Aos que insistem em me acompanhar e ler os desvairios que escrevo, faço o convite: sente-se, pegue um café, acenda o cigarro da desistência temporária e deixe-me falar dessa mania antiga do ser humano – mais especificamente, este que vos escreve – de procurar sentido nas engrenagens invisíveis do mundo e, sempre e sempre, acabar tropeçando nelas. Carl Jung chamou isso de sincronicidade; eu chamo de tapas metafísicos que a vida dá quando percebe que estou distraído demais com minhas próprias ruínas.
Jung via coincidências significativas tal como janelas rachadas do inconsciente, onde a realidade lá fora resolve combinar com a cena interna aqui dentro. Um passarinho que bate no vidro no exato momento em que você decide abandonar alguém ou um amigo – para os que ainda os tem – que liga no instante em que você está prestes a jogar tudo no lixo. Seriam pequenos recados que o universo deixa cair, como quem solta um bilhete amassado no chão de um bar.
Os arquétipos entram aí como velhos fantasmas familiares, aqueles tipos universais que moram no porão da alma. O herói, o velho sábio, a mãe terrível, o inimigo invejoso – não importa o país ou o século, eles estão sempre vivos, esperando uma brecha para se manifestarem. E quando se manifestam, fazem isso com uma elegância sombria que só as sombras bem treinadas possuem. Podemos ver uma cena banal, mas ela parece repetir uma história que já vivemos em outra época, com outros rostos. Pois é, a vida parece adorar brincar de eco.
O problema é que nós – você, eu e toda essa humanidade cansada – somos péssimos leitores desse teatro simbólico. Eu, em particular, tenho essa crônica cegueira seletiva: percebo sempre tarde demais o que estava escancarado na minha frente desde o começo. Não por burrice – espero – mas por excesso de confiança em minha própria lucidez. O que é irônico, claro. A lucidez, muitas vezes, é só um tipo sofisticado de cegueira.
Os sinais? Eles aparecem como tudo o que é importante aparece: no silêncio, na repetição, naquilo que parece banal demais para ser notado. Eles passam pela nossa vida como os cachorros caramelo da rua – latem, roncam, mordem seu tornozelo. Normalmente apenas xingamos mas, em momentos de especial elevação, até podemos nos perguntar: “Será que isso significa algo?”
Jung, coitado, tentava mapear o labirinto, enquanto eu tento sobreviver andando em linha reta. A vida, porém, é interesseira: quer que a gente se perca um pouco, quer que tropecemos num símbolo qualquer só para aprender que não estamos no comando. E cada vez que ignoramos essas coincidências gritantes, é como virar as costas para um espelho que insiste em mostrar algo que não queremos admitir.
No fundo, sincronicidade é isso: a realidade tentando conversar conosco depois de ter perdido a paciência. E eu, como um bom tradicionalista teimoso, continuo achando que consigo decifrar tudo pela razão pura – enquanto os sinais passam, assoviam, fazem piada e seguem seu caminho.
Mas não devemos nos culpar demais, pois até o próprio Jung também errava a leitura. Na verdade, o mundo é igual a um analista financeiro medíocre: manda mensagens cifradas e a gente só entende quando já perdeu o trem, a vez, a chance. E mesmo assim, seguimos procurando sentido, porque desistir seria simples demais – e meu destino em particular, esse velho alcoólatra Bukowskiano, adora complicar.
A verdade amarga está servida mas - eis a tentação mórbida - podemos descer mais fundo nesse poço, onde Jung tenta acender fósforos e o citado Bukowski ri do vento.
A tal sincronicidade, no fundo, é só o universo perdendo a paciência com gente que vive no automático – e eu conheço bem esse tipo: durmo sem sonhar, acordo sem ouvir, ando sem perceber. E essa ausência de sonhos não é um mérito racional, como alguns gostam de fingir; é um sintoma. É o inconsciente fechando a porta na minha cara, porque não sei mais bater.
Quem – tal como eu – não sonha, torna-se analfabeto do próprio mistério. Fica dependendo de coincidências tão grotescas, tão teatralmente óbvias, que parecem escritas por um dramaturgo bêbado. E mesmo assim hesita, coça o queixo, calcula, duvida – porque o cético demais é, convenhamos, sempre aquele sujeito que não quer admitir que o mundo é maior que suas certezas.
