quarta-feira, 11 de junho de 2025

A CULPA É SÓ SUA, O RESTO É GNOSE MODERNA -



“Não sigo nenhuma religião, mas sou uma pessoa muito espiritualizada” – esta é a senha para identificar aquele que a pronunciou como alguém que deseja a salvação mas sem sacrifícios, já que os problemas em sua vida, as atribulações, adversidades e até mesmo tragédias jamais são provocadas ou contam com sua participação. Elas sempre serão vistas como frutos deste “mundo opressor”, de uma “sociedade injusta”, de “políticos safados” ou até mesmo como resultado de “pecados cometidos em vidas passadas” e que, neste momento, ele – tão bom e puro atualmente – está pagando.

Este deslocamento da culpa, o colocar-se em posição passiva e sofredora diante dos problemas é mais que o vitimismo que atualmente assola a sociedade, pois o mesmo tem suas raízes no velho e carcomido gnosticismo – sim, aquele, que pensávamos estar esquecido e sepultado. Somando-se à isso a vaidade de dizer-se bom e justo, temos a receita perfeita para o verdadeiro surto de um “neognosticimo” (chamemos assim) que parece estar grassando, principalmente, nas redes sociais.

Pois bem, tratemos do tal gnosticismo. Teoricamente, ele diz que se encontra a salvação pelo conhecimento, e não pela fé. Precisamos do conhecimento de que vivíamos em um mundo superior, sem sofrimento, até que um deus inferior - um demiurgo - criou este mundo e nele nos jogou. 

Deste modo, alegam eles, é necessário saber disso e também nos "lembrarmos" que Deus está dentro de nós, que temos um "instinto", um "âmago" divino e chega ao ponto de dizer que Jesus não veio nos ensinar, impor algo a ser seguido mas, isso sim, ser nosso amigo e caminhar conosco na senda do autoconhecimento do divino que há em nós, resultando que todo o mal do mundo se deve ao local (mundo do demiurgo) que vivemos, e que não temos nisso nenhuma culpa. 

Então, analisemos: como sabemos que vivíamos em um mundo melhor? Eles dirão que um mensageiro (anjo) nos revelou isso. Um anjo? Ora, então é preciso – antes de qualquer conhecimento – ter fé, fé e crença em anjos, e apenas isso já desmonta toda a narrativa! Para piorar, acrescenta a este "conhecimento" a certeza que há "algo divino" dentro de nós, uma "auto-divinização" que nos torna superiores, e que só sofremos em decorrência da ignorância deste fato, que nos coloca a mercê deste mundo mau do demiurgo – das circunstâncias. 

Penso que tal teoria não é uma doutrina religiosa, mas a expressão de um sentimento perfeitamente humano, pois todo e qualquer indivíduo já se sentiu preso, ilhado, encurralado em uma sucessão de acontecimentos terríveis. 

Para terminar, isentar-nos de culpa apontando o mundo mau ou as circunstâncias muito se assemelha às pregações mais vulgares, onde tudo de ruim que acontece ao crente é culpa do diabo, nunca dele ou de suas ações, atitudes ou escolhas. 

Analisemos por partes, pois.

1. “O gnosticismo parte do conhecimento, não da fé.”

Certo, mas logo tropeça em si mesmo. Esse “conhecimento” precisa ser crido antes de ser compreendido. E não é qualquer crença – é uma crença esotérica, oculta, supostamente revelada por intermediários (anjos, eons, Cristo como “Logos separado do corpo”, etc.).

Ou seja, não se trata de uma filosofia puramente racional, mas de uma mitologia que exige fé na narrativa antes de qualquer racionalização.

É fé disfarçada de conhecimento, ou se preferirmos, mito mascarado de episteme.

2. “Sabemos que vivíamos num mundo melhor por revelação.”

Perfeito. A ideia da queda prévia implica memória mítica – uma “anamnesis” platônica com febre mística. Mas vejamos:

    • Quem garante essa lembrança?

    • Se estamos presos no mundo do demiurgo e nossa alma foi mergulhada na matéria, como confiar que a mente ainda intui com clareza esse mundo perdido?

Aí mora o problema: o gnosticismo coloca toda a responsabilidade no esquecimento, mas depende de uma lembrança confiável para nos tirar dele. Contradição básica. É como dizer: “Você está dormindo profundamente, mas se se lembrar que está sonhando, acorda”. Mas quem lembra o que é acordar se nunca acordou?

3. “Deus está dentro de nós.”

A velha ladainha do “divino interior”, isso sempre seduz os vaidosos.

