor verdadeiro é o que decide permanecer quando a paixão já se foi. O que diz “sim” todos os dias, mesmo quando o outro está insuportável – e, convenhamos, isso é frequente.

Ele desmonta a ideia moderna de que liberdade é ausência de vínculos. Pelo contrário: só é livre quem se prende voluntariamente àquilo que tem valor eterno. Um homem sem amarras é só um cão sem dono. O amor, portanto, só é verdadeiro quando tem cerca. Só se ama de verdade quando se renuncia a todas as outras opções – e isso é escândalo para o narcisismo moderno.

Chesterton diz que a grande tragédia do mundo moderno não é que os homens não amem – é que amam sem coragem, sem seriedade, sem altar.

Olavo de Carvalho – O amor como guerra espiritual

E agora o meu professor: Olavo. Com ele, o amor deixa de ser categoria afetiva e vira batalha ontológica. O amor verdadeiro, dizia ele, é aquele que se ancora na realidade, e não nas projeções do desejo mimado.

Olavo denunciava com veemência a cultura do afeto autocentrado. Para ele, a “afetividade moderna” era puro sentimentalismo, masturbação emocional, incapaz de sustentar um casamento, criar filhos ou enfrentar a morte. O amor virou “sensação”, quando deveria ser força estruturante do ser.

Amar é um ato da inteligência espiritual, não do estômago emocional.”

E mais: amar alguém exige conhecimento de si mesmo e da realidade objetiva. Sem metafísica, não há amor – só neurose. O amor é possível quando há verticalidade, quando o ser humano sabe que é criatura, limitado, pecador e, mesmo assim, capaz de doar-se.

Ele dizia que o primeiro gesto de amor verdadeiro é o reconhecimento da hierarquia do ser. O narcisismo moderno tenta abolir isso, e assim destrói o próprio chão onde o amor poderia nascer. Para Olavo, todo amor que não tem Deus como fundamento é veneno com sabor de mel.

Joseph Ratzinger (Bento XVI) – O amor como caritas, doação divina

Ratzinger é a voz mais serena e mais profunda dessa lista. Em sua obra Deus Caritas Est, ele reconcilia eros e ágape — desejo e doação, como já disse acima. Ele não os separa, mas os purifica e ordena. O amor humano, diz ele, é bom, mas precisa ser elevado.

O amor entre homem e mulher, quando é verdadeiro, leva além de si mesmo: leva a Deus.”

O eros que se fecha em si vira luxúria, possessão, destruição. Mas o eros que se abre ao ágape torna-se caminho de salvação. O amor conjugal, então, não é obstáculo à santidade – é meio. E isso vale também para a amizade, a família, o amor ao próximo.

Ratzinger é claro: o amor só é real quando assume a forma de cruz. Do contrário, é só desejo travestido de virtude.


CÁ ENTRE NÓS E DO ABISMO À MESA: o amor na prática é sempre ao contrário?

Contestando a afirmação do meu falecido amigo, o cantor Cazuza: como amar de verdade neste mundo degenerado?

1. Escolha alguém que também esteja disposto a morrer para si

Se você ama alguém que está em adoração permanente de si próprio, corra. Não é amor, é campo de batalha narcísica. O amor exige duas almas dispostas à verdade e ao sacrifício.

2. Não espere “sentir”. Decida.

Amor verdadeiro não é impulsivo. É ato de vontade, repetido diariamente. Quem só ama quando sente, já está com outro pé fora da porta.

3. Estabeleça ritos

Rotina não mata o amor, mantém-o aceso. Jantar à mesa, oração juntos, silêncio partilhado, olhar atento. Amor sem rito vira fast-food, e quem está disposto a encarar um “podrão” durante vinte anos?

4. Fuja das telas

O amor morre nos detalhes. E os detalhes desaparecem quando você vive com a cara enfiada no celular – ou se casa com um jornalista, acrescento meio brincando, meio sendo verdadeiro. O demônio moderno mora nas notificações, não se esqueça.

5. Sofra com dignidade

O amor vai doer. A outra pessoa vai te ferir. Você vai decepcioná-la. Mas essa dor é parteira da maturidade. Quem foge da dor, nunca chega ao amor verdadeiro.

6. Eduque para a eternidade

Se você ama alguém, seu objetivo não é fazê-la feliz – é ajudá-la a salvar a alma. Amar é preparar o outro para encontrar Deus, todo o resto é circo.


