Vi hoje, em uma página que sigo no Facebook, um interessante artigo
sobre um livro – depois transformado em filme, o qual vi e muito
gostei por sua densidade dramática e apuro na transmissão da
angústia “noir” da situação – que se chama “As Vinhas da
Ira”.
Entretanto, é preciso separar a apreciação da bela obra artística,
cujas qualidades são inegáveis, da venenosa mensagem que a mesma
transmite. Convido o leitor a apreciar o texto postado por esta
página – “Sobre Literatura”, no Facebook – e, depois, ter a
caridade de ler um resumido ensaio filosófico, no qual exponho meus
pontos de vista conservadores sobre ambos – o texto e a obra
artística.
O texto:
“Em 1936, no auge da Grande Depressão, um homem fez o que poucos
escritores teriam coragem de fazer: John Steinbeck abandonou o
conforto da sua casa, adotou um nome falso e desapareceu entre os
trabalhadores migrantes da Califórnia – para viver a dor que o
mundo insistia em ignorar.
As famílias que ele encontrou vinham de Oklahoma e Texas, fugindo da
poeira, da seca e da fome. Tinham perdido tudo – a terra, os
sonhos, a dignidade – e agora dormiam em caminhões enferrujados,
perseguidos por um país que os chamava de “problema”. Os jornais
ridicularizavam-nos como “Okies”. Os políticos fingiam que não
existiam.
Mas Steinbeck não suportava olhar de longe. “Se queres entender a
dor de um homem, caminha com ele na lama”, dizia.
E assim o fez. Dormiu sob as estrelas, comeu restos, ouviu mães
tentando acalmar bebés com canções em vez de comida. Viu crianças
escavando lixo à procura de frutas podres.
“Não imaginas o som que a fome tem quando chora”, escreveu. “Ela
muda o rosto de um homem.”
À noite, enquanto o acampamento dormia, Steinbeck acendia uma
lanterna e escrevia – fragmentos de conversas, rostos, gestos,
pedaços de humanidade enterrados na miséria. Dessas anotações
nasceu uma das obras mais poderosas do século XX: As Vinhas da
Ira.
Quando o livro foi publicado em 1939, a América tremeu. Fazendeiros
queimaram exemplares em praça pública. Políticos chamaram-no de
mentiroso. Igrejas baniram-no das prateleiras. Mas entre os
esquecidos, os sujos de poeira e esperança, o livro virou uma
espécie de milagre.
“Ele disse a verdade. Finalmente, alguém nos viu.” — disse um
trabalhador rural, com lágrimas nos olhos.
O FBI abriu um dossiê contra ele. Recebeu ameaças de morte. Homens
armados vigiavam sua casa dia e noite. Quando um amigo perguntou se
tinha medo, Steinbeck respondeu apenas:
“Não. Tenho vergonha de ter demorado tanto tempo para prestar
atenção.”
Ganhou o Pulitzer, depois o Nobel, mas nunca esqueceu o pó, os
rostos e as vozes dos que o acolheram.
“Eu não sou um escritor de fuga”, disse certa vez. “Sou um
escritor das pessoas que não conseguem escapar.”
John Steinbeck não escreveu sobre o Sonho Americano – ele viveu
com aqueles a quem o sonho foi negado. E foi entre a poeira, a fome e
o silêncio que descobriu algo que nem a miséria conseguiu matar: a
dignidade humana.
Ele não apenas contou uma história – ele devolveu humanidade a
quem o mundo tinha esquecido."
Página “Sobre Literatura”, Facebook -
Meu ponto de vista:
Há textos que choram demais para pensar. O que se
escreveu acima sobre As Vinhas da Ira certamente é
um desses. Mistura-se ali piedade com propaganda, miséria com
moralismo, e o resultado é a canonização do ressentimento humano
como se fosse virtude.
Steinbeck é erigido em mártir de um povo
imaginário – não o povo real, que luta, trabalha e reza – mas o
“povo-símbolo”, útil à catequese socialista que Hollywood e a
intelligentsia universitária transformaram em dogma.
A peça laudatória que ora mostro ao meu leitor
começa com uma premissa quase messiânica: Steinbeck, “o homem que
abandonou o conforto da sua casa para viver entre os pobres”, a
velha fórmula do santo laico. O escritor é apresentado como se
houvesse feito um êxodo voluntário rumo à sarjeta, para expiar as
culpas do capitalismo.
E eis a primeira armadilha: confunde-se
empatia com militância, e observação com adesão ideológica. Ora,
Tolstói também conviveu com camponeses, Dostoievski viveu entre
criminosos, mas nenhum deles saiu proclamando a revolução. Entender
o sofrimento humano não implica santificar suas causas políticas.
