sexta-feira, 24 de abril de 2009

CLICK

ou
“O momento da foto para a posteridade”
ou
“Como reconhecer a hora exata em que rotulam você”

Todo mundo que escreve sobre si mesmo tende a romancear - ou ao menos amenizar um pouco - sua história ou seus vexames, a depender do caso. O que é óbvio, por que ninguém vai sair por aí batendo caixa de suas derrotas ou deslizes.
Quem roubou não vai contar que meteu a mão no que não era seu. Quem corneou não vai contar de sua plantação de galhos em testa alheia e quem soltou um pum em uma festa, cuja autoria foi conhecida dos demais, nunca vai admitir – mesmo com testemunhas contra si – que foi o responsável por abrir uma clareira de gente em seu entorno. Então, ao leitor que se atrever a ler as mal traçadas que seguem abaixo, recomendo filtra-las com a lente preto e branco da realidade carnívora que todos nós conhecemos. Vamos aos contos:

1 – “It´s a long, long highway, baby”

“Já haviam transcorrido mais de nove horas de viagem e o que eu via em minha frente era somente a longa e infinita linha de asfalto cinza poeirento, indicando mais chão a percorrer.
Minhas mãos eram apenas bolhas, de tanto segurar o bendito guidom que vibrava sem parar nos trechos mais esburacados. Meus companheiros de viagem contabilizavam as baixas: três pneus furados que quase os levaram ao chão, uma roda traseira empenada, um tombo de fato, bagagem que se soltava por causa dos trancos daquela infeliz estrada sem fim, a ameaça dos ônibus, carros e caminhões que nunca deram a mínima para quem anda em duas rodas, suor, exaustão, cara coberta de poeira, chuva, sol, frio, calor – todos os climas do mundo em apenas um dia – mas estávamos lá. Pelos meus cálculos ainda precisaríamos encarar mais umas dez horas de estrada até nosso destino, mas mesmo assim nenhum de nós quereria estar em outro lugar ou outra situação. Murmúrios eventualmente se erguiam, reclamações, sugestões que desistíssemos – todas rechaçadas pelo mais poderoso dos argumentos: a consciência exata de estarmos, enfim, vivendo nosso sonho de liberdade.
E a recompensa sempre chega para os que persistem, pois exatas dez horas depois adentrávamos na cidade que traçáramos como objetivo. Felizes, incrédulos com nossa própria façanha e força de vontade, dispostos a gritar para o mundo nosso grande feito.
E os amigos nativos deste lugar se reuniram para nos recepcionar, brindando-nos com uma grande festa onde a alegria da realização não faltou.
Acordamos no dia seguinte refeitos, guindados à posição de heróis, e mesmo afamados por nossa camaradagem travada na recepção – tantos abraços, tantos sorrisos, tantos brindes que a marca indelével e eterna de heróis quase ficou para trás, sobrepujada pela grata surpresa de conhecerem-nos tão humanos e cordatos.”
FIM

