Raros são os militantes, ideólogos ou mesmo intelectuais das redes sociais que conhecem – ou mesmo já ouviram falar – de Wilhelm Münzenberg (14 de agosto de 1889 – junho de 1940), ativista e editor comunista alemão que, antecedendo Antônio Gramsci, inventou a propaganda e métodos de controle mental comunista que perduram, eficazmente, até os dias de hoje.
Neste artigo, vamos fazer o que os acadêmicos raramente conseguem – pegar dois sujeitos aparentemente distintos e mostrar por que, no fundo, são frutos da mesma árvore política e psicológica.
Antonio Gramsci e Willi Münzenberg, à primeira vista, parecem viver em planos distintos: um, um teórico preso pelo fascismo, escrevendo sobre hegemonia e superestrutura; o outro, um apóstolo da propaganda comunista internacional, que construiu impérios midiáticos e organizacionais para a III Internacional. Mas se mergulharmos no âmago de suas carreiras – na luta pelo poder cultural e pela transformação revolucionária da sociedade – as semelhanças brilham como aço polido, sob a luz da razão.
1) Revolução não só como ato político, mas como guerra pela mente e pelo senso comum
Gramsci entendeu que o poder não se conquista apenas com exércitos, barricadas e insurreições – hegemonia cultural é a chave: a classe dominante não manda porque simplesmente manda; ela domina porque molda o senso comum, as instituições, a educação, a moral popular. Gramsci transformou o marxismo tradicional, que via o Estado apenas como máquina coercitiva, numa teoria de domínio pela cultura e pela ideia, um bloco hegemônico que une força e consentimento.
Münzenberg, por sua vez, não fez teoria abstrata; ele praticou o que Gramsci só formulou no cárcere. Tal qual um misto de Assis Chateaubriand germânico com a atual esquerda mundial, ele construiu verdadeiros impérios de mídia e organizações de fachada (frentes) – jornais, revistas, fundos, solidariedade internacional, filmes, campanhas de conscientização – com um objetivo claro: influenciar mentalidades, estruturar alianças e converter o mundo ao projeto comunista. Ele era, com todas as letras, um estrategista da luta pelo controle simbólico e cultural, antes mesmo dos intelectuais compreenderem isso como conceito.
Do ponto de vista gramsciano, o que Münzenberg fez é exatamente hegemonia em ato – não no nível abstrato dos Cadernos, mas no chão duro da prática política. Ele não escreveu tratados sobre hegemonia; ele criou redes que moldaram mentalidades, idolatraram causas, e forjaram consensos em massa.
2) Intelectual e militante: a fusão insuportável para os adversários
Gramsci foi perseguido pelo fascismo não apenas por ser comunista, mas porque sua obra revela a intimidade entre teoria e política – um intelectual que não se contenta em interpretar o mundo, mas quer transformá-lo. Este cidadão pensou Marx com Machado de Assis e Maquiavel, viu o trabalho ideológico por trás de cada movimento social e traduziu isso em estratégia revolucionária.
Já Münzenberg, ao contrário, abominava a pura teorização. Ele vivia no tablóide, no jornal, no panfleto, no filme – nas ruas da Europa e da América. Mas isso não o livra de uma função íntima à teoria gramsciana: ele era um intelectual prático, um produtor de sentido, o tipo de sujeito que Gramsci diria ser parte essencial da construção de uma nova ordem cultural.
Os dois – cada um no seu hemisfério – são testemunhas de que a guerra pelo poder é, antes de tudo, uma guerra pelo sentido e pelo controle da narrativa.
3) Organização, massa e o novo “Partido” (ou rede)
Gramsci inovou ao chamar o Partido de “moderno Príncipe”: uma instância que não age apenas como coesão burocrática, mas como centro de produção de cultura, moral e vontade coletiva.
Münzenberg operacionalizou essa ideia antes que fosse formalizada: ele fez do seu vasto aparato de jornais, filmes e frentes um núcleo ativo de direção política capaz de mobilizar milhões, muito além de células partidárias clássicas – e nesta observação não vai nenhuma referência desairosa ao controle total da mídia brasileira pela esquerda do Foro de São Paulo. Ele agiu no terreno que Gramsci definiu como essencial: sociedade civil e cultura popular – não limitando a política à mera relação com o Estado, mas por meio de redes que moldam opinião, sentimento e linguagem social.