A segunda falácia é a pintura maniqueísta da
sociedade americana dos anos 30: de um lado, os ricos insensíveis,
do outro, os famintos virtuosos. Ora, toda a história dos Estados
Unidos é um esforço de autossuperação, não de vitimização. A
Depressão foi uma tragédia econômica, não uma conspiração de
banqueiros. Milhões sofreram, sim, mas muitos reconstruíram suas
vidas – não pela coletivização sonhada por Steinbeck, e sim pelo
trabalho, pela fé e pela perseverança. O que o autor e seus
cultores fizeram foi transformar o fracasso em bandeira moral.
O elogio diz que Steinbeck “viu crianças
escavando lixo à procura de frutas podres”. Comovente, sem dúvida.
Mas o problema não está na compaixão – está no uso político
dela. O sofrimento deixa de ser um drama humano para virar uma peça
de acusação contra a ordem social. A miséria passa a servir de
argumento contra a liberdade, e o escritor torna-se sacerdote de uma
liturgia em que o capitalismo é o demônio e o coletivismo, a
salvação.
Quando se diz que “a América tremeu” ao ler o
livro, o que realmente se quer afirmar é que os pilares morais do
individualismo americano foram atacados em seu núcleo: a crença de
que o homem é responsável pelo próprio destino. Steinbeck inverte
isso: o indivíduo é vítima do sistema, o mal está fora dele, e
sua virtude consiste apenas em sofrer. É o mesmo raciocínio que
moveu Marx, Lenin e seus herdeiros do Baixo Leblon: o homem bom é o
oprimido, o homem mau é o que prospera.
Eis o perigo espiritual escondido no humanismo de
Steinbeck: ele troca a tragédia clássica – em que o homem luta
contra seu próprio limite – por uma tragédia social, onde o
inimigo é sempre o outro. E isso mata a dimensão moral da culpa e
da redenção. Em As Vinhas da Ira, ninguém é tentado a
ser melhor; todos são convidados a odiar um culpado coletivo.
O artigo acima também celebra o fato de o FBI ter
aberto um dossiê contra o escritor, como se toda investigação
fosse sinônimo de perseguição. Mas ignora-se a retórica heroica:
Steinbeck frequentava círculos marxistas, e o Partido Comunista
Americano via “The Grapes of Wrath” como instrumento de
propaganda. Isso não diminui o valor literário, mas revela o
contexto: a obra foi escrita sob o manto do realismo socialista, o
mesmo que transformava a pobreza em emblema moral.
A frase final – “Ele não apenas contou uma
história; ele devolveu humanidade a quem o mundo tinha esquecido”
– é o golpe de misericórdia da retórica progressista. Ninguém
devolve humanidade a quem já a possui. O pobre não é um sub-homem
à espera de salvação estética. Essa frase trai o paternalismo dos
que veem o povo como massa sofrida a ser “redimida” por
intelectuais iluminados. O mesmo paternalismo que, no século XX,
gerou regimes onde o Estado dizia amar o povo – e este mesmo povo,
tão “amado”, acabou fuzilado, faminto e calado.
Ao fim e ao cabo, Steinbeck não escreveu “As
Vinhas da Ira” contra a miséria, mas contra a liberdade. A miséria
serviu-lhe de cenário moral para propor um mundo sem
responsabilidade pessoal, onde o coletivo seria a tábua de salvação.
E eis o truque mais sujo, mais imundo: quanto mais piedade ele
aparenta, mais poder o Estado ganha na imaginação do leitor.
O verdadeiro antídoto para a pobreza, como
sempre, não veio dos livros militantes, mas do suor de quem
reconstruiu a América. Enquanto Steinbeck transformava desgraça em
epifania política, homens simples voltavam a arar o solo, fundar
empresas, restaurar a vida. E nenhum deles precisou que um escritor
os “visse”.
Em suma: As Vinhas da Ira é uma obra
literariamente poderosa, mas filosoficamente venenosa. Sublima o
sofrimento em ideologia e faz do desespero um instrumento de
catequese. O que ela propõe, em última instância, não é a
compaixão cristã, mas a revolta secular. É o Evangelho segundo
Marx, pregado em tom poético, para corações bem-intencionados e
mentes desprevenidas.
Steinbeck escreveu sobre os que “não conseguem
escapar”.
Mas o que ele não entendeu – e talvez nem
quisesse entender – é que escapar da miséria é justamente o que
o comunismo impede.
Walter Biancardine