RESUMO PRÁTICO: COMO AMAR NA ERA DO DESCARTE

  1. Escolha alguém disposto a morrer para si. Narcisistas são bons de cama, mas péssimos de eternidade.

  2. Não espere sentir. Decida. Sentimento vem depois da escolha.

  3. Estabeleça ritos. O amor se sustenta na liturgia do cotidiano.

  4. Fuja das telas. Como já disse, o demônio mora nas notificações.

  5. Sofra com dignidade. O amor vai doer. Aceite isso ou case com um travesseiro.

  6. Eduque para a eternidade. Amar é preparar o outro para encontrar Deus.

Por fim, creio não ser demais e tampouco soar piegas publicar algumas pulsações de um coração que já bateu verdadeiramente por alguém. Diante de todo o palavrório que destilei acima, sempre será bom deixar claro que o verdadeiro amor é aquele que nos coloca prontos para morrer – de verdade – pela pessoa amada, oferecer sua vida pela dela, abdicar de sua felicidade pelo sorriso que o cativou, enxergar o brilho naqueles olhos – os benditos olhos, que jamais serão esquecidos:


ORAÇÃO PELA MULHER AMADA

Senhor dos corações inquietos e das promessas eternas,
diante de Ti coloco o nome dela, como fosse incenso no altar.

Tu a criaste em segredo, lapidando uma pérola no ventre do tempo.
Eu a encontrei já feita mas antes grão, já linda mas antes bela, já misteriosa mas antes inocente.

Confesso, tremi.

Não permitas que eu a ame como o mundo ama – com olhos de devorador,
mas como Tu a sonhaste: com reverência, com temor e fogo justo.

Livra-me de ser um menino apaixonado por espelhos.
Livra-me de fazer dela um ídolo, ou de tratá-la como simples prazer.
Dá-me a coragem de vê-la com os olhos da eternidade.

Que eu a proteja sem dominá-la,
que eu a conduza sem oprimi-la,
que eu a deseje sem corrompê-la,
que eu a admire sem me curvar.

Que o meu amor seja mais cruz que abraço,
mais silêncio que discurso,
mais pão que poesia.

Ensina-me a morrer um pouco todos os dias, para que ela viva mais plenamente.
E que, no fim, quando estivermos velhos e já quase do lado de lá,
ela possa dizer:
" Fui amada como se ama o sagrado: com força, com verdade, com Deus no meio."

Amém.


TRATADO BREVE PARA A MULHER AMADA

I. Não te amo com a pressa dos fracos, mas com a paciência dos eternos.

O amor que tenho por ti não é fome, é vocação.
Não me aproximo de ti como um lobo farejando carne, mas como um homem buscando uma alma.
Se te amo, é porque reconheço em ti um eco de algo que vem do Alto.
Tu não és minha, e por isso mesmo posso te amar com liberdade.

II. Não quero que sejas um espelho, mas um mistério.

Não me atraio por ti porque te entendo – mas porque não te entendo.
És outra, e nisso reside tua beleza.
Não desejo te moldar à minha imagem, mas me despojar para te merecer.
Não quero que completes meu ego – quero que me desafies a sair de mim.

III. Não te prometo um amor fácil, mas um amor verdadeiro.

Sim, vou falhar contigo. E tu comigo.
Mas prometo levantar depois de cada queda com mais fé do que orgulho.
Prometo não fugir quando tua beleza escurecer, ou tua alegria silenciar.
Porque te amo com os pés no chão, e o coração no alto.

IV. Quero te conduzir, não te arrastar.

Se caminho à tua frente, é para abrir caminho.
Se caminho ao teu lado, é para proteger-te.
Se caminho atrás, é para empurrar-te
no vacilo.
Mas em todos os casos,
caminho contigo. E com Deus entre nós.

V. Amar-te é minha penitência, minha honra e minha aventura.

Não preciso de ti para ser feliz – mas contigo, a felicidade se torna possível.
Te amo não porque preciso, mas porque escolhi.
Te amo não com emoção passageira, mas com o peso da eternidade.
E te digo, olhando firme nos teus olhos:

Se Deus permitir, serei teu homem até o último suspiro.
E mesmo depois dele, serei ainda tua lembrança – firme, presente, eterna.


AO FIM E AO CABO

Quem ama de verdade morre de pé, com os olhos voltados ao céu e os pés fincados no chão. O amor não é fuga, não é posse, não é reflexo. É cruz, é altar, é combate. E como dizia um santo antigo: Amar é olhar para o outro e dizer: Tu não morrerás.

Que o mundo nos chame de loucos. Que Pessoa nos chame de ingênuos. Mas entre o niilismo elegante e a santidade oculta, ficamos com a cruz.

Fernando Pessoa foi um grande poeta, um dos maiores da língua portuguesa.

Mas jamais amou ninguém.

Amar é morrer de pé – e ressuscitar junto.


Walter Biancardine