Essa noção de “partido ampliado” – um organismo que se infiltra na cultura, não apenas na máquina estatal – é um ponto onde as trajetórias de Gramsci e Münzenberg se fundem como dois rios que correm para o mesmo mar.
4) Internacionalismo versus nacionalismo: dois caminhos para o mesmo objetivo
Gramsci escreveu de dentro da prisão italiana, pensando a revolução como um processo social complexo que precisava ganhar o mundo das ideias; ele não vivia o cosmopolitismo prático, mas compreendia estrategicamente que o marxismo só triunfa se dominar a cultura em cada contexto nacional.
Münzenberg via isso com os olhos abertos no campo global – ele era um agente direto da Internacional Comunista e acreditava que o socialismo precisava de solidariedade transnacional, mobilização planetária e imprensa internacional. Ele operou com frentes que iam de alívio a soviéticos famintos até campanhas contra o fascismo e o colonialismo. Se Gramsci formulou a estratégia, Münzenberg a implementou no mundo concreto.
5) O terreno comum: cultura como campo de batalha
O que une Gramsci e Münzenberg é muito simples e brutal: eles sabiam que a luta não era só pelo Estado ou pela fábrica, mas pela cultura, pelo sentido, pela narrativa – pelo que as pessoas acreditam ser natural, justo e verdadeiro, quase uma ideologização do bom senso, tal qual o positivismo fez aqui no Brasil.
Gramsci disse que o poder é integrado por coerção e consentimento; Münzenberg viveu isso, construindo consentimento em larga escala, combinando jornalismo, propaganda, solidariedade, arte, e narrativa política. E, quanto mais eles fizeram isso, mais deixaram claro que nenhuma revolução – ou contra-revolução – vence sem ganhar o campo simbólico da sociedade.
Conclusão
Gramsci é teoria pura de hegemonia; Münzenberg é prática pura de construção de hegemonia.
Gramsci pensa a revolução como guerrilha cultural; Münzenberg atua como general dessa guerrilha nas trincheiras da mídia e movimento.
O que os dois têm em comum não é simplesmente o marxismo, mas a crença radical de que o mundo político se conquista pela mente, antes de qualquer outra coisa.
Este artigo não é resenha, não é fichamento, não é aquele mingau “neutro” que tenta agradar a banca. É um cru diagnóstico de guerra cultural, que é exatamente onde Gramsci e Münzenberg se encontram – e onde muita gente finge não ver nada.
Assim, seguimos adiante.
O próximo passo segue em três direções: linha do tempo comparativa, mostrando como Münzenberg já fazia, na prática, aquilo que Gramsci só pôde formular teoricamente no cárcere – o que desmonta muita leitura ingênua.
As fraturas internas: onde Gramsci é mais sofisticado e onde Münzenberg escorrega no cinismo instrumental; e onde Münzenberg é eficaz e Gramsci, perigosamente idealista.
Atualização contemporânea: como esse modelo Gramsci-Münzenberg foi herdado pela esquerda pós-1968, pelas ONGs, pela mídia “humanitária”, pelo ativismo identitário e pelo jornalismo militante – inclusive no Brasil.
Comecemos pelo primeiro eixo: a linha do tempo comparativa – quando a prática precede a teoria.
Aqui está o ponto que desmonta noventa por cento das leituras acadêmicas: Münzenberg antecede Gramsci no terreno real da guerra cultural. Enquanto Gramsci ainda militava no Partido Comunista Italiano e só mais tarde, já preso, amadurecia sua reflexão sobre hegemonia, sociedade civil e consenso, Münzenberg já havia entendido – intuitiva e operacionalmente – que a revolução moderna não se vence com fuzis, mas com imagens, narrativas, causas morais e comoção emocional organizada.
Münzenberg começa sua atuação decisiva logo após a Revolução Russa, nos anos 1920. Ele cria jornais ilustrados, campanhas humanitárias, frentes culturais “apartidárias”, redes de intelectuais, artistas e jornalistas simpáticos ao comunismo – muitos deles sem jamais se declararem comunistas. Eis o ponto-chave: ele percebe que o militante explícito assusta; o humanista indignado convence. Isso é uma verdadeira benção para a hegemonia.