Mas o gnosticismo comete aqui o pecado da soberba espiritual: ele não apenas diz que há algo bom no homem, como diz que o homem já é parcialmente divino, apenas ignorante disso. Isso nos leva a duas consequências filosóficas perigosas:

    • Nega o pecado como escolha e responsabilidade.

    • Coloca a salvação como um processo de lembrança de superioridade, não de arrependimento de queda.

Ou seja, é pelagianismo esotérico com tempero oriental. O homem não é decaído, é apenas “esquecido” – e isso dissolve a ética, porque onde não há culpa, não há responsabilidade. E se o homem já é divino, que sentido tem corrigir sua conduta?

4. “Jesus veio para ser amigo, não mestre.”

Essa é uma inversão sentimentalista, e a crítica deve ser aguda:

Se Jesus é apenas guia interior e não redentor, ele não exige conversão, apenas aceitação de si mesmo.

Mas veja que isso é psicologia de autoajuda misturada com um pouco de Jung e um punhado de Paulo Coelho:

“Você é uma centelha divina, Jesus veio te mostrar o Deus que você é…”

Ora, isso não é religião – é espelho.

Não há outro, não há alteridade, não há “Tu” divino, apenas um Eu profundo e narcísico, onde a salvação é olhar para dentro como quem olha para um lago e vê Narciso com barba de profeta.

5. “Todo o mal vem do mundo, não de nós.”

Aqui está o ponto teológico mais frágil do gnosticismo – e talvez o mais covarde também.

A demonização da matéria (dualismo radical) resolve magicamente o problema do mal:

    • “Não foi você, foi o demiurgo.”

    • “Não foi o pecado, foi a prisão corporal.”

Como muito bem podemos notar, isso é idêntico à teologia do bode expiatório presente em seitas vulgares:

“Tudo que dá errado é culpa do capeta, do mundo, da inveja dos outros, do karma astral, das energias.”

Nada de culpa, nada de juízo, nada de cruz – só projeção.

É, no fundo, uma teodiceia ressentida, uma cosmologia do coitadismo.

6. “Gnosticismo não é religião, é expressão de um sentimento humano.”

Bingo, este é o coração da coisa. O gnosticismo, antes de ser um sistema de crença, é um lamento existencial. É a voz do homem preso no absurdo, querendo desesperadamente uma explicação que o isente da dor e da culpa. É o grito do escravo que, em vez de clamar por libertação, inventa que nunca deveria ter nascido nesse mundo. Ele não quer salvação, quer negação do real.

Por isso, o gnosticismo é menos um erro doutrinário e mais um estado de alma: um ressentimento metafísico contra a criação, um rancor espiritual contra o ser.

Conclusão:

O gnosticismo é um fracasso lógico, um desastre teológico e uma tentação psicológica.

Ele não salva, só anestesia.

E como toda anestesia, torna o paciente dócil enquanto a doença avança.


I. TEXTOS GNÓSTICOS ORIGINAIS – A SELVA DO MISTICISMO ESCORREGADIO

Os manuscritos de Nag Hammadi (descobertos em 1945 no Alto Egito) são uma verdadeira arca dos delírios gnósticos. Dentre os principais, temos:

1. Evangelho de Tomé

“Se conhecerdes a vós mesmos, então sereis conhecidos, e sabereis que sois filhos do Pai vivo.”

Aqui começa a ladainha do conhecimento interior como salvação. Nada de conversão, nada de metanóia. Só "saber quem se é". E quem somos? Centelhas divinas esquecidas. É autoajuda com incenso e um pouco de apócrifo.

2. Pistis Sophia

Um tratado empoeirado, uma novela cósmica onde Cristo sobe e desce 12 céus, falando em eons, arcontes, selos e senhas místicas. Não há cruz, nem sangue, nem pecado – apenas senhas esotéricas para vencer os guardiões do mundo inferior. Muito mais um RPG místico do que teologia.

“Dize-me as senhas da luz, para que eu passe pelas moradas do arconte.”

Ou seja: a salvação vira uma burocracia cósmica – se você souber as palavras certas, os seguranças do universo te deixam passar. É esoterismo cabalístico, revestido de mitologia cristã reciclada.

3. Evangelho da Verdade

Esse é quase “New Age avant la lettre”. Fala da ignorância como raiz do mal e da memória do Pai como cura. Cita Jesus, mas o reduz a um terapeuta celeste. O escândalo da cruz é apagado – substituído por um “retorno à fonte primordial do amor e da luz”. Parece bonito, mas é uma traição.

