Lá pelos idos de 1985 ou
1986 este que vos escreve — ainda jovem, crendo que os adultos
sabiam mais do que aparentavam — fui buscar minha então namorada
na faculdade, em sua sala de aula. Um professor, cujo nome as décadas
varreram mas era o arquétipo esquerdoso daquele tempo – magrelo,
calças frouxas (bag, dizia-se) e rabo de cavalo – disse uma frase
que ficou gravada para sempre em minha memória, dado o choque que
levei: " Nós não amamos ninguém; apenas amamos o que o outro
nos dá."
Aquelas palavras, ditas
como se fossem uma evidência lógica e reveladora do óbvio, me
atingiram como um tapa. O mundo pareceu, por um instante, mais frio,
mais seco, mais opaco. Seria isso o amor? Um comércio espiritual? Um
espelho vaidoso?
Quarenta anos depois, já
calejado pela vida, pelas perdas, pelos abismos do pensamento – e
dos amores também – reencontrei uma formulação semelhante em uma
postagem nas redes sociais, sobre Fernando Pessoa. Agora entretanto,
já farto de tal zumbido ecoando em minha cabeça e com maturidade
suficiente para não esquecê-lo, decidi não apenas encarar a ideia
— mas julgá-la, combatê-la, desenterrá-la até o osso. Este
ensaio nasce dessa provocação antiga, desse desaforo nunca
inteiramente levado para casa.
INTRODUÇÃO: O ESPANTO
COM FERNANDO PESSOA
Tudo começou com uma
citação de Fernando Pessoa, postada nas redes:
" Nunca
amamos ninguém. Amamos, tão-somente, a ideia que fazemos de alguém.
É a um conceito nosso – em suma, é a nós mesmos – que amamos.
Isso é verdade em toda a escala do amor. No amor sexual buscamos um
prazer nosso dado por intermédio de um corpo estranho. No amor
diferente do sexual, buscamos um prazer nosso dado por intermédio de
uma ideia nossa."
A frase é um escândalo.
Mas como todo escândalo bem posto, exige resposta. Pessoa propõe,
sem floreio, que o amor é um jogo de espelhos — um narcisismo
sofisticado. Não amamos o outro, amamos a ideia do outro, amamos –
como diria o magricelo dos anos 80 – “aquilo que o outro nos dá”.
E essa ideia, claro, é um recorte, uma projeção, uma moldura. Um
retrato nosso com outra moldura.
Mas isso seria tudo? Amar
seria, no fim das contas, uma masturbação mental com o corpo ou a
imagem de alguém, como cenário? Fernando Pessoa crava: sim. Mas eu
não engulo.
"Nunca amamos
ninguém."
A
frase é de uma frieza cirúrgica, quase blasfema — especialmente
numa cultura sentimentalóide como a nossa, que adora falar de "
amar o outro como ele é", como se isso fosse facílimo,
possível ou
corriqueiro.
"Amamos,
tão-somente, a ideia que fazemos de alguém."
Aqui
está o coração da sentença: Pessoa denuncia a estrutura narcísica
do amor. Não o amor idealizado dos manuais religiosos ou dos filmes
de romance, mas o amor nu e crú — aquele que serve ao espelho
interno, não ao outro real. O outro? É só um suporte. Um cabide
onde penduramos as nossas projeções mais íntimas, as carências
mais antigas, os desejos mais indecentes ou as virtudes que nos
faltam – e que é,
convenhamos, o mais comum.
"É a um
conceito nosso — em suma, é a nós mesmos — que amamos."
Essa
é a facada mais profunda. O amor, segundo Pessoa, é um ato de
auto-engano sofisticado. Amamos a ideia que temos do outro, e essa
ideia é, no fundo, um recorte da nossa psique. Não amamos a mulher
— amamos o papel que ela representa no nosso teatro mental. Não
amamos o amigo — amamos o reflexo que ele confirma em nós. É o "
espelho mágico" de Baudelaire: queremos ver algo belo, e usamos
o outro como superfície polida.
" No amor
sexual buscamos um prazer nosso dado por intermédio de um corpo
estranho."
Aqui,
ele desmascara o eros: o prazer é nosso, o corpo do outro é meio,
nunca fim. O romantismo morre aqui, sem flores, no velório. Pessoa
trata o sexo como um
comércio de sensações
privadas. A carne do outro é um caminho para um êxtase que é só
nosso, Narciso com um parceiro.
" No amor
diferente do sexual, buscamos um prazer nosso dado por intermédio de
uma ideia nossa."