TRADUÇÃO (a lente preto e branco)
Com a bunda em carne viva depois de nove horas sentado no quase obsceno selim de minha bicicleta, eu amaldiçoava a hora em que tivera aquela idéia de merda: sair do Rio de Janeiro rumo à Cabo Frio, pedalando.
Para tal mister convoquei (ok, é força de expressão: foram os únicos que aceitaram) dois inconseqüentes em grau tão grande quanto o meu: Ailton, o da Silva, e "ooo meeeeu amiiiigo...Marcelo Marino (é uma brasa, mora?) que em tais funduras expressavam indubitavelmente suas claras intenções de motim, pretendendo jogar-me Serra do Mato Grosso abaixo na primeira ribanceira propícia, além de brindarem-me com epítetos variados e pitorescos.
É bom que se diga que nos idos de 1982 a estrada para Cabo Frio era um caminho de cabras. Via Lagos? Nem em projeto, tinha de ir pela serrinha mesmo. Pista dupla com acostamento asfaltado? Não me façam rir! Era uma tripinha de asfalto – dos ruins – e sem nem mesmo uma mísera faixa sinalizadora pintada. Celulares para chamarmos mamãe em caso de Danôsse? Ficção científica. Graal? Postos de gasolina? Serviços diversos? No máximo um capiau vendendo laranja lima. A estrada era mato, barro, buraco e deserto. E essa era a grande aventura.
Tudo me atraía: para chegarmos a Niterói, tivemos de embarcar com bicicletas e bagagens na barca da Cantareira, Praça XV. Ainda escuro, sob o nevoeiro gelado do fim da madrugada e balançando na proa com os pés para fora, eu sonhava com o dia em que, realizado aquele sonho em que eu me metêra, planejaria outro que tinha mais a ver com ventos e mares – a navegação desbravadora do quase pós-adolescente de recém-feitos dezoito anos.
O fato é que – claro milagre, para tanta irresponsabilidade – conseguimos chegar vivos em Cabo Frio, após dezenove horas pedalando. E lá fomos, realmente, recepcionados como heróis: lógico, três adolescentes sozinhos na enorme casa de meu pai, bar cheio, quartos à vontade e um belo som só poderia dar no que deu.
Vizinhos noticiaram ao Poderoso Waltão, o Senhor Meu Pai, Big Boss, dos ocorridos nas funções contínuas organizadas em nossos cinco dias de estadia sob aquele telhado: um entra e sai de uma corja de vagabundos com cara de maconheiros à toda hora do dia ou da noite, som alto, gritaria, mulheres peladas correndo pelas paredes e, eventualmente, gritando rua afora; violões, birita – muuita birita – desmazelo, comportamentos inadequados aos padrões morais cristãos (tudo provocado por eu ter rifado aquela mulatinha que não lembro o nome, mas o fato é que o empreendimento rendeu-nos numerário suficiente para custear mais umas cinco garrafas de Praianinha e Ki-Suco, para fazermos batidas), entre outros eventos menos lembrados.
Pois o fato é que nada mais importou, após este momento.
Esqueceram-se das dezenove horas, dos riscos, do sonho realizado (isso eles queriam mais é esquecer, mesmo. Realizar sonhos dá uma puta inveja) e só se lembravam da exótica criaturinha que um dia eu comerciara.
E foi aí ( aí: palavra que define e une tempo e espaço) que minha imagem congelou para os que me cercavam: o cafajeste ébrio que rifou aquela dona esquisita.
E assim nasceu Walter, o beberrão.

2 – “O Senhor dos Mares”

“Ninguém brinca com o mar. É uma força da natureza, que pode acolher você, alimentar ou decretar sua morte inapelável, se assim o entender.
Vivo com o mar desde não me lembro quando, mas na verdade só comecei a planejar coisas mais ousadas já quase em idade de me barbear, ao tomar as barcas que ligam o Rio á Niterói apenas para navegar um pouco.
Comprei um dia uma canoa canadense, longa, estreita, bem marinheira, e entendi que era chegada a hora de me aventurar pelas águas salgadas – conhecidas ou não.
Posso relatar um acontecido, digno de nota, ao estrear a embarcação: se deu nas águas da Baía de Guanabara. A bordo, eu, o eterno Marcelo Marino, desprovido de instinto de conservação de si mesmo, e o igualmente infalível Ailton, o da Silva parente do Molusco. O plano era sair da enseada de Botafogo, contornar o costão de pedra e aportar – heróicos e garbosos – nas areias da Praia de Copacabana.Nenhum de nós imaginava o mar grosso que enfrentaríamos, com ondas inacreditáveis que pareciam querer engolir a pobre canoa e mais as correntezas, que exigiram toda nossa força nos remos, para que não soçobrássemos nas pedras da Urca.
Na qualidade de Capitão da embarcação fiz o que pude: incentivei ao máximo meus companheiros, sem um minuto sequer de desistência, até que aportamos – sãos e salvos – nas areias mansas da prainha da Urca.”
FIM