Gramsci, por sua vez, só formulará com precisão, nos Cadernos do Cárcere, a ideia de que a dominação moderna se exerce menos pela força direta e mais pela ocupação do senso comum, pela lenta pedagogia cultural que transforma ideias históricas em “evidências naturais”. Em termos cronológicos, portanto, Münzenberg faz primeiro, Gramsci entende depois.
Isso não diminui Gramsci; ao contrário, o engrandece. Ele é o cirurgião que explica o funcionamento do órgão que Münzenberg já vinha usando como arma. Mas o dado histórico é incômodo: a esquerda venceu culturalmente antes mesmo de saber explicar direito como o fez. Münzenberg é o laboratório vivo do gramscismo antes do nome.
Passemos ao segundo eixo: as fraturas internas – onde cada um falha, e por quê.
Gramsci é sofisticado, profundo, quase genial. Mas paga um preço: subestima o cinismo do poder real. Seu modelo de hegemonia ainda guarda uma esperança pedagógica – a ideia de que uma nova cultura produziria um novo homem, mais consciente, mais elevado, mais racional. Aqui ele ainda é herdeiro do iluminismo marxista, mesmo quando o critica. Há nele uma confiança excessiva de que a hegemonia pode ser moralmente superior, não apenas eficaz.
Münzenberg não sofre dessa ingenuidade. Ele entende cedo que a verdade é secundária, que o decisivo é a eficácia simbólica. Não importa se a causa é justa em si; importa se ela mobiliza afetos, gera culpa, cria adesão emocional, constrange o adversário. Aqui está sua força – e sua podridão.
E é exatamente aí que Münzenberg se perde. Seu modelo exige mentira sistemática, manipulação contínua e instrumentalização absoluta de pessoas e tragédias. Ele cria o protótipo do intelectual “útil”, mas descartável. Não por acaso, termina isolado, perseguido e eliminado pelo próprio sistema que ajudou a erguer. O método funciona, mas devora seus operadores – como todo demônio eficiente.
Em resumo:
– Gramsci pensa melhor do que o mundo real permite.
– Münzenberg opera melhor do que sua própria alma suporta, mesmo tendo se tornado um burguês milionário, objetivo último de todo esquerdista.
Os dois revelam, cada um à sua maneira, que a hegemonia cultural é eficaz, mas moralmente corrosiva – sobretudo quando desligada de qualquer noção de verdade objetiva.
Chegamos ao terceiro eixo: a atualização contemporânea – onde o cadáver ainda anda, e fede.
Aqui a coisa fica desconfortável, porque deixa de ser história e vira espelho.
O modelo Gramsci-Münzenberg não morreu; ele se institucionalizou. Pós-1968, a esquerda abandona de vez a tomada violenta do poder e investe tudo na cultura, na linguagem, na mídia, na educação, no entretenimento e nas causas morais difusas. Direitos humanos, ambientalismo, identitarismo, jornalismo “engajado”, ONGs, coletivos artísticos, universidades – tudo isso funciona como frentes ampliadas, exatamente no espírito münzenberguiano (perdoem), com verniz gramsciano.
O militante de hoje não carrega foice nem martelo; carrega indignação seletiva, vocabulário moralizante e uma aura de superioridade ética. Ele não diz “sou comunista”; diz “sou do bem”. Münzenberg sorriria no túmulo. Gramsci faria anotações.
No Brasil, então, o caso é quase didático. A hegemonia cultural foi construída não pelo debate aberto, mas pela ocupação lenta e persistente de redações, departamentos universitários, editoras, escolas, produtoras culturais e tribunais simbólicos da opinião pública. Quem controla a narrativa não precisa ganhar eleição – ganha o imaginário, e o resto vem por inércia ou constrangimento.
E aqui vai a conclusão última e óbvia, sem anestesia: quem não entendeu Gramsci e Münzenberg, não entendeu por que a direita perde mesmo quando vence.
Gramsci fornece o mapa.
Münzenberg testa o terreno.
A esquerda aprende.
A direita, até hoje, finge que é coincidência.
Walter Biancardine
Suzana Souza (Su Su)

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