E
nesta frase
ele mata também a amizade, o amor fraterno, o amor platônico, o
amor materno, até
mesmo o amor cristão,
se duvidar.
Tudo vira um prazer
mental — não da carne, mas da imagem, da ideia construída. Um
autoerotismo espiritual, por assim dizer. O outro continua fora da
equação.
Conclusão?
Pessoa está afirmando uma verdade terrível e elegante: o amor, tal
como experimentado pela maioria, não é comunhão, é reflexo. É
ego mascarado. É estética do eu. É delírio vestido de vínculo. É
o que vemos hoje em cada esquina – mas não é o que todos sentem,
acrescento eu.
O que seria, então, amar
de verdade? Seria possível despir-se de si mesmo e ver o outro como
outro? Talvez. Mas isso exigiria um esvaziamento de si quase místico.
Algo que nem Pessoa acreditava ser possível… e talvez por isso
tenha escrito tal coisa.
No fim das contas, o que
ele diz é que o amor — assim como a vida — é um sonho lúcido,
onde o outro é personagem, não protagonista. O verdadeiro amor?
Talvez só exista onde o ego morre. Mas isso, convenhamos, é coisa
rara.
A IDOLATRIA DO EU E O
DESMONTE DA CIVILIZAÇÃO
A afirmação de Pessoa não
é neutra — ela revela o espírito de uma época, um espírito que
adoeceu. O amor que se autoconsome é reflexo de um narcisismo
sistêmico que, ao longo do século XX, desmoronou os pilares da
alteridade.
Não é só o amor conjugal
que apodreceu: é o amor ao próximo, o amor à família, o amor à
verdade. Tudo virou consumo de sensações próprias. Quando o outro
só existe para confirmar minha imagem de mim mesmo, então ele não
é amado — é usado. E quando o amor se torna uso, a civilização
entra em colapso.
O eu absolutizado torna-se,
paradoxalmente, o algoz de si mesmo. O sujeito pós-moderno, adorador
de sua própria imagem, não é apenas incapaz de amar — é também
incapaz de receber amor. Pois todo amor verdadeiro exige uma
condição: morrer
para si mesmo.
[Nota 1: O
narcisismo moderno não é apenas um transtorno psicológico; é um
fenômeno metafísico — a recusa da criatura em se submeter ao
Criador.]
A MORTE DO EU: UMA
DIGRESSÃO NECESSÁRIA
Mas aqui surge um dilema
cruel: se o amor exige a morte do eu, não estaríamos sonegando à
mulher amada justamente o homem por quem ela se apaixonou? Não
estaríamos negando-lhe o nosso "eu"?
A resposta está na
diferença entre aparência e essência. A morte do eu não significa
aniquilamento da personalidade, mas sim a poda do ego inflado, da
vaidade estética, da infantilidade emocional. Morrer para si é, na
verdade, tornar-se
mais si —
como o vinho que, ao fermentar, vira vinho de verdade e
– perdoem o trocadilho – in
vino veritas.
O eu que ama é aquele que
foi purificado, não aquele que foi apagado. A mulher não perde o
homem que ama quando ele morre para si; ela finalmente o encontra —
inteiro, limpo, disponível.
[Nota 2: Santo
Agostinho já dizia — " Ama e faze o que quiseres" —
mas esse amor pressupõe a transformação da vontade pela caridade
divina.]
I.
Fernando Pessoa
como sintoma (e não como causa)
Pessoa não está
inventando o narcisismo — ele está constatando o que já começava
a florescer nos escombros da modernidade. Ele escreve como quem vê,
com horror estético, que o amor já não é mais relação entre
almas, mas projeção de delírios. O amor virou, já em seu tempo,
um dispositivo interno, um teatro privado. O outro? Um figurante
involuntário.
Essa constatação abre a
porta para a desconstrução
do amor como relação de transcendência e sacrifício,
e sua conversão em performance emocional autocentrada.
II. O
colapso da alteridade
Pessoa diagnostica algo que
Santo Agostinho
já alertava, mas com outra linguagem: o homem fechado em si mesmo é
o homem perdido. O amor, para Agostinho, era o movimento da alma que
se desprende de si e se volta ao bem verdadeiro — que é Deus, e
por extensão, o próximo. O amor exige saída
de si, aquilo
que os gregos chamavam de ek-stasis
— o estar fora de si, o
êxtase.
