sábado, 25 de março de 2023

É PRECISO FORÇA PARA CONTINUAR MORTO


O fato é raro mas, por vezes, acontece: o telefone toca, é alguém querendo falar comigo.

Em dias de comunicação verbal quase extinta e isolado como um náufrago, em ilha de solidão cercada de pastos por todos os lados, a campainha surpreende e gratifica.

Como é bom saber que alguém quer nos falar algo! Principalmente: falar, e não digitar abreviações engraçadinhas e incompreensíveis, em redes sociais ou aplicativos eternamente vigilantes de suas opiniões.

Difícil é, para quem jamais enfrentou a solidão compulsória – pois que a opcional é privilégio – compreender a sensação de ser um cadáver que respira: você sente fome, toma banho, arruma sua cama, escreve, fuma, descansa ou pensa – sozinho, sempre – no que fazer. Lê uma notícia, quer comentar e não tem com quem. Termina um texto, precisa de opiniões, mas não há ninguém para dar. Está com fome, pensa em algo para comer, mas não há companhia e muito menos quem sugira um prato diferente. Chega o fim do dia, você deita na cama, acende um cigarro e quer conversar. E o monolito gigantesco da solidão rola por sobre sua cabeça, esmagando sua energia de vida.

E no dia seguinte você acorda e não há com quem partilhar o café. Sim, tudo se repetirá, ao logo de semanas, meses, enterrando o solitário cada vez mais fundo em sua lápide até que – seja por sorte ou piedade – o telefone toque.

Mas tal fato, como disse, é raro. O mais das vezes, as maravilhas da tecnologia fazem companhia ao pobre náufrago, o defunto que ainda perambula: escolhe-se uma web rádio – particularmente, com músicas antigas, aquelas que continham coisas estranhas como melodias e poesias metrificadas em letra de música – para ter-se algum som, algum ruído que não o mugir de vacas, relinchar de cavalos ou o uivo fantasmagórico do vento, sempre a lembrar de nossa morte – se não de fato, ao menos de direito. Mas a emenda sai-nos pior que o soneto, pois antigas canções sempre evocam lembranças, dias felizes, épocas em que éramos vivos e amados, onde nossa presença era não apenas notada como esperada.

Então, um dia, sentenciado por juiz que só deseja o bem de todos, resta-nos cumprir a sentença de solidão perpétua e morte virtual – para o bem de todos, é bom repetir.

Ou somos passionais ou somos justos, não há meio termo. Justiça sem temperança é vingança, e ouso perguntar o quão escuras serão as trevas que conceberam tal sentença. E tal vingança se dá em revanche desigual, numericamente: juntam-se dezenas de mágoas para abater, surrar um só e indefeso amor.

Mas é para o bem de todos, importante lembrar. E não há apelação.

É preciso equilíbrio emocional, uma fé sem tamanho, para um ser humano sobreviver a tal regime de vida – e a ajuda de Deus também, pois que ontem foi dia do telefonema! E a tal ponto lembrou-me do bom que é estar vivo que, após o mesmo, saí de minha ilha de mato e solidão rumo à estrada para – sim, é verdade – ver os carros passarem! Ver gente! Ver movimento!

Ontem pude respirar, foi um bom dia. A tampa da lápide foi levantada por breves instantes, conversei ao telefone, vi carros passando na estrada, caminhões buzinaram me cumprimentando – sim, eles me viram!

Ontem foi um bom dia. Pude respirar, ganhar forças para continuar morto.

A vida é assim.

Walter Biancardine


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Esta é uma coletânea de contos, escritos entre 2007 e 2010, que reproduzem as histórias e causos que, invariavelmente, escutamos ao ambientarmo-nos em alguma cidade pequena e fazermos amigos.

Tais causos – a versão roceira das lendas urbanas – foram por mim escutados desde muito jovem, na então pequena e desconhecida cidade de Cabo Frio, Região dos Lagos, Rio de Janeiro.

Não ouso dizer que nenhuma delas seja verdadeira, contudo tantas e tão repetidas vezes as ouvi que resolvi publicá-las em livro, para que ganhem a notoriedade – ou infâmia – merecida.

Divirtam-se com elas.

Mas se me perguntarem se é tudo verdade, jurarei que só ouvi dizer.

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3 comentários:

Ívona disse...

Entendo como se sente. A solidão nos depura, nos tira as arestas . As vezes é nossa inimiga mas às vezes nossa melhor amiga. Mas é necessário uma pessoa com quem conversar, ter um amigo faz a vida ser mais leve. Nesse local rural onde mora, procure fazer amizade com alguém de boa índole, não importa se possui o mesmo nível de conhecimentos seu. Com certeza ele/ela tem conhecimentos da natureza, dos animais, das plantas. Se for uma pessoa boa, vale a pena ter essa amizade. E animais de estimação também nos fazem companhia e alegram nossas vidas. Eu vi um vídeo recentemente no You tube de um russo que vivia na Sibéria e que tinha um amizade inusitada com um javali, que criou desde pequeno. Era o seu animal de estimação. E eram boas companhias um para o outro.Se dois seres tão diferentes se ajudam para viver melhor em um local tão distante e inóspito, podemos fazer o mesmo. Ao dar amor e cuidado para alguém, esse lhe retribuirá na mesma proporção. Se quiser, posso enviar o vídeo. É emocionante.

Ívona disse...

Desculpe ter publicado 3 vezes. Não aparecia a publicação.

Walter Biancardine disse...

Sra Ivona:
A solidão nos empurra para os caminhos que a sra indicou, de fato.
Tem um cachorro aqui, e ele agora me adotou. Do mesmo modo, duas vacas e um (um só, os outros são xucros) cavalo ficaram amigos.
Plantar não posso, pois é tudo pasto mas, graças a Deus, existe uma vendinha a uns 2Km daqui, onde posso comprar o básico - inclusive água potável, pois a daqui é salobra.
Existem uns três peões aqui que fiz amizade, mas não posso ocupar o dia deles com coisas de minha vida, radicalmente diferente da deles. Eles trabalham de sol a sol, correndo esses pastos, e não tem tempo de ficar conversando!
Mas, ainda assim, vou seguindo em frente na certeza de que esses são meus 40 anos no deserto, que um dia chegarei á Terra Prometida - ou á Vida Prometida, pois Deus é pai e sabe o que é melhor para nós.
Muito obrigado por ler e deixar seu comentário, foi muito importante para mim!