TRADUÇÃO (a lente preto e branco)
Matei muita aula na Barca da Cantareira, e lá imaginava – cérebro bem estrumado, fértil – minha nova aventura pelos mares.
Desisti da faculdade de arquitetura, vendi minha caríssima mesa de desenho e – vagabundo – comprei a tal canoa canadense, uma porcaria irretocável que emborcaria se você tossisse, pois não tinha quilha, era tão estreita quanto uma bunda e tinha fundo chato. Um horror, enfim.Tão ruim que não dava pra remar sozinho e por isso tive de recorrer aos eternos inconseqüentes – Marino e Ailton – para estrear o artefacto nas águas da Urca.
O plano era de uma imbecilidade de dar dó e só não morremos por que Netuno ajudou, pois contornar o Pão de Açúcar é coisa pra barco de gente grande e não para aquela bostinha.
No meio do horror, a cena era a seguinte: ondas catastróficas, uma canoa de merda, três idiotas à bordo – um deles remando com as mãos, pois faltara-lhe remos e sobrava-lhe cagaço – e eu berrando, tresloucado, branco e espavorido: “Rema! Rema, porra! A gente vai morrer, cacete! Remaaa!!!” E para disfarçar o pavor, ainda me atrevi a cantar feito um gondoleiro, berrando impropérios ao mau tempo, gargalhando ensandecido enquanto meus amigos se acabavam nos remos.
Conseguimos voltar. Todos exaustos, borrados e lívidos. E eu, além de tudo isso, sem voz.
Nesse instante, o rótulo eterno, adesivo, se firmou.
E assim nasceu Walter, o atormentado.

3 – “Born to fly”

“Voar é um dom e posso afirmar, sem nenhuma modéstia, que um dia eu o possuí.
Pilotos são uma raça competitiva e vaidosa, e por conta destas características, inúmeras encrencas podem brotar como cogumelos no jardim se você mostrar que ensina urubu a voar.
Me lembro, já em fim de carreira como piloto de testes, de uma demonstração feita para alto dignitário cujo nome não ouso dizer, de aparelhos fabricados por nação pouco amiga mas, forçoso é reconhecer, eficazes.
De um lado, as pérolas da engenharia belicosa alada, empreendendo demonstrações de sua invulnerabilidade com a óbvia finalidade de auferir uma portentosa encomenda governamental. Do outro nós, os outsiders, os coadjuvantes que – voando calhambeques da década de sessenta – evidentemente seríamos todos abatidos triunfalmente pela tecnologia à venda.
A verdade é que o bicho deles era bom mesmo: radares na proa e popa denunciavam a aproximação inimiga à milhas de distância e eram – além de tudo – capazes de engajar estes ecos radares como alvos de suas armas.
E aí? O que fazer? Aceitar o papel de bandido que morre no início do filme ou lembrar que sou brasileiro, não desisto nunca e nunca respeito uma lei, se o objetivo supremo for sacanear alguém metido a fodão?
O caso é que descobri que os tais radares captavam até moscas, mesmo. Mas só se estivessem voando em um nível de vôo ao menos aproximado do deles. E aí veio a idéia: contrariando os procedimentos descritos e aprovados nos manuais, mergulhei, segui rasante até estar exatamente embaixo de uma daquelas maravilhas, apontando o narigão do meu avião pra cima já com o dedo apertando o gatilho.
A telemetria registrou o que, na vida real, faria um belo rombo na fuselagem do sujeito e conseqüente pulverização de sua máquina. O resultado seria – se ele sobrevivesse aos tiros – uma bela ejeção para cair de bunda em campo inimigo.
A façanha resultou em constrangimento geral para as autoridades presentes, mas nada que não pudéssemos resolver na costumeira camaradagem entre pilotos, na cantina da base aérea.”
FIM

TRADUÇÃO (a lente preto e branco)
Vamos direto ao que interessa: a cantina.
A verdade é que entrei lá e já fui recepcionado por xingamentos em língua estrangeira, acusações de roubalheira e desacatos vários por eu não seguir os procedimentos que constam nos manuais, como bom escoteiro que eu deveria ser. Avisado por companheiro poliglota, tive ciência que eles pretendiam invalidar toda a manobra taxando-me de desleal e sujo - como se em uma guerra fossemos todos uns gentlemans.
Gentilmente tentei contra-argumentar mas, em cessando as fundamentações teóricas, a bolacha comeu solta. O pau roncou tão sério que a cantina ficou destruída, teve gente que baixou enfermaria para costurar a cara, cortada de garrafa, e uma queixa contra mim foi formalizada junto às autoridades.
O bom da história é que a manobra foi incluída nos manuais de operação da aeronave.E o ruim é que estou aqui escrevendo essas besteiras enquanto eles ainda estão lá, voando felizes e sorridentes, seus aviões com radar no rabo.
Naquela tarde um novo personagem foi criado, nas mentes daqueles presentes.
E assim nasceu Walter, o anti-social.

4 – “Route 66”

Uma vida inteira pela metade. Uma vida em que nunca pude – ou nunca tive coragem – de ser o que minha alma mandava.
Me obriguei a gostar das noites. Usei ternos e gravatas, cortei o cabelo no padrão, me preocupei com griffes e locais certos para ir. Quis ser um homem de sucesso aos vinte e poucos anos, quando nem ao menos homem – na acepção mais madura da palavra – eu era. Me deixei conduzir por outros, ser influenciado, manipulado mesmo - aquilo que as mulheres chamam de "transformar o seu rascunho em arte-final".
Tive altos e baixos. Muitos baixos, longos, sofridos, traumatizantes, que geraram seqüelas não apenas para mim e que, novamente, me obrigaram a ser e me comportar contra meu íntimo, agindo de acordo com minha penúria, pois um sujeito modesto existe modestamente – quase não ocupa espaço e muito menos dá o que falar.
Tive uma chance de ter dinheiro e joguei pro alto – a OEA.
Tive uma chance de me realizar profissionalmente mas a vida me cortou – a aviação.
E tive uma coisa que poucos podem se gabar: uma segunda chance.
Vivo hoje do jornalismo e da TV. Cercam-me pessoas das mais variadas: Ricos, pobres de marré, poderosos, anônimos, influentes ou doidos de pedra, artistas plásticos, gente que cria, inova e forma - ou crê que forma - conceitos e opiniões.
A vaidade me cerca, mas igualmente a criação e a oportunidade de deixar minha marca neste mundo e isto é o que vale, pois a morte nos nivela a todos por baixo.
Não tenho dinheiro, nem barganho favores com os poderosos. Apenas faço o que gosto e o que sei ser muito competente – e quantas pessoas poderão dizer o mesmo?
Quando minha vida profissional rumou de encontro ao que minha alma pedia, mais um presente do destino: a vida pessoal se resolveu, uma longa história de quase quarenta anos foi finalmente encenada - os quarenta anos de travessia do deserto até a Terra Prometida; os quarenta anos que precisei para aprender a ser gente o suficiente para merecê-la.
Deste ponto em diante, não faria mais sentido ser, agir, me comportar ou me vestir representando um personagem, um estereótipo de consumo fácil para os outros.
Hoje, sou o que sou. Monto em minha enorme motocicleta – o cavalo que me conduz pelos meus sonhos – e sonho sem medo novos delírios, pois a felicidade de existir traz as realizações, invariavelmente.
Os infelizes, os atormentados, estes nunca realizam – apenas pululam no palco armado por aqueles que nunca têm nada a acrescentar em nossas vidas, só o desejo de nos controlar e nos reduzir ao que eles acham como “suficiente e ajuizado” para nós.
Nada, nem ninguém, tem mais o poder de mandar em mim ou nublar minha vida.
Agora sou livre, e diante de meus olhos vejo a estrada.
Sinto em minhas pernas o calor do motor me levando à um destino que certamente É feliz. E o vento em minha cara, por todo o longo caminho, me lembra sempre que estou vivo.
Não é mais hora de morrer. Not yet.

Hoje, finalmente, sou eu mesmo.
Vista o que quiser. Ame quem quiser. Pense o que quiser. Só não faça o mal para os outros, esta é minha filosofia.

Hit the road, Jack!

TRADUÇÃO (a lente preto e branco)
Este último conto não tem tradução. Se você não percebeu a sinceridade nas linhas, é porque já me rotulou.
Mas se viu a diferença, minha Shadow tem garupa e ainda temos muito chão para andar.
Seja bem vindo!

Walter Biancardine é jornalista. E prolixo, também.