Se amar é ver no outro um
mistério que nos
transcende, então o amor pressupõe humildade. Mas no mundo moderno,
essa humildade foi devorada pelo ego inflado. O amor passou a ser um
consumo de
sensações,
não uma entrega. É aqui que entra Freud,
quase demoníaco:
para ele, o amor é sublimação, sim — mas ainda assim é o eu em
busca de prazer, mesmo que vestido de sacrifício – e
é desnecessário dizer que o velho Siegmund certamente estava em
alta conta, nos pensamentos daquele professor magrelo dos anos 80.
III. A
morte da família e a tirania do eu
E então chegamos à
consequência mais nefasta: o desmonte daquilo que sustentava o amor
como estrutura civilizatória — a família,
a amizade durável, o amor ao próximo como mandamento e não como
opção emocional.
O que temos no lugar? A cultura do “me faz bem”, tal
como o refrão de conhecida música de Lulu Santos, também da
fatídica década de 80.
O vínculo dura o tempo que dura a gratificação. O outro é útil
enquanto reforça minha autoimagem. A caridade virou "
autorrespeito", amor
próprio, “ se valorizar”.
Podemos batizar esse
processo com um
nome: narcisismo
de massa. E o
amor, nesse contexto, virou uma espécie de religião privada: o
culto ao próprio reflexo.
IV. Simone
Weil, a mística da atenção
Agora vejamos
um
contraponto sutil: Simone Weil. Ela diz que amar verdadeiramente é
prestar atenção
ao outro. Mas atenção como quem contempla um sacramento — não
como quem observa uma vitrine. A atenção é silenciosa, receptiva,
desarmada. É o oposto da projeção de Pessoa. Para Simone Weil, só
há amor quando me calo internamente e deixo o outro ser o que é,
mesmo que isso não me agrade.
Esse amor é raro porque
exige morte do
eu como centro da experiência.
É o oposto da lógica moderna, onde tudo gira em torno do “eu
real”, “meu espaço”, “minha verdade”, “minha vibe”.
V.
Conclusão sem
catarse: amar é guerra
Pessoa nos obriga a olhar
para o fundo do abismo: a maior parte do que chamamos de amor é um
mal-entendido. É autoamor em traje alheio. E a modernidade, ao
idolatrar o “eu”, apenas selou o destino desse amor falso: ele
implode, não sustenta laços, não forma famílias, não constrói
civilizações.
A única saída? Uma
revolução ao
contrário:
não " desconstruir" (perdoem
a esquerdice do termo)
o amor, mas reconstruí-lo sobre a rocha da renúncia, da alteridade
e da transcendência. Um amor que seja serviço, sacrifício,
silêncio — e não teatro, fetiche e selfies
para
o Instagram.
O que Pessoa descreveu com
espanto poético, nós vivemos hoje com cinismo banalizado. E aí
está o veneno: não é que o amor morreu de “morte morrida” –
é que o mataram e, ainda por cima, zombam do cadáver.
VALE
CITAR: Santo Agostinho – O amor ordenado e a ferida do desejo
Agostinho não mostra
paciência com meias verdades, ele
não diz que o amor está corrompido – ele diz que o amor, quando
desordenado, é
destrutivo. Para ele, o problema não é amar, é amar errado,
isto é, fora da hierarquia do ser.
“Ama e faze
o que quiseres.”
–
Mas ama como? Com ordem. Com sentido. Com direção.
Amar a mulher como a Deus?
Idolatria.
Amar a si mesmo mais do que ao outro? Soberba.
Amar
o outro mais do que ao verdadeiro bem? Ilusão.
O que Agostinho ensina é
que o amor só se realiza quando sobe,
quando participa do Amor Maior. Só quando o amor ao próximo é
reflexo do amor a Deus – e não seu substituto – é que ele é
verdadeiro. Sem isso, o amor é carência fantasiada, é carne
pedindo adoração.
E completemos:
Agostinho não nega o eu – ele quer que o eu se
reencontre em Deus.
Não se trata de apagar-se, mas de reposicionar-se
no cosmos. A
mulher amada, então, não perde o homem por causa da ascese — ela
o recebe inteiro, liberto do teatro da
vida e da aceitação social egoística.
Quando amamos o outro em
Deus, amamos não uma
projeção, mas o mistério. O outro torna-se ícone,
não ídolo.
Blaise
Pascal – O buraco em forma de Deus
Pascal diagnosticou, com
precisão brutal, o que parece se passar no fundo do peito humano:
“O homem é
um ser miserável, mas também o mais nobre de todos, quando
reconhece sua miséria.”