II. A VISÃO DO GNOSTICISMO – O RESUMO DOS DISPARATES

    1. O mundo material é obra de um deus menor, ignorante ou maligno (o Demiurgo).

    2. O verdadeiro Deus é puro espírito, inacessível, transcendente – e escondido.

    3. A alma humana é divina, mas prisioneira do corpo.

    4. A salvação vem por gnose: uma iluminação secreta que nos faz recordar quem somos.

    5. Jesus veio como mensageiro da gnose, não como redentor pelos pecados.

Resultado: nega-se a criação, a encarnação e a cruz. Troca-se tudo isso por um misticismo narcisista.

III. OS PADRES DA IGREJA – O CONTRA-ATAQUE FEROZ

1. Santo Irineu de Lião – Adversus Haereses

O mais impiedoso e sistemático dos anti-gnósticos entendeu logo: o gnosticismo não é só heresia – é blasfêmia contra a criação.

“Eles acusam o próprio Criador de ser mau, como se fosse possível desprezar a obra sem atacar o próprio Artífice.”

Irineu bate onde dói:

    • Se o mundo foi feito por um mau demiurgo, então o corpo de Cristo também é mau.

    • Se a salvação é só conhecimento, por que Cristo morreu? Por que sangrou?

    • Se o homem é divino por natureza, para que redenção?

Irineu expõe a incoerência ontológica dos gnósticos: eles querem o Cristo, mas negam tudo que torna Cristo necessário.

2. Tertuliano – o gladiador de Cristo

“Quid ergo Athenis et Hierosolymis? Quid academiae et ecclesiae?”

(“O que têm a ver Atenas e Jerusalém? A academia e a Igreja?”)

Tertuliano esmaga os gnósticos com um desprezo escatológico. Os chama de:

    • “Teólogos de palco”

    • “Charlatões da alma”

    • “Hereges com fome de novidade”

Para ele, o gnosticismo é curiosidade vã misturada com soberba intelectual. Acusa-os de serem pseudos-sábios que desprezam a simplicidade da fé cristã e o realismo da cruz.

3. Hipólito de Roma – Refutação de Todas as Heresias

Dá nomes aos bois e descreve cada vertente gnóstica como um delírio sincrético: Pitágoras, Platão, Zoroastro (sim, mas não se escandalize: estude), todos misturados num liquidificador herético.

Mostra que os gnósticos não têm unidade doutrinária: cada grupo inventa um cosmos próprio, com eons e genealogias esotéricas, tentando explicar o mal sem enfrentar a verdade: o mal vem da liberdade e da queda.

IV. O NÚCLEO FILOSÓFICO DO GNOSTICISMO – E O SEU ERRO MORTAL

A chave está aqui: o gnosticismo nega o real. Ele é, em essência, uma forma de niilismo transcendental.

Ele diz: “Se o mundo é mau, então ele não é verdadeiro.”

A resposta cristã é: “O mundo é bom, mas corrompido.”

A resposta gnóstica: “O mundo é falso, então eu me refugio no que não posso provar, mas quero crer.”

É a covardia metafísica do homem ressentido, que não suporta a dor e prefere uma mentira confortante a uma verdade redentora.

V. A APLICAÇÃO MODERNA – O RETORNO DO GNOSTICISMO

Olhe ao redor: o gnosticismo voltou – só trocou o nome.

    • Transumanismo: “Meu corpo é uma prisão, preciso superá-lo.”

    • Psicologia pop da Xuxa: “Você é perfeito, só precisa se lembrar disso.”

    • Espiritualismo gourmet: “Somos luz. Tudo é vibração. A culpa é da energia do ambiente.”

    • Cristianismo diluído: “Jesus é amor e aceitação, não cruz e exigência.”

Todos eles herdam o núcleo gnóstico:

“Não preciso mudar; só preciso despertar.”

VI. GNOSTICISMO COMO ARMA POLÍTICA – A MENTIRA REDENTORA DO RESSENTIDO

Se o gnosticismo antigo era uma fuga existencial do real, o moderno é uma engenharia social para destruir o real.

1. A Lógica Política do Gnosticismo

O filósofo alemão Eric Voegelin foi quem lançou a bigorna sobre a cabeça da serpente: para ele, o gnosticismo não morreu – reencarnou nas ideologias modernas.

“O gnóstico político acredita que o mundo é insuportável e que ele mesmo – com seu conhecimento iluminado – pode criar um mundo novo.”

O que temos aqui?

    • Um diagnóstico negativo absoluto da realidade (“o mundo é mau, o sistema é podre, a cultura é tóxica, a tradição é opressora”).

    • Uma salvação imanente, não mais no além, mas aqui e agora, operada pelo “iluminado” (o militante, o revolucionário, o justiceiro moral).