Jung dizia que a alma manda sinais como quem deixa migalhas no chão. Mas o homem sem sonhos – esse sujeito seco por dentro, endurecido pela mania de lucidez – só percebe os farelos quando pisa neles e escuta o estalo. Antes disso? Nada. Anda no escuro achando que é luz, e se ousam falar em símbolos, ele franze a testa como quem tenta entender um esquerdista explicando o mundo.
O arquétipo pode passar na frente dele vestido com neon, tocando trombone, e ainda assim ele diz: “Deve ser coincidência.” Conversa fiada: coincidência é o nome chique que damos àquilo que não queremos interpretar.
O problema desse tipo de ceticismo é que ele não protege; ele mutila. A pessoa acha que está acima da superstição, quando na verdade está abaixo da percepção. Vira uma espécie de analista da própria miséria, incapaz de ver quando a vida grita. E grita alto: um rosto que retorna, um padrão que se repete, um gesto que dói duas vezes do mesmo jeito, um acontecimento que se encaixa no outro como engrenagens velhas.
Mas o sujeito cético demais – e eu conheço esse espelho melhor do que gostaria – precisa que a coincidência seja tão absurda que quase o agrida. Algo tão escancarado que até um asno místico compreenderia. Só aí ele recua, coça o queixo, e murmura: “Estranho…”.
Estranho nada. É o inconsciente, cansado de esperar, me pegando pelo colarinho.
E quanto aos sonhos? Os sonhos são o correio noturno da alma. Quando eles fogem, é porque você deixou a caixa de correio trancada por dentro. O sujeito que não sonha – eu – é alguém que perdeu o hábito de conversar consigo mesmo, apesar de toda a introspecção solitária. Assim, durmo como um burocrata em coma, a alma tenta falar mas sempre encontra uma porta emperrada, uma ferrugem antiga, um silêncio duro.
E esse silêncio cria uma cegueira específica: não é a falta de visão; é a falta de interpretação. Você até vê o mundo, mas não vê o que ele tenta lhe mostrar. Vê o acontecido, mas não vê o significado. É como olhar para um relâmpago e não perceber a tempestade.
A vida, então e quando temos sorte, joga pesado. Manda coincidências gigantes, dessas que fariam um ateu suspirar. Mas eu – e aqui escrevo como necessária autocrítica que mereço – tenho esse hábito de só acreditar quando o absurdo bate na minha cara com um porrete. Só aí percebo que algo estava falando comigo há meses, anos talvez. E percebo tarde, sempre tarde.
A sincronicidade, no fundo, é o universo nos dizendo:
“Eu tentei ser sutil, mas você é cabeça dura.”
E respondemos, com aquele humor cansado que só os teimosos têm:
“Pois é… manda de novo, mas manda mais forte.”
Abandonando meus lamentos e adotando um ponto de vista mais técnico, psicológico, podemos resumir assim:
A sincronicidade, segundo Jung, refere-se a coincidências significativas que não têm relação causal, mas revelam paralelos entre estados internos e eventos externos. Elas funcionam como manifestações do inconsciente coletivo, que se expressa por meio de arquétipos – padrões universais de percepção e comportamento.
A incapacidade de perceber esses sinais costuma estar ligada a uma rigidez psíquica: excesso de racionalização, ceticismo defensivo e dificuldade de acessar conteúdos inconscientes. A ausência de sonhos é um indicador disso. Sonhar é um dos principais mecanismos de comunicação entre inconsciente e consciência; quando essa via está bloqueada, os conteúdos simbólicos perdem sua porta de entrada.
Sem essa ponte, a pessoa tende a interpretar apenas o literal e o imediato, falhando em reconhecer padrões simbólicos, repetições e coincidências significativas. Assim, arquétipos e sinais acabam percebidos apenas quando se tornam extremamente explícitos – quando a psique, por saturação, força a percepção consciente.
Em suma: baixa atividade onírica, ceticismo excessivo e hiper-racionalidade criam uma “cegueira simbólica” que dificulta a leitura de coincidências e padrões arquétipos, obrigando o inconsciente a se manifestar de modos cada vez mais intensos para ser reconhecido.
E isso é tudo o que tenho a dizer sobre coincidências.
Nada mais quero, com elas.
Walter Biancardine