Para ele, o amor humano
sempre será insuficiente,
porque o coração tem um vazio do tamanho de Deus. E o que o homem
moderno faz? Tenta preencher esse buraco com o amor romântico, com o
corpo da mulher, com o aplauso, com o sucesso. Resultado? Frustração
em série.
Pascal vê o amor humano
como tentativa
desesperada de fugir do tédio e do nada.
Mas isso só dá certo quando o amor aponta para cima. Fora disso, é
como beber água do salgado
mar de
Cabo Frio: quanto mais
se bebe, mais se seca a
boca.
E o que ele oferece como
saída? Não o cinismo, mas
a fé como
salto racional.
Amar, diz ele, é possível – mas só quando o amor se reconhece
como
mendicância,
não como poder. O verdadeiro amor sabe que não basta. E mesmo assim
se entrega.
Pascal antecipa a falência
do amor moderno, que exige do outro aquilo que só
Deus pode dar:
sentido, salvação, eternidade.
Os Cínicos
Gregos – O amor como escravidão voluntária
E agora, o choque de
realidade dos cínicos
gregos,
verdadeiros
mendigos de
cérebro afiado e desprezo olímpico por
sentimentos prét a
porteur:
Diógenes de Sinope, o mais famoso deles, vivia num barril e dizia
que o amor romântico era prisão
voluntária,
invenção dos fracos. Para ele, o amor é um truque da natureza, uma
embriaguez hormonal que escraviza. A mulher amada? Um saco de ossos
que exala cheiros — e você ali, babando feito cão. Diógenes
queria a liberdade total, inclusive da paixão.
“Quando vejo
um homem apaixonado, vejo um prisioneiro feliz — e toda prisão
feliz é a pior de todas.”
Embora perfeitamente
adequada às pretensões sociais dos atuais comuno-globalistas (“você
não terá nada e será feliz”),
filosoficamente é
uma visão extrema. Mas ela serve como antídoto contra o
sentimentalismo açucarado. Os cínicos nos lembram que o amor, se
não for consciente,
livre e ascético,
vira grilhão. O amor cego, para eles, é loucura
com aplauso.
Mas há algo de precioso
aí: os cínicos amavam a verdade
acima de tudo.
Se o amor puder conviver com a verdade – sem máscaras, sem
bajulações, sem auto-traições – então ele é possível.
Difícil, mas
possível.
Amar sem
desaparecer
Voltando ao ponto original:
amar não é desaparecer. É aparecer
sem vaidade. O
que deve morrer é o ego possessivo, não a personalidade concreta. A
mulher que ama um homem quer o rosto dele, não o holograma de um
santo. Mas esse rosto só se torna digno de amor quando lavado
nas lágrimas da renúncia.
O amor verdadeiro começa
quando o homem pára
de se amar como um ídolo,
e passa a amar o outro como mistério
a ser servido,
não objeto a ser consumido. E isso exige algo que falta ao mundo de
hoje: transcendência.
TRÊS PÁS PARA
DESENTERRAR O AMOR: ORTEGA, GIRARD E OS PADRES DO DESERTO
Com Ortega y Gasset,
entendemos que o amor é "atenção concentrada no ser do
outro". Ou seja: amor não é sensação, é contemplação, bem
o contrário da dispersão moderna. Ortega percebe o amor como
revelação da realidade de outro ser — e isso exige silêncio
interior, escuta verdadeira, renúncia do próprio ruído. É o
anti-narcisismo por excelência.
Girard nos mostra outra
coisa: a inveja como núcleo das relações humanas – sim,
sempre ela, a maldita inveja, da qual tratei em artigos anteriores.
O desejo não nasceria
do objeto, mas da mediação – desejamos o que o outro deseja. O
amor, assim, pode ser contaminado pela rivalidade e pela usurpação.
E alguém se lembra da
“inveja mimética”, a que deseja roubar nosso corpo de nossa alma
e ser o que somos, que escrevi recentemente? Pois o
verdadeiro amor é o que rompe com essa lógica (mimética):
não deseja o outro por status, por comparação, por escassez
simbólica – deseja-o como
dom.
Os Padres do Deserto, por
fim, trazem a linguagem mais brutal e mais santa: amar é combater. O
amor é uma forma de ascese, uma via de purificação. O monge que
ama seu irmão precisa vencer os demônios internos que distorcem sua
visão: a vaidade, a luxúria, o orgulho espiritual. O amor, para
eles, é sempre ato contra o ego.
[Nota 3: As
máximas dos Apotegmas dos Padres do Deserto são implacáveis com a
afetividade desordenada, pois sabem que ela mascara o apego ao
próprio eu.]
I. Ortega
y Gasset – O amor como forma de atenção profunda
Ortega não é um místico
nem um moralista. É racionalista, elegante, mas com sensibilidade
para o abismo. Em Estudos
sobre o amor, ele
começa com uma distinção decisiva: amar
não é escolher, é fixar-se.
“O amor é
um ato de atenção… uma atenção que se fixa, se concentra, e
gira em torno de um único ponto.”
Para Ortega, amar é atirar
a alma sobre um objeto e permanecer ali.
É, portanto, um fenômeno de fixação
numa era de distração. Amar, para ele, é ir contra a corrente da
consciência dispersa, é deliberadamente
perder-se em alguém,
mas sem se dissolver.
Veja como isso contrasta
com a ideia de Pessoa: se,
para Pessoa, amar é projetar uma ideia nossa, para Ortega amar é
ver o outro com
radical nitidez,
de maneira quase hipnótica. Não há como amar sem se deter. O amor
exige pausa, exige renúncia
à pluralidade de opções
— exatamente o que o narcisismo moderno detesta.
Ortega já havia
percebido
que o amor está em crise porque, digamos,
o mundo moderno
é centrífugo, e o amor é centrípeto.
Enquanto a modernidade grita “experimenta tudo”, o amor sussurra
“fica aqui”. O narcisista não aguenta isso, ele precisa
circular, variar, consumir. E aí entra o colapso do amor como
vínculo: a multiplicidade destrói a fidelidade.
II. René
Girard – O desejo como imitação e a crise do amor autêntico
Agora entramos em René
Girard:
para
ele,
nós não desejamos por impulso interno, como dizia Freud, mas por
imitação de
um modelo. Ou
seja: não
desejamos o objeto, desejamos o desejo do outro.
A mulher que você ama?
Talvez você a deseje porque alguém – seu amigo, a mídia, a
cultura – ensinou que ela é desejável ou
mesmo elevara seu status.
O amor, então, torna-se mimético.
Não é entre dois, é triangular: eu, o outro, e o modelo que me
ensinou o que devo amar.
Agora pense nas redes
sociais, nos influencers,
na pornografia emocional da cultura de massa: tudo
ensina o que deve ser amado. Resultado? Todo
mundo ama o mesmo tipo de pessoa,
busca o mesmo tipo de relação, o mesmo “ideal de amor” – que
não é autêntico, mas vendido
como comercial de automóveis.
O amor vira teatro de vaidade e inveja.
Girard então mostra o
passo final: quando todos desejam o mesmo, surge a rivalidade.
O amor mimético vira guerra, ciúme, competição. O amor deixa de
ser doação e vira campo
de batalha simbólico.
A sociedade mimética, saturada de desejos emprestados, já não ama
– apenas disputa.
III. Os
Padres do Deserto – O amor como ascese, a morte do ego
E agora, deixemos os salões
dos filósofos e entremos nas cavernas dos Padres
do Deserto.
Aqui não há teoria, só combate espiritual. Amor? Só se for
banhado em sangue – o do próprio ego.
Para os anacoretas egípcios
dos séculos III e IV, o amor verdadeiro começa depois
que o eu é esmagado.
Eles sabiam que todo sentimento começa contaminado pela vaidade,
pelo desejo de controle, pelo orgulho. Por isso, não
confiavam em si mesmos.
O amor, para eles, não
é natural, é construído pela luta contra o ego.
Veja o que diz Evágrio
Pôntico
(busque no Google), o
mais sistemático deles:
“Não é
possível amar o outro sem antes vencer os próprios pensamentos
passionais.”
Eles chamavam esses
pensamentos de logismoi
— impulsos interiores que deformam a percepção do outro. Inveja,
luxúria, ira, vanglória. E sabiam que, enquanto esses monstros
vivessem dentro de nós, todo
amor seria possessivo, mentiroso, projetivo — exatamente como
Pessoa descreve.
A proposta deles é brutal,
mas clara: mate
o eu, e talvez você conheça o amor.
Enquanto amar for sentir, desejar, projetar — é ilusão. O
verdadeiro amor é caridade
ascética,
fruto da vigilância e da oração.
RETORNANDO À
PERGUNTA CAPITAL: Se
para amar de verdade é preciso matar o "eu", então…
quem será
amado?
Essa
objeção aponta o risco de uma ascese
que vira despersonalização.
Se o amor exige esvaziamento total, não resta mais ninguém para ser
amado. É como se dissessem: " Para te amar direito, eu
preciso sumir."
Ora, mas foi justamente esse "eu" – com seus gostos, sua
voz, sua teimosia, seu jeito besta de andar
de moto – que ela
amou. Se você o apagar, talvez reste um santo, mas ela queria um
homem. E um homem tem cheiro, vícios, limites, voz própria.
Mas eis o paradoxo – e a
beleza: não é
o eu autêntico que precisa morrer, é o eu inflado.
O "eu" que precisa morrer é aquele caricato, teatral,
autocentrado. O eu-avatar,
não o eu-alma.
É a persona do espelho, não o rosto que sangra.
A mulher ama o homem não
porque ele é perfeito, mas porque ele é inteiro.
E só é inteiro quem está liberto da ilusão de ser o centro do
mundo.
Os Padres do Deserto não
pedem que você mate o eu no sentido existencial, mas no sentido
egóico.
Você não some – você finalmente aparece. Só quando o eu do
orgulho morre, o eu da alma pode emergir. E aí sim, amar.
Em outras palavras: não
se trata de desaparecer, mas de desinfetar-se.
Tirar as máscaras, os truques, as simulações. O homem que sobra
depois disso é menos performático, mas mais verdadeiro. E esse sim,
poderá
amar.
Ela se apaixonou por você,
não pelo seu narcisismo. E se foi pelo seu narcisismo, então ela
amou a mesma ilusão que você.
CONSIDEREMOS CHESTERTON,
RATZINGER E MEU PROFESSOR OLAVO DE CARVALHO
Chesterton, na
verdade, ri da
modernidade. Para ele, o amor é compromisso, não capricho. Amar é
renunciar a
todas as outras opções,
e isso escandaliza o espírito hedonista. "O casamento é a
maior das aventuras", dizia. O amor sem cerca, sem rito, sem
sacrifício, não passa de desejo disfarçado de virtude.
Olavo de Carvalho afirma
que, para ele, não é afeto – é guerra espiritual. Quem ama
precisa conhecer a realidade, reconhecer a hierarquia do ser, saber
que é criatura e que a vida não gira em torno do próprio umbigo.
Sem metafísica, o amor vira neurose. E toda paixão que não termina
em cruz, acaba em inferno.
Ratzinger, intelectualmente
mais manso, reconcilia eros e ágape. O amor não é destruído pela
fé – é elevado por ela. O eros verdadeiro se abre ao ágape, e o
amor conjugal vira caminho de santidade. Amar, para ele, é conduzir
o outro à eternidade. Tudo o mais é vaidade.
[Nota
4: A
encíclica Deus
Caritas Est
(2005) de Bento XVI é uma meditação decisiva sobre o destino
espiritual do amor humano. Vale
a consulta.]
Amor
autêntico ou ilusão mimética?
Fernando Pessoa,
com sua frase gelada, apenas revelou o que a tradição já sabia:
amar é raro
porque o eu é uma prisão.
Ortega tenta resgatar o amor pela atenção profunda, Girard o
denuncia como imitação contaminada, e os Padres do Deserto apontam
o caminho da purificação.
O amor verdadeiro só nasce
depois de uma morte
interior;
o
resto é teatro, glamour
de revista, balé
de carências vestidas de afeto.
Como já afirmai acima: se
o amor verdadeiro morre, morrem com ele a família, a amizade e até
o amor ao próximo. E então resta o quê? A utopia tecnocrática, o
hedonismo de farmácia, a solidão com Wi-Fi. É o inferno,
mas com air fryer.
G. K.
Chesterton – O paradoxo do amor real: limite e liberdade
Chesterton dizia que o
casamento era a maior aventura do mundo — porque exige
compromisso num mundo viciado em fuga.
“O homem que
se casa com uma mulher porque a ama é como alguém que se casa com o
universo porque ama a lua.”
Para ele,
o amor não é espontaneidade emocional – é deliberação
espiritual. O
amor verdadeiro é o que decide
permanecer quando
a paixão já se foi. O que diz “sim” todos os dias, mesmo quando
o outro está insuportável – e,
convenhamos, isso é frequente.
Ele desmonta a ideia
moderna de que liberdade é ausência de vínculos. Pelo contrário:
só é livre
quem se prende voluntariamente àquilo que tem valor eterno.
Um homem sem amarras é só um cão
sem dono. O amor,
portanto, só é
verdadeiro quando tem cerca.
Só se ama de verdade quando se renuncia a todas as outras opções –
e isso é escândalo para o narcisismo moderno.
Chesterton diz que a grande
tragédia do mundo moderno não é que os homens não amem
– é que amam
sem coragem, sem seriedade, sem altar.
Olavo de
Carvalho – O amor como guerra espiritual
E agora o meu
professor: Olavo.
Com ele, o amor deixa de ser categoria afetiva e vira batalha
ontológica. O
amor verdadeiro, dizia ele, é aquele que se ancora na realidade, e
não nas projeções do desejo mimado.
Olavo denunciava com
veemência a cultura do afeto autocentrado. Para ele, a “afetividade
moderna” era puro sentimentalismo, masturbação
emocional,
incapaz de sustentar um casamento, criar filhos ou enfrentar a morte.
O amor virou “sensação”, quando deveria ser força
estruturante do ser.
“Amar é um
ato da inteligência espiritual, não do estômago emocional.”
E mais: amar
alguém exige conhecimento de si mesmo e da realidade objetiva.
Sem metafísica, não há amor – só neurose. O amor é possível
quando há verticalidade, quando o ser humano sabe que é criatura,
limitado, pecador e, mesmo assim, capaz de doar-se.
Ele dizia que o primeiro
gesto de amor verdadeiro é o reconhecimento da hierarquia
do ser. O
narcisismo moderno tenta abolir isso, e assim
destrói o próprio chão onde o amor poderia nascer. Para Olavo,
todo amor que não tem Deus como fundamento é
veneno com sabor de mel.
Joseph
Ratzinger (Bento XVI) – O amor como caritas,
doação divina
Ratzinger é a voz mais
serena e mais profunda dessa lista. Em sua obra Deus
Caritas Est, ele
reconcilia eros e ágape — desejo e doação, como
já disse acima. Ele
não os separa, mas os purifica e ordena. O amor humano, diz ele, é
bom, mas
precisa ser elevado.
“O amor
entre homem e mulher, quando é verdadeiro, leva além de si mesmo:
leva a Deus.”
O eros que se fecha em si
vira luxúria, possessão, destruição. Mas o eros que se abre ao
ágape torna-se caminho de salvação. O amor conjugal, então, não
é obstáculo à santidade – é meio.
E isso vale também para a amizade, a família, o amor ao próximo.
Ratzinger é claro: o
amor só é real quando assume a forma de cruz.
Do contrário, é só desejo travestido de virtude.
CÁ ENTRE
NÓS E DO ABISMO À MESA: o amor na prática é sempre ao contrário?
Contestando
a afirmação do meu falecido amigo, o cantor Cazuza:
como amar
de verdade neste mundo degenerado?
1. Escolha
alguém que também esteja disposto a morrer para si
Se você ama alguém que
está em adoração permanente de si próprio, corra. Não é amor, é
campo de batalha narcísica. O amor exige duas almas dispostas à
verdade e ao sacrifício.
2. Não
espere “sentir”. Decida.
Amor verdadeiro não é
impulsivo. É ato
de vontade, repetido diariamente.
Quem só ama quando sente, já está com outro pé fora da porta.
3.
Estabeleça
ritos
Rotina não mata o amor,
mantém-o
aceso. Jantar
à mesa, oração juntos, silêncio partilhado, olhar atento. Amor
sem rito vira fast-food,
e
quem está disposto a encarar um “podrão” durante vinte anos?
4. Fuja
das telas
O amor morre nos detalhes.
E os detalhes desaparecem quando você vive com a cara enfiada no
celular – ou se casa com um jornalista, acrescento meio brincando,
meio sendo verdadeiro. O demônio moderno mora nas notificações,
não se esqueça.
5. Sofra
com dignidade
O amor vai doer. A outra
pessoa vai te ferir. Você vai decepcioná-la. Mas essa dor é
parteira da
maturidade.
Quem foge da dor, nunca chega ao amor verdadeiro.
6. Eduque
para a eternidade
Se você ama alguém, seu
objetivo não é fazê-la feliz – é
ajudá-la a salvar a alma.
Amar é preparar o outro para encontrar Deus, todo
o resto é circo.
RESUMO PRÁTICO: COMO
AMAR NA ERA DO DESCARTE
Escolha alguém
disposto a morrer para si. Narcisistas são bons de cama, mas
péssimos de eternidade.
Não espere sentir.
Decida. Sentimento vem depois da escolha.
Estabeleça ritos. O
amor se sustenta na liturgia do cotidiano.
Fuja das telas. Como
já disse, o demônio mora nas notificações.
Sofra com dignidade. O
amor vai doer. Aceite isso ou case com um travesseiro.
Eduque para a
eternidade. Amar é preparar o outro para encontrar Deus.
Por fim, creio não ser
demais e tampouco soar piegas publicar algumas pulsações de
um coração que já bateu verdadeiramente por alguém. Diante de
todo o palavrório que destilei acima, sempre será bom deixar claro
que o verdadeiro amor é aquele que nos coloca prontos para morrer –
de verdade – pela pessoa amada, oferecer sua vida pela dela,
abdicar de sua felicidade pelo sorriso que o cativou, enxergar o
brilho naqueles olhos – os benditos olhos, que jamais serão
esquecidos:
ORAÇÃO PELA MULHER
AMADA
Senhor dos
corações inquietos e das promessas eternas,
diante de Ti
coloco o nome dela, como fosse incenso no altar.
Tu a criaste em segredo,
lapidando uma pérola no ventre do tempo.
Eu a encontrei já
feita mas antes grão, já linda mas antes bela, já misteriosa mas
antes inocente.
Confesso, tremi.
Não permitas que eu a ame
como o mundo ama – com olhos de devorador,
mas como Tu a
sonhaste: com reverência, com temor e fogo justo.
Livra-me de ser um menino
apaixonado por espelhos.
Livra-me de fazer dela um ídolo, ou de
tratá-la como simples prazer.
Dá-me a coragem de vê-la com os
olhos da eternidade.
Que eu a proteja sem
dominá-la,
que eu a conduza sem oprimi-la,
que eu a deseje
sem corrompê-la,
que eu a admire sem me curvar.
Que o meu amor seja mais
cruz que abraço,
mais silêncio que discurso,
mais pão
que poesia.
Ensina-me a morrer um pouco
todos os dias, para que ela viva mais plenamente.
E que, no fim,
quando estivermos velhos e já quase do lado de lá,
ela possa
dizer:
" Fui amada como se ama o sagrado: com força, com
verdade, com Deus no meio."
Amém.
TRATADO BREVE PARA A
MULHER AMADA
I. Não te
amo com a pressa dos fracos, mas com a paciência dos eternos.
O amor que tenho por ti não
é fome, é vocação.
Não me aproximo de ti como um lobo
farejando carne, mas como um homem buscando uma alma.
Se te amo,
é porque reconheço em ti um eco de algo que vem do Alto.
Tu
não és minha, e por isso mesmo posso te amar com liberdade.
II. Não
quero que sejas um espelho, mas um mistério.
Não me atraio por ti
porque te entendo – mas porque não te entendo.
És outra, e
nisso reside tua beleza.
Não desejo te moldar à minha imagem,
mas me despojar para te merecer.
Não quero que completes meu
ego – quero que me desafies a sair de mim.
III. Não
te prometo um amor fácil, mas um amor verdadeiro.
Sim, vou falhar contigo. E
tu comigo.
Mas prometo levantar depois de cada queda com mais fé
do que orgulho.
Prometo não fugir quando tua beleza escurecer,
ou tua alegria silenciar.
Porque te amo com os pés no chão, e
o coração no alto.
IV. Quero
te conduzir, não te arrastar.
Se caminho à tua frente, é
para abrir caminho.
Se caminho ao teu lado, é para
proteger-te.
Se caminho atrás, é para empurrar-te no
vacilo.
Mas
em todos os casos, caminho
contigo. E com
Deus entre nós.
V. Amar-te
é minha penitência, minha honra e minha aventura.
Não preciso de ti para ser
feliz – mas contigo, a felicidade se torna possível.
Te amo
não porque preciso, mas porque escolhi.
Te amo não com emoção
passageira, mas com o peso da eternidade.
E te digo, olhando
firme nos teus olhos:
Se Deus permitir,
serei teu homem até o último suspiro.
E mesmo depois dele,
serei ainda tua lembrança – firme, presente, eterna.
AO FIM E AO CABO
Quem ama de verdade morre
de pé, com
os olhos voltados ao céu e os pés fincados no chão. O amor não é
fuga, não é posse, não é reflexo. É cruz, é altar, é combate.
E como dizia um santo antigo: Amar
é olhar para o outro e dizer: Tu não morrerás.
Que o mundo nos chame de
loucos. Que Pessoa nos chame de ingênuos. Mas entre o niilismo
elegante e a santidade oculta, ficamos com a cruz.
Fernando Pessoa foi um
grande poeta, um dos maiores da língua portuguesa.
Mas jamais amou ninguém.
Amar é morrer de pé – e
ressuscitar junto.
Walter Biancardine