    • Uma auto-percepção messiânica: o gnóstico moderno é o "desperto", o "acordado", o “progressista esclarecido”, enquanto os outros são zumbis do patriarcado, da religião, da família ou da moral.

Assim nasce o redentor político: um falso cristo que não salva do pecado, mas promete libertar do mundo tal como ele é.

2. Exemplos Modernos do Gnosticismo Político

    • Marxismo: o proletariado é a centelha divina oprimida pelo demiurgo burguês. A revolução é a gnose que trará o paraíso terrestre.

    • Revolução sexual: o corpo (biológico) é uma prisão. A identidade (gênero, desejo, afeto) é a “verdade interior”. Liberdade é quebrar todas as formas.

    • Militância racial identitária: a pessoa é definida pelo trauma histórico e não por sua alma ou atos. A redenção vem por meio de políticas de “reparação” – ou seja, poder para corrigir uma realidade sempre má.

    • Ambientalismo gnóstico: o planeta “natural” é o Éden perdido. A civilização é o demiurgo destruidor. Só os “iluminados verdes” sabem como restaurar a harmonia.

Tudo isso forma o misticismo ideológico do ressentido: uma fé sem transcendência, um dogma sem céu, e uma cruz sem perdão — só com tribunal.

VII. O INVERSO DO SANTO: O INVASOR DA DIVINDADE – O INVEJOSO METAFÍSICO

Agora vamos à raiz venenosa: o invejoso metafísico.

1. Quem é ele?

O invejoso metafísico não quer o bem do outro – quer o mal da própria realidade. Ele inveja a ordem das coisas. Não suporta que exista algo maior que ele, mais belo que ele, mais permanente do que suas emoções mutantes.

Ele não quer ser igual a Deus no sentido de união amorosa – ele quer tomar o lugar de Deus. É Lúcifer, sim, mas também Adão diante da árvore:

“Sereis como deuses…”

O gnóstico é isso: um Adão que não pede perdão. Ele ressente-se da Queda, mas não quer Redenção. Quer revanche.

2. O gnóstico como tipo psicológico – perfis comuns:

    • O nefelibata narcisista: acha que é especial porque sofre. Veste a dor como manto régio. Diz: “o mundo é mau porque não me reconheceu.”

    • O rebelde acadêmico: despreza tudo que cheira a tradição. Chama Santo Agostinho de misógino e São Tomás de burocrata medieval. Mas cita Foucault como quem lê evangelho.

    • O militante ressentido: não ama o que defende – odeia o que combate. Vive para demolir, nunca para construir.

    • O espiritualista vazio: diz que “Jesus é amor”, mas nunca o cita como juiz. O Cristo que carrega é um espelho: ele ama o divino… em si mesmo.

3. A negação da culpa – e o triunfo do demônio inocente

Como bem notamos, o gnóstico moderno se isenta de toda culpa. O mal vem do sistema, das estruturas, do “mundo criado”. Não há pecado, apenas trauma. Não há responsabilidade, apenas circunstância.

Isso é teologicamente perverso: é a reabilitação de Lúcifer como vítima.

No fundo, o gnóstico diz:

“Não sou rebelde — fui expulso injustamente da luz.”

VIII. A RESPOSTA CRISTÃ TRADICIONAL – UM SOCO CONTRA O CÉREBRO CÍNICO

    1. O mundo é bom, mas ferido. Foi criado com amor, caiu por liberdade, e será redimido pelo sacrifício.

    2. A salvação vem de fora – da graça, não de uma luz interior autoinduzida.

    3. Cristo não é terapeuta esotérico, é Senhor e Juiz.

    4. O homem não é Deus esquecido. É criatura caída – e, mesmo assim, amada.

É por isso que o gnosticismo odeia a cruz:

    • Porque ela revela que o sofrimento é redentor.

    • Que a carne tem valor.

    • Que Deus se encarnou – e isso destrói toda ideia de que o corpo é vil.

    • Que o mal não é só fora: ele está dentro, e precisa ser vencido, não explicado.

Ao fim e ao cabo, temos acima um estudo que pode ser útil – tanto na compreensão de comportamentos que, por sua constância, acabaram por se “normalizar” quanto em momentos de reflexão e auto-crítica, corrigirmos eventuais deslizes que tenhamos cometido em nossas relações diárias.

Não há redenção sem sacrifício, nem salvação sem fé.

E para aqueles que, como eu, sofrem pela escassez desta última citada, resta andarmos pelo melhor caminho possível, ditado pelo discernimento, bom senso e juízo – mas sempre em alerta contra tais armadilhas, pois as mesmas podem vir de um simples comercial de TV ou de inocente vídeo do YouTube.

Prudência nunca é demais.


Walter Biancardine



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