I – O tempo que não passa em Deus
Deus não usa relógio.
Essa frase, dita ao acaso, soa como consolo de beato – mas é, na verdade, um abismo metafísico.
O homem mede tudo em horas; Deus, em essências.
O que para nós é demora, para Ele é medida justa. O que chamamos de acaso, Ele chama de providência.
Santo Tomás de Aquino, na Summa Theologica (I, q.10, a.1), define a eternidade como “posse total, simultânea e perfeita da vida sem fim”.
A eternidade, portanto, não é tempo estendido ao infinito; é ausência de tempo.
Deus, sendo ato puro, não “espera” nada, pois já contém em Si toda a plenitude do ser.
Mas nós esperamos.
E nesse hiato entre o eterno e o temporal se instala a tragédia humana.
Deus traça o fio da providência sobre uma tapeçaria que só vemos pelo avesso: nós enxergamos o nó, Ele vê o desenho.
II – A lentidão divina e a pressa humana
Deus governa o tempo sem ser governado por ele – e isso fere a alma moderna, que só sabe amar o que é instantâneo, imediato, bom para sair no Instagram.
Vivemos sob o tirano tique-taque da urgência metabolizada pelo vício em dopamina cibernética. Queremos promessas com prazo de entrega, bênçãos com data de validade, amores sem espera.
Nosso drama é exigir que o eterno se comporte como um aplicativo, bastando clicar e obter.
Mas a Providência, ensina Santo Agostinho, é uma pedagogia e Ela não se apressa, eis que o tempo é uma ferramenta educativa. Em Confissões (XI, 13), o bispo de Hipona escreve:
“O que é o tempo? Se ninguém me pergunta, eu sei; se quero explicá-lo a quem me pergunta, já não sei.”
Eis o espanto de quem compreende que o tempo é o lugar da nossa ignorância.
A eternidade, para nós, é incomunicável; só a sentimos em lampejos – na oração, no amor, na arte, no arrependimento. E Deus nos educa por meio desses mesmos lampejos: ora atrasando, ora adiantando, suspendendo o relógio, até que o coração aprenda o ritmo certo.
III – O descompasso das bênçãos tardias
Quantas vezes o homem recebe tarde demais aquilo que mais desejou?
A oportunidade que chega depois da juventude, o reconhecimento quando o vigor já secou, o amor quando o corpo já cansou – é a maldição do “tarde demais”, que tantos tomam por crueldade divina.
Mas talvez não seja crueldade – talvez seja uma forma superior de justiça.
Santo Tomás de Aquino, ao tratar da providência (Summa contra Gentiles, III, 94), explica que Deus permite certos males aparentes para um bem maior, invisível a quem sofre, pois a alma que recebe tarde aprende a desejar corretamente. O atraso pode educar o coração e fazê-lo desapegar-se do tempo, desejando o que é permanente.
E, se quisermos ser francos, o contrário também é verdadeiro: quantos foram destruídos por receber cedo demais o que pediram? A bênção adiantada costuma se tornar veneno e o tempo, portanto, não seria castigo e, sim, cura. Mais lógico concluir que Deus não se atrasa; nós é que nos adiantamos.
IV – O relógio do amor: desencontros e ironias
Eis o ponto mais cruel e mais humano deste mistério: o amor e seus desencontros.
Se o tempo divino não obedece ao nosso, o amor se torna a mais delicada vítima do descompasso.
Chegam tarde as almas certas. Encontram-se, por vezes, quando já não podem se possuir. Um está casado, o outro velho, um livre demais, o outro ferido demais. Parece ironia, mas é estrutura da realidade: o amor humano é sujeito ao tempo, e o tempo é servo de Deus.
Em O Banquete, Platão já intuía que o amor é um desejo de eternidade: amamos para vencer o tempo, para dar permanência ao que perece. Mas o amor humano, sendo sombra do Amor divino, sempre será condenado à frustração.
E o que chamamos de “amor impossível” seria, na verdade, um lembrete: a eternidade ainda não começou.
Dante, ao ver Beatriz na Vita Nuova, compreendeu que o amor é teofania – um lampejo do eterno.
Mas Deus, que nos permite o relâmpago, nos nega o raio contínuo. O amor é sagrado justamente porque é passageiro e, se dura, é porque aprendeu a morrer todos os dias – sem reclamar da hora.
No extremo oposto, meu velho conhecido Bukowski, esse santo bêbado de Los Angeles, dizia:
“O amor é uma névoa que queima na primeira luz da realidade.”
Ele tinha razão a seu modo: quando o amor se prende ao relógio, evapora. E a única maneira de amar de verdade é aceitar o tempo como campo de batalha – e não como juiz.
Os desencontros amorosos são, portanto, uma espécie de provação divina: um treino de eternidade.
Deus nos deixa perder o que mais amamos para que aprendamos a amá-Lo acima de tudo.
É um sadismo pedagógico, sim, mas é também o único modo de purificar o amor humano de sua idolatria.
O tempo, aqui, é o bisturi da alma: corta para curar.
E sempre deveremos saber que o verdadeiro amor deve saber morrer todos os dias pelo ser amado, dentro do cruel campo de batalha de nossas vidas.
V — A pedagogia da perda
Agostinho chora por Mônica, Jó por seus filhos, e nós por nossas oportunidades mortas, mas o pranto, na economia divina, é argumento.
Chorar é rezar com os olhos.
As perdas temporais – inclusive as amorosas – são o sórdido material que Deus usa para fabricar o ouro da eternidade de nossa alma. É ruim, é péssimo – mas é bom.
A bênção tardia, vista de fora, parece punição, mas vista de dentro, é convite à purificação.
Deus não nos quer felizes apenas: quer-nos maduros.
E maturidade, neste vale de lágrimas, é saber perder sem se tornar cínico – ou um arremedo de Bukowski.
Há um tipo de graça que só floresce sobre a ruína: os santos chamam isso de felix culpa – a “culpa feliz”. A falha, o desencontro, o tempo perdido – tudo pode ser transformado em matéria de redenção. O atraso divino, assim, é a oportunidade de descobrir que a vida não é um cronograma que obedece ao nosso script, mas sim uma provação contínua.
VI – O relógio e a cruz
A cruz é o grande relógio de Deus.
Nela, a eternidade e o tempo se cruzam literalmente – uma haste vertical e outra horizontal.
No alto, o eterno; na base, o instante – e Cristo é o ponto onde Deus se deixa medir em horas.
Três horas de agonia: o tempo entrou em Deus.
Desde então, nenhuma espera é absurda, nenhum atraso é vão.
Deus se atrasou três dias para ressuscitar – e mudou o conceito de “tarde demais”, para os atentos.
Por isso, quando um homem diz “já não há tempo”, o céu sorri com ironia: há sempre tempo, pois há a eternidade por detrás.
Mas a eternidade, sendo o inverso da pressa, exige paciência.
E a paciência é a virtude mais humilhante, porque obriga o orgulho a esperar – todos sabemos disso por experiências próprias, não é preciso ensinar.
VII – Quando o relógio para
Deus não usa relógio porque não precisa medir o que já possui.
Nós, sim, precisamos – porque ainda não somos o que devemos ser.
A diferença entre o tempo divino e o humano é, em última análise, a diferença entre o ser e o vir a ser.
Deus é.
Nós, estamos sendo.
E enquanto estivermos sendo, o relógio baterá – não como inimigo, mas como lembrete: há um sentido a cumprir.
Quando o último segundo cair, e o tempo se dissolver na eternidade, compreenderemos que cada bênção tardia era um sinal do cuidado perfeito – e cada desencontro amoroso, uma lição de desapego, eis que o “tarde demais” já não existe.
Até lá, meu humilde conselho é bastante simples: ore, trabalhe, ame sem cronômetro, e desconfie dos relógios demais certos – eles mentem mais que o diabo.
Porque o diabo obedece o tempo, é pontual – e Deus, nunca. Pois é o dono dele.
Walter